Fórmula da minha composição ideológica

Olavo de Carvalho

23 de dezembro de 1998

Alguns leitores cobram-me uma autodefinição ideológica. Outros, mais solícitos, apressam-se em fazê-la por mim, catalogando-me seja como neoliberal, seja como anarquista, seja como conservador, seja até como fascista e o diabo a quatro. Surdo às demandas dos primeiros, que me parecem artificiais e de puro capricho, não posso, no entanto, permanecer insensível ante os esforços dos segundos, que traduzem, a olhos vistos, um anseio genuíno e profundo de suas almas, e, mais que um anseio, uma necessidade vital absoluta, a qual, se não atendida, acaba por se atender a si mesma como um estômago de pobre que, desprovido de alimento, se autodigere mediante uma úlcera. Essas pessoas, com efeito, não sabendo o que fazer de suas vidas sem um catálogo ideológico de tudo, e não dispondo de informações cabais sobre a minha personalidade política, acabam por construí-la com pedaços de si mesmas, colhidos nos bas fonds dos seus respectivos subconscientes e constituídos substancialmente de temores, suspeitas, fantasias macabras e uma vasta coleção de demônios.

Não suportando mais ver tanto sofrimento inútil, nem me conformando com tamanho desperdício de criatividade que mais utilmente se empregaria no hobby literário, ao qual algumas dessas criaturas aliás se dedicam nas horas vagas de seu penoso mister catalogante, decido-me, pois, a fornecer enfim meu perfil ideológico, e não apenas meu perfil de ambos os lados mas também meu auto-retrato de frente e de costas. Direi, em suma, o que vocês querem saber, que não é necessariamente o que vocês querem ouvir.

Infelizmente, não posso me definir com uma só palavra, como seria do gosto de tantos, pela simples razão de que não acredito haver algum conceito abrangente capaz de juntar, numa só unidade compacta, as diferentes atitudes e opiniões de um indivíduo ante os diversos setores da vida. O tipo assim descrito teria a coerência em bloco de uma caricatura, de um Idealtypusweberiano ou de um arquétipo platônico, mas nada teria de um ser humano1.

Toda fórmula ideológica pessoal compõe-se de um amálgama de preferências e repulsas variadas, umas referentes à política, outras à moral, outras à religião, outras à vida econômica e assim por diante. Esses vários elementos não formam quase nunca uma unidade coerente, embora tendam à coerência como numa assíntota, aproximando-se dela sem jamais alcançá-la. Tal esforço de coerenciação denomina-se, precisamente, filosofia, uma atividade que, pela própria natureza, é constante e sempre inacabada.

Não podendo, portanto, me definir com um termo unívoco, limito-me a dar uma lista dos vários elementos que compõem, como podem, minha ideologia pessoal.

  1. Em economia, sou francamente liberal. Acho que a economia de mercado não só é eficaz, mas é intrinsecamente boa do ponto de vista moral, e que a concorrência é saudável para todos. Há dois tipos de pessoas que não gostam da concorrência: os comunistas e os monopolistas. Às vezes é difícil distingui-los. Quem foi que disse: “A concorrência é um pecado”? O Dr. Leonardo Boff adoraria ter dito, mas não disse. Quem disse foi John D. Rockefeller. E, como se vê pelo episódio bíblico de Marta e Maria (ou de Esaú e Jacó), a concorrência não é pecado nenhum. Pecado é um sujeito ser John D. Rockefeller ou o Dr. Leonardo Boff.

Como liberal sou contra o socialismo e contra toda forma de Estado corporativo, seja de estilo mussoliniano, seja católico. Acredito, com Sto. Tomás, que há um preço justo para cada coisa. Mas, como observavam os conimbricenses, o número de variáveis a levar em conta no cálculo do preço justo é ilimitado, e a única maneira de encontrá-lo é deixar que as pessoas discutam livremente e admitir que, de algum modo, vox populi, vox Dei. O Estado existe apenas para impedir que os concorrentes se comam vivos, para assegurar as condições logísticas da prática do liberalismo e para, last not leastamparar in extremis quem não tenha a mínima condição de concorrer no mercado.

  1. Em religião, sou tradicionalista e conservador. Não, não sou eu que sou assim. Religião é tradição e conservação. É o fator de imutabilidade que faz contraponto à História, e sem o qual o movimento não seria sequer percebido. Por isto, o Concílio Vaticano II podia ter mexido em tudo, menos no essencial: o rito e a doutrina. Ao contrário, ele virou o essencial de pernas para o ar, apegando-se idolatricamente à imutabilidade do secundário, como por exemplo o celibato dos padres. Tendo invertido o senso das proporções, o Concílio tornou a Igreja uma instituição insensata e ridícula, que condena seus próprios santos enquanto se prosterna ante os inimigos. Mas não defendo a imutabilidade só do Catolicismo: acharia uma insensatez mudar uma só palavra do Corão, da Torá ou dos Vedas.
  2. Em moral, sou anarquista. Acredito que há princípios morais universais, permanentes, que a inteligência discerne por baixo da variação acidental das normas e costumes, e acredito, enfim, que há o certo e o errado. Mas, por isso mesmo, impor o certo é errado, a não ser em caso de vida ou morte. O sujeito que faz o certo só por obediência e sem compreendê-lo acaba por transformá-lo no errado. “Experimentai de tudo e ficai com o que é bom”, recomendava S. Paulo Apóstolo, meu amado guru. É uma questão de viver e aprender. Mas como podemos aprender, se um tirano paternalista nos proíbe de errar? Por isto deve haver a mais ampla liberdade de escolha e de conduta, e a autoridade religiosa deve se limitar a ensinar o certo, com toda a paciência, sem tentar expulsar o pecado do mundo à força. E se nem os religiosos, que por sua dedicação à vida interior têm autoridade para falar dessas coisas, devem impor regras morais à força, muito menos deve fazê-lo o Estado, que afinal não passa de uma gerência administrativa, a coisa mais mundana e prosaica que existe. As leis devem fundar-se apenas em considerações práticas de ordem, segurança e interesse coletivo, muito corriqueiras, e jamais em motivos pretensamente elevados de ética, que terminam por fazer da burocracia estatal um novo clero, e do Código Penal um novo Decálogo. A coisa mais nojenta que existe é a metafísica estatal.
  3. Em educação, sou mais anarquista ainda: não acredito em ensino obrigatório do que quer que seja e noto que a expansão hipertrófica do sistema de ensino, público ou privado, só cria novas formas de analfabetismo. Acho que a educação deveria ser livre, que cada um deve buscá-la na medida de suas necessidades, e considero uma monstruosidade totalitária que, após proclamá-la um direito, o Estado moderno faça dela um direito obrigatório. Acho aliás que o mesmo se dá com muitos outros “direitos”, que você acaba exercendo a muque ou sob pena de prisão. Era um absurdo que as mulheres não pudessem trabalhar, mas é um absurdo maior ainda que, obrigadas a trabalhar, não possam ficar em casa para criar seus filhos. Complementarmente, é um crime que se obrigue uma criança a fazer trabalho de adulto, mas é um crime maior ainda que ela seja impedida de ganhar seu próprio dinheiro, fazendo, se quiser, um trabalho que esteja à altura de suas capacidades e que, no fim, há de educá-la muito mais do que qualquer escola. Tornei-me jornalista ainda quase um menino, aos dezessete anos, e aprendi na redação o que três décadas de escola não me ensinariam. Esta porcaria de governo que temos hoje me tiraria de lá e me poria numa escola para aprender português nos livros de Paulo Coelho.
  4. Em política internacional, e sobretudo em comércio internacional, sou radicalmente nacionalistaprotecionistae tudo o mais que os globalistas odeiam. Isso não quer dizer que eu seja contra a globalização da economia. Muito menos há aí qualquer contradição com a crença liberal acima subscrita. Apenas, entendo que globalismo não é o mesmo que monopolismo das grandes multinacionais, e que, assim como estas se associam umas com as outras – e com certos Estados – para ficar mais fortes, é justo que o empresário nacional, sobretudo o pequeno, busque apoio do seu próprio governo para não ser esmagado pelos monopólios internacionais. Aí a intervenção do Estado não é contra o liberalismo ou a concorrência: ela é, ao contrário, o fator equilibrante que impede a extinção do liberalismo e sua substituição pelo monopolismo. O mais detestável dos socialismos é o socialismo dos ricos.
  5. Em filosofia, sou realista, meus gurus sendo Aristóteles, Sto. Tomás, Leibniz, Husserl e Xavier Zubiri, todos os quais afirmam o poder humano de conhecer as coisas como são. Husserl e Zubiri, no meu entender, foram os únicos filósofos realmente grandes deste século, e perto deles um Foucault ou um Deleuze são apenas meninos de escola. Acho que marxismo, estruturalismo, desconstrucionismo, psicanálise, neo-relativismo, neopositivismo, etc. etc., são filosofias boas para analfabetos funcionais e portanto atendem a uma autêntica necessidade social criada pela rápida expansão do ensino universitário, onde é preciso fabricar professores cada vez mais rápido e cada vez mais barato. Ler o Dr. Freud, Poulantzas, La Pensée Sauvageou Richard Rorty já é esforço bastante para essa gente, que morreria de congestão cerebral após meia página de Zubiri ou das Investigações Lógicas.
  6. Em História, acredito na relatividade do progressoe acho que todo progresso se paga com perdas que nem sempre valem a pena. É claro que aprecio os computadores e os direitos constitucionais, mas penso nos milhões de vidas humanas que foram sacrificadas no altar do progresso e me pergunto se nós, sobreviventes, não saímos diminuídos moralmente pelos próprios benefícios que recebemos2. Um índio, que anda pelado no meio do Xingu, não tem Internet mas não carrega, nas costas, o peso de tantos pecados históricos. O progresso, sem dúvida, é vantajoso. Mas não tem a dignidade de um genuíno ideal moral. É apenas uma conveniência prática, e quando procura se enfeitar com uma ideologia autoglorificadora, com as pompas de uma utopia futurista, sobretudo “científica”, aí, meus filhos, é que ele se encarna num Robespierre, num Lênin, num Hitler, num Mao, num desses monstros que os séculos antigos não poderiam sequer imaginar. Gosto do progresso, não nego. Mas não sou seu entusiasta e não sacrificaria, por ele, a vida de um cabrito. O progresso tanto mais vale quanto menos custa.
  7. Em todos os domínios e circunstâncias, sou contra o governo mundial.Ninguém deve governar o mundo, senão Deus. A ONU, a Unesco, o Banco Mundial, as grandes corporações multinacionais, a Internacional Socialista e todas as entidades do gênero são para mim a encarnação mesma da megalomania e do desejo ilimitado de poder. Isso não quer dizer que os Estados nacionais sejam anjinhos, pois, como já informava a Bíblia, “os anjos das nações são demônios”. Quer dizer apenas que o chefe mundial dos demônios é muito pior do que todos eles somados.

Que as pessoas acostumadas a identificar globalização e liberalismo não vejam aí contradição alguma. A unificação política e administrativa do mundo não beneficiará o liberalismo, mas o extinguirá para sempre, instituindo a “Terceira Via”. Que é a Terceira Via? É aquela síntese de capitalismo e socialismo que, resguardando a liberdade de movimento para as grandes empresas que apoiam o governo, planeja, controla e determina tudo o mais. Essa síntese não é nova. Surgiu na década de 20 e se chama fascismo. Naquela época o fascismo era coisa de escala nacional. Hoje querem fazer um fascismo mundial e, para disfarçar, fazem campanhas alarmistas contra os remanescentes do fascismo old style, como Le Pen e o Dr. Enéias, os mais autênticos bois-de-piranha da boiada universal. Para enfrentar o governo mundial é preciso criar um novo nacionalismo, liberal, democrático, inteligente, capaz de tomar parte no jogo da globalização sem deixar que transformem nosso país numa província ou numa colônia de férias para turistas sexuais. E para isso é preciso resistir ao maquiavélico jogo duplo que, de um lado, exaltando falsamente o liberalismo, tudo submete a um planejamento global e, de outro, incentivando maliciosamente reivindicações socialistas malucas e toda sorte de ressentimentos doentios, divide o povo, desorienta os intelectuais, debilita o Estado brasileiro e nos deixa, a todos, à mercê do poder multinacional.

Foi para atender aos ditames dessa minha ideologia compósita, segundo as várias exigências que me parecessem mais razoáveis no momento e na situação, que já tive a ocasião de votar em Lula e em Roberto Campos, em Maluf e Brizola, em Ulisses Guimarães e em Delfim Netto, em Franco Montoro e em Fernando Henrique Cardoso. Não votei em Collor: tomei um Engove e votei no Lula. Na eleição seguinte, não votei em Lula: tomei um Engove e votei em FHC. Mas escolhi sempre conforme o detalhe concreto do que estivesse em discussão e não conforme aquela linearidade rígida de quem é “direitista” ou “esquerdista” como se torce pelo Coríntians ou se crê em Jesus Cristo: de uma vez por todas e por toda a vida. Pois esta coerência só se pode ter nas coisas profundas, duráveis e do coração, e não nessa agitação epidérmica que é a política, onde, sem aviso prévio, de repente as pessoas, idéias e coisas se convertem em seus contrários.

NOTAS:

  1. Talvez por isso os líderes de maior coerência ideológica em bloco, na história do nosso país, foram também os mais estéreis politicamente, como Carlos Lacerda e Luís Carlos Prestes, ao passo que outros deixaram obra mais durável justamente porque se permitiram ajustes e combições “pragmáticas”.
  2. Isso não implica a adesão a nenhuma teoria maluca da “culpa coletiva”. O que digo é que nos tornamos culpados, individual e concretamente, pelos custos do progresso, na medida em que aceitamos seus benefícios levianamente, sem gratidão consciente pelas gerações que se sacrificaram por nós.

 

Morte aos reacionários

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 10 de dezembro de 1998

Durante algum tempo, acreditei que chamar os outros de “reacionários” era manifestação de um impulso catalogante primitivo, forma incipiente do pensamento categorial observada nas camadas inferiores da evolução biológica. A divisão do mundo em reacionários e progressistas assinalava, segundo essa hipótese, o dualismo invencível da percepção do mundo nos animais dotados de apenas dois neurônios, um contra e um a favor, notando-se às vezes a presença de um terceiro incumbido de paralisar, em caso de dúvida, toda atividade cerebral.

Hoje devo refutar minha própria teoria. Por elementar e grossa que seja, a ação catalogante já manifesta a capacidade de referência a um objeto externo. Ora, esta capacidade não pode estar presente em criaturas que ainda não transcenderam o narcisismo primevo das amebas e protozoários, cuja cosmovisão hermeticamente umbigocêntrica nada tem a manifestar senão expressões de seu próprio estado interno, resumindo-se portanto o seu repertório cognitivo em dois juízos, dos quais o primeiro afirma “que delícia!” e o segundo declara: “Ai, me dói!”

Na célebre classificação das três funções da linguagem por Karl Bühler, o mencionado ato de rotulação nada tem portanto a ver com a função denominativa – que descreve e cataloga objetos e estados do mundo –, mas apenas com a função expressiva, que manifesta o estado do sujeito falante e nada diz exceto sobre ele mesmo.

Força é convir, no entanto, que a terceira função enumerada por Bühler, a função apelativa, em que o emissor se utiliza da linguagem para agir sobre seus semelhantes, intimidando-os ou estimulando-os, não está de todo ausente no mencionado procedimento, e talvez até exerça, nele, o papel preponderante. Prova disto é que, quando um desses animais chama alguém de reacionário, o efeito que exerce sobre os ouvintes é infalível e automático, independentemente de o mencionado epíteto ser inadequado, quer ao seu objeto, quer à correta expressão do sentimento do emissor. Proferido por um membro da espécie “progressista” (nome científico: Homo adorabilis, normalmente traduzido por “pessoa maravilhosa”), o epíteto de reacionário às vezes nada diz sobre o objeto ou o sujeito, mas indica a alta probabilidade de que, no instante seguinte, a horda estimulada por semelhante apelo se precipitará sobre o objeto para fazê-lo em pedaços. A mensagem enfim convoca a tribo para uma operação de linchamento, e raramente o faz sem resposta. Ao longo das décadas, o grito de “Reacionário!”, proferido ante platéias sensíveis, tem exercido sobre elas um efeito magnetizante instantâneo, disparando a imediata ação corretiva que extirpará do reino dos vivos a criatura a quem ocorra a má sorte de ser assim designada.

Mas a ampla comprovação do poder mortífero desse expediente lingüístico, constituída de cem milhões de reacionários assassinados neste século, longe de sugerir aos usuários da expressão a conveniência de empregá-la com extrema moderação, ou mesmo de suprimi-la por completo do arsenal polêmico decente, só fez despertar o desejo de usá-la com mais freqüência ainda, e mesmo de estender o seu emprego, originariamente político, a todos os campos da atividade humana, acusando a presença de reacionários sob toda sorte de moitas artísticas, religiosas, científicas e filosóficas.

Na atual campanha pelo policiamento do vocabulário, que professa suprimir as palavras sujeitas a despertar ódio coletivo, a seleção dos termos proibidos deveria banir em primeiro lugar os de eficácia homicida mais comprovada, e, destes, nenhum supera a palavra “reacionário”: o total de vítimas nos grupos perseguidos por todos os outros motivos somados (raça, religião, sexo, etc.) não perfaz mais de um quinto do total de pessoas assassinadas sob a acusação de reacionarismo. No entanto, a própria campanha pela exclusão das palavras odientas se apresenta, orgulhosamente, como uma caça mundial aos reacionários. Mais uma vez, na gloriosa história da modernidade, o assassino veste a toga de juiz e aponta contra suas vítimas o dedo acusador.

Se…

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 27 de novembro de 1998

Peço ao leitor que examine com atenção o seguinte parágrafo (grifos meus):

“Na Faculdade de Direito ensinaram-me que o profissional capaz era aquele que mais conhecia a lei. No exercício da advocacia percebi que não bastava o conhecimento do direito positivo, necessário era saber o que pensavam os juízes, qual o caminho da jurisprudência. Ao assumir a magistratura, quando não tinha mais a responsabilidade ética de pedir bem, mas sim de decidir, descobri, em meio a angústia e sofrimento, que saber da lei e da jurisprudência não era suficiente. Os dispositivos legais, ao serem aplicados, com freqüência resultavam em decisões injustas. A jurisprudência, por comprometida com situações concretizadas, nem sempre chegava ao justo.”

Agora veja:

Se um jovem advogado confessa que, nos seus anos de estudo, nunca percebeu a importância da jurisprudência e sempre imaginou que a lei escrita bastasse para resolver todos os problemas num tribunal, temos de concluir que esse estudante relapso jamais abriu um livro de introdução à ciência do direito, pois não há um só deles que não o advertisse da enormidade de seu erro, inadmissível não apenas num estudante de letras jurídicas, mas em qualquer cidadão leigo medianamente culto.

Se, não contente de alardear tanta inépcia, o infeliz ainda acrescenta que, durante anos de prática profissional, continuou imaginando que a lei e a jurisprudência juntas perfizessem a encarnação mesma da idéia do justo, só tardiamente descobrindo que não, aí não apenas compreendemos que esse advogado jamais consultou uma só obra de filosofia do direito, já que praticamente todas começam pela discussão das relações problemáticas entre direito e justiça, mas também somos forçados a admitir que, independentemente de sua catastrófica privação de leituras, esse indivíduo é um idiota por natureza, já que a distinção entre o ideal e a prática é coisa de apreensão intuitiva que não requer estudos especiais.

Se, ademais, quem faz essas declarações não as apresenta como o simples mea culpa de um relapso arrependido, mas antes as trombeteia orgulhosamente como uma descoberta inédita e fundamental para o mundo, vendo nelas uma crítica arrasadora ao sistema jurídico e não à sua própria burrice pessoal, não podemos concluir daí senão que estamos diante de um caso patológico de ignorância pretensiosa que beira os limites da insanidade.

Mas, se descobrimos em seguida que o depoente não é um simples advogadinho de porta de xadrez e sim um juiz concursado e togado, aí à nossa reação de espanto ante sua anomalia individual se soma um sentimento de angústia e preocupação quanto ao sistema Judiciário inteiro, que, afetado de uma falha grave em seu processo de seleção, permitiu que as altas responsabilidades da magistratura fossem entregues às mãos de semelhante cretino.

Se, para ir ainda mais longe no território do absurdo, o magistrado em questão não é apenas magistrado, mas também professor de direito, nossa angústia ante o estado presente do sistema Judiciário se converte em temor maior ainda quanto ao seu estado futuro, tendo em vista a ameaça de propagar-se entre os magistrados em formação um tão pernicioso exemplo, sacramentado pela aprovação oficial e conjunta das autoridades judiciárias e pedagógicas.

E, por último, se constatamos que esse professor de ignorância não é apenas um obscuro juiz de comarca do interior, docente de uma faculdade de fundo de quintal, mas sim juiz de um Tribunal de Alçada e professor de uma prestigiosa Escola de Magistratura, e que em vez de ser objeto de chacota e desprezo na roda de seus colegas ele é seriamente tido na conta de uma autoridade intelectual e de um maître à penser habilitado a remoldar todo o pensamento jurídico nacional, então, meus filhos, é a derrocada final, tudo está perdido e já não há mais nada a fazer por este país insano, sendo até mesmo inútil prosseguir escrevendo o presente artigo.

Encerro-o, portanto, declarando que o trecho citado se encontra na abertura do livro Magistério e Direito Alternativo , de autoria de S. Exa. o dr. Amílton Bueno de Carvalho, juiz do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, professor da Escola Superior da Magistratura do mesmo Estado e, last but not least, o principal mentor da nova escola do “direito alternativo”.