De Bobbio a Bernanos

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 7 de janeiro de 1999

Este século começou com a proclamação quase universal do fim das democracias e, após uma sucessão de experiências ditatoriais com um saldo de quase 200 milhões de mortos, termina com o universal reconhecimento de que o melhor é a gente ir tratando de gostar da democracia mesmo.

Pela primeira vez na história dos tempos modernos a parte falante da Humanidade parece ter entrado num acordo. Embora ainda haja ditaduras aqui e ali, a idéia de ditadura perdeu toda respeitabilidade intelectual, e acredita-se, com platônico otimismo, que aquilo que desaparece do céu das idéias deve também desaparecer deste baixo mundo mais cedo ou mais tarde. E, embora ninguém atribua às atuais democracias a virtude da perfeição, há um consenso geral que Norberto Bobbio resumiu com uma sentença lapidar: “A única solução para os males da democracia é mais democracia.”

Mas será essa a fórmula de um consenso ou a fórmula de um problema?

Em primeiro lugar, que é “mais democracia”? Um liberal acha que é menos intervenção do Estado na economia; um social-democrata acha que é mais proteção do Estado aos pobres e desamparados. Assim, não apenas se reedita o velho confronto de capitalismo e socialismo, ambos com o nome de democracia, mas se chega no fim a um beco sem saída, porque para realizar a primeira alternativa é preciso ampliar o controle estatal da vida privada (no mínimo para que o Estado desprovido de seu fardo econômico adquira novas funções que legitimem sua existência), e para realizar a segunda é preciso aumentar os impostos e inflar a burocracia estatal até paralisar a economia e tornar os pobres ainda mais desamparados.

Em segundo lugar, há boas razões para duvidar que “mais democracia” seja ainda democracia. A democracia não é como um pão, que cresce sem perder a homogeneidade: à medida que ela se expande, sua natureza vai mudando até converter-se no seu contrário. O exemplo mais característico – mas não o único, certamente – é o que se passa com a “democratização da cultura”. Num primeiro momento, democratizar a cultura é distribuir generosamente às massas os chamados “bens culturais”, antes reservados, segundo se diz, a uma elite. Num segundo momento, exige-se que as massas tenham também o direito de decidir o que é e o que não é um bem cultural. Aí a situação se inverte: oferecer às massas os bens de elite já não é praticar a democracia: é lançar à cara do povo um insulto paternalista. As camadas populares, afirma-se, têm direito à “sua própria cultura”, na qual a música rap pode ser, eventualmente, preferível a Bach. A intelectualidade entrega-se então a toda sorte de teorizações destinadas a provar que os bens superiores antes cobiçados pela massa não têm, no fim das contas, mais valor do que tudo o que a massa já possuía antes de conquistá-los. E, quando enfim a antiga diferença entre cultura de elite e cultura de massas parece restabelecida sob o novo e reconfortante pretexto da relatividade, os intelectuais ficam mais revoltados ainda, ao descobrir que todos os bens, equalizados pelo universal relativismo, se transformaram em puras mercadorias sem valor próprio: Bach tornou-se fundo musical para anúncios de calcinhas e o rap, com a venda de discos, gerou uma nova elite de milionários, cínicos e prepotentes como a elite mais antiga jamais teria ousado ser. Idêntico processo repete-se nos domínios da educação, da moral e até mesmo da economia, onde cada nova leva de beneficiários do progresso se apega a seus novos privilégios com uma avareza e uma violência desconhecida das elites mais velhas: o fascismo surgiu entre as novas classes médias criadas pela democracia capitalista, e a Nomenklatura soviética, a mais ciumenta das classes dominantes que já existiu neste mundo, nasceu da ascensão de soldados e operários na hierarquia do Partido.

Em terceiro lugar, vem talvez o perigo mais grave: um consenso em favor da democracia só é promissor em aparência, porque a democracia, por definição, consiste em prescindir de todo consenso. Democracia não é concórdia: é uma maneira inteligente de administrar a discórdia. E o clamor universal por “mais democracia”, na medida mesma em que se afirma como um consenso, já dá sinais de não poder suportar nenhuma voz discordante.

Assim, há razões para temer que, se o século 20 começou pedindo ditaduras e terminou por exigir a democracia, o novo século acabe por seguir o trajeto precisamente inverso. Afinal, dizia Bernanos, a democracia não é o oposto da ditadura: é a causa dela.

Gramscianos enfezadinhos, uni-vos

Olavo de Carvalho

26 de dezembro de 1998

Alguns dias atrás, tendo encontrado na Internet um sitebrasileiro dedicado a Antonio Gramsci – o ideólogo italiano que critico duramente em A Nova Era e a Revolução Cultural –, propus aos responsáveis pela página um intercâmbio de links, argumentando, em tom de blague, que seria bom constar da sua bibliografia pelo menos um livro contra o gramscismo, “para não dar na vista” já que alegavam ser tão democráticos. Os fulanos levaram a coisa a mal, subiram nos tamanquinhos e, em pleno dia de Natal, me enviaram uma carta enfezada.

Reproduzo aqui, seguido da minha resposta, esse singular documento (grifos meus):

Carta de Luiz Sérgio Henriques, Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira

Sr. Olavo de Carvalho:

Surpreendeu-nos o tom da mensagem que nos foi enviada com a sua assinatura. Desde logo, o senhor, que tanta questão faz de falar em “amor à democracia”, não parece nem um pouco constrangido em nos fazer imposições para que entre nós se estabeleça algum diálogo. Já por isto, não lhe reconhecemos autoridade para nos cobrar a prática da democracia, nem aceitamos a imposição de “condições” para escolhermos os links a incluir em nosso site.

Certamente, registraremos em nossa “Bibliografia”, na próxima alteração do site, o seu livro sobre Gramsci, que até então desconhecíamos. Faremos isso porque nossa intenção, nessa parte do site, é documentar tudo o que se escreveu sobre Gramsci em nosso País, contra ou a favor, de boa ou de má qualidade. Nesse sentido, agradecemos-lhe a indicação do seu livro e lhe solicitamos a gentileza de nos enviar outros títulos sobre Gramsci que, porventura, o senhor tenha produzido (ou de que tenha conhecimento) e que ainda não constem da nossa “Bibliografia”.

Essa inclusão, contudo, não implica de modo algum que consideremos necessário, conforme o senhor afirma, que conste em nossa “Bibliografia” um livro “contra” Gramsci “para não dar na vista”. “Dar na vista” de quem? Felizmente, como já não vivemos numa ditadura, não temos muita preocupação — aliás, temos muito orgulho — em sermos identificados como um site de esquerda, empenhado na luta pela democracia e pelo socialismo, o que, aliás, está expresso com todas as letras na apresentação do mesmo. Para nós, é questão de critério e seriedade que essa definição político-ideológica fique “à vista” de todos os que freqüentam “Gramsci e o Brasil”.

Consideramos muito positivo que o senhor tenha na Internet um site pessoal, no qual expressa suas posições políticas e filosóficas, entre elas as que criticam Antonio Gramsci. Estamos seguros de que o senhor também é a favor de que pessoas de esquerda, identificadas com Gramsci e com o socialismo, possuam seu próprio site, no qual manifestam outras posições, radicalmente diferentes das suas.

Em “Gramsci e o Brasil”, incluímos “links” de páginas que julgamos importantes para a difusão de nossos valores democráticos e socialistas — e não colocamos, aos “linkados”, nenhuma “condição” para essa inclusão. Portanto, não estamos interessados no intercâmbio que, sob “condições”, o senhor nos propõe. Sem mais, no momento, também lhe desejamos os melhores votos.

Luiz Sérgio Henriques
Carlos Nelson Coutinho e
Marco Aurélio Nogueira,

responsáveis por “Gramsci e o Brasil”.
http://www.artnet.com.br/gramsci
gramsci@artnet.com.br

Resposta de Olavo de Carvalho

Prezados gramscianos,

Muito obrigado pela promessa de citar o meu livro na sua bibliografia, mas de que raio de imposição vocês estão falando? Não sabem a diferença entre impor e propor? A confusão na sua carta é patente: começam reclamando que “impus” e terminam confessando que “propus” – e com isto mostram que sua queixa de “imposição” foi puro fingimento. Um desafio, por definição, não se impõe. Propus um e vocês correram da raia. Isto foi tudo. Se em seguida tentaram disfarçar, encobrindo sua defecção sob as aparências de um nobre ato de independência moral, não posso, sinceramente, dizer que esperava de vocês outra atitude.

Quanto ao exercício da democracia, supus talvez ingenuamente que cobrá-lo fosse um direito de todos os brasileiros e nunca imaginei que fosse necessário ter alguma autoridade especial para isso. Peço informar como se adquire essa autoridade. Anos de militância a favor do regime que assassinou 100 milhões de pessoas seriam talvez credencial bastante? Ou é necessário, depois disso, limpar-se de toda má-consciência mediante duas ou três palavrinhas de abjuração ditas da boca para fora?

Também não sou eu quem faz tanta questão de falar em “democracia”: vocês é que repetem obsessivamente essa palavra a cada três linhas, não sei se para exorcizá-la ou para criar um simulacro de parentesco entre ela e o “socialismo”, termo antinômico do qual fazem acompanhá-la com uma constância verdadeiramente pavloviana.

Qualquer que seja o caso, colocarei na minha página um linkpara a sua, que funcionará como uma bela coleção de notas de rodapé para confirmar minha opinião de que o gramscismo é apenas uma forma elegantemente perversa de totalitarismo.

Sua resposta também será ali reproduzida, para que todos os visitantes tenham o prazer de conhecer a mentalidade gramsciana ao vivo e a cores. Muitos deles já conhecem essa mentalidade, em geral, mas terão aí a oportunidade de captar uma nuance especificamente brasileira que ela vem adquirindo, a qual consiste em cultivar propositadamente o medo da extinta ditadura para poder incriminar como prenúncio de truculências direitistas qualquer crítica mais veemente que se faça à esquerda nacional. É com essa nuance, aliás, que vocês procuram insinuar que eu, um cidadão sem cargo público nem dinheiro nem partido, sou uma ameaça viva contra a existência do seu site. Que bela comédia!

Mas raciocinem, por favor: se eu desejasse extinguir o seu site, por que haveria de propor um intercâmbio de links com ele?

Com meus melhores votos de Natal e Ano Novo,

Olavo de Carvalho

PS 1 – Caso vocês não tenham compreendido o desafio que lhes propus, explico de novo: podem vir em dois, em três ou em mil, e lhes provarei, por a + b, que gramscismo é totalitarismo, por mais que pareça outra coisa. Não fiquem com medo de mim, pois não sou ponta de nenhum iceberg direitista. Sou apenas um rapaz latino-americano e falo somente em meu próprio nome.

PS 2 – Vejo que vocês comemoraram o Natal reunindo-se em três para bolar uma resposta coletiva, quase um abaixo-assinado. Nunca vi maneira mais extravagante (ou gramsciana) de celebrar o nascimento de N. S. Jesus Cristo. Espero que pelo menos o aniversário de Antonio Gramsci vocês passem festivamente com suas famílias em vez de se irritar pensando em mim.

Comentário extra

Os signatários da carta de Natal dizem que não impõemnenhuma condição para colocar algum link na sua homepage, mas, ao mesmo tempo, confessam que só escolhem os que lhes pareçam “importantes para a difusão de nossos valores democráticos e socialistas” – o que subentende evitar criteriosamente os que possam difundir valores democráticosanti-socialistas. É contraditório, mas não é nada estranho. Os militantes gramscianos fazem exatamente assim por toda parte – jornais, editoras, estações de TV, universidades –, professando em palavras a abertura pluralista e praticando a seletividade mais sectária, até que reste uma só voz audível e tudo o mais seja eco. A cultura brasileira vai se transformando assim num vasto sistema de hyperlinks gramscianos, sempre sob a alegação de democracia.

Vocês já repararam, por exemplo, que quando algum direitista ilustre como Roberto Campos ou Miguel Reale é entrevistado na TV ele é sempre submetido a um interrogatório agressivo que procura comprometer sua imagem? Já notaram que, inversamente, quando o entrevistado é um figurão esquerdista, como Paulo Freire, José Saramago ou Oscar Niemeyer, as perguntas são sempre de natureza a mostrar que são criaturas lindas-maravilhosas? Por que só põem esquerdistas para entrevistar direitistas, enquanto os esquerdistas têm o privilégio de ser sempre entrevistados por seus simpatizantes?Acham que isso é coincidência? Não é não. É um sistema, é uniforme e é mundial. Leiam este parágrafo de Alain Peyrefitte (ex-ministro do Interior do governo gaullista), escrito quando estava no poder o socialista Mitterand:

O domínio da esquerda sobre os jornalistas, reforçado pela tutela política da televisão, induziu àquilo que um socialista lúcido, Thyerry Pfister – jornalista que foi conselheiro técnico do Primeiro-ministro Pierre Mauroy – chama ostensivamente de “lógica manipuladora”. Esta exprime-se mediante a proximidade, habilmente mantida, entre a esfera do poder e os “formadores de opinião”, através de um “jornalismo de conivência”.

Já se viu uma conivência mais acentuada do que, por exemplo, no dia em que o presidente da República se fez interrogar na televisão pelas esposas de dois de seus ministros? Alguém será capaz de imaginar o general de Gaulle, Georges Pompidou ou Valéry Giscard d’Estaing fazendo-se interrogar assim “em família”? Que reações essa prática não teria suscitado!

Alain Peyrefitte, La France en Désarroi, em De la France, Paris, Omnibus, 1996, p. 1034.

Esse gênero de manipulação tem nome: é a revolução cultural gramsciana.

E aqui vai, como prometido, o link para a página democrática onde quem não é comunista não tem vez:

Gramsci e o Brasil

Olavo de Carvalho

Batendo com duas mãos

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 24 de dezembro de 1998

O único tema importante deste fim de século, e por isto mesmo o mais ausente da imprensa brasileira, é o governo mundial que está se formando não sei se sob as nossas barbas ou sobre as nossas cabeças, e do qual a globalização financeira, tão falada, não é senão meio e instrumento. Tenho tentado, em vão, introduzir uma visão mais abrangente desse assunto nas páginas dos nossos jornais, encontrando neles (com a honrosa exceção do JT ) aquela resistência típica do cérebro cansado que, não sabendo como processar uma informação nova, se nega a recebê-la.

Uma brecha no muro da indiferença burra foi aberta por Arnaldo Jabor, na sua coluna de 11 de novembro em O Globo , onde ele denuncia o Multilateral Agreement on Investment (MAI) como um golpe fatal na autonomia dos Estados nacionais. Mas não sei se devo cumprimentar o colunista pela sua sensibilidade de perceber o fato novo ou lamentar que o tenha interpretado segundo os velhos cânones do nacionalismo de esquerda, os quais nunca ajudaram a compreender nada e não é agora que vão começar a ajudar.

O MAI, explica Jabor, é um acordo internacional que “dá poderes totais às corporações mais fortes do mundo (leia-se G-7), para processar os países signatários (leia-se ‘emergentes’) por qualquer política governamental que possa prejudicar seus lucros”. A informação é perfeita. Perfeita é também a previsão das conseqüências: o MAI “será assinado pelos Estados nacionais, mas é todo talhado para acabar com o poder dos mesmos Estados nacionais”.

O absurdo é que, sabendo de tais coisas, Jabor não consiga equacioná-las senão nos termos do consagrado esquema neoliberalismo versus social-democracia, com a ênfase na voracidade pirata do primeiro e nas virtudes salvíficas da segunda. Ele se mostra escandalizado, com efeito, de que tamanho acréscimo do poder das empresas sobre os Estados ocorra justamente na hora em que, prenunciando dias melhores, ia “renascendo a preocupação de se instalar um ‘novo keynesianismo’ global contra a voracidade financeira, preocupação ostensiva até de homens como Alan Greenspan, diretor do FED”. O keynesianismo, para os que não sabem, é uma doutrina que, sem chegar a abolir o capitalismo, favorece o fortalecimento do papel do Estado na economia – uma tendência sintética que hoje ressurge com o nome de “terceira via”, e na qual Jabor acredita residir toda a esperança nacional de sair da paralisia patrimonialista sem cair vítima “da fome cega do capitalismo corporativo”.

Desse ponto de vista, a globalização do poder é idêntica a neoliberalismo (liberdade total para as empresas) e oposta à social-democracia (controle da economia privada pelo Estado). Assim, embora enfatizando nominalmente a novidade absoluta do acordo e rejeitando com veemência os argumentos globalistas que vêem nele apenas a inócua implementação de práticas jurídicas já existentes, Jabor acaba por reduzir o episódio a mais um capítulo da velha luta entre o imperialismo capitalista e o esquerdismo nacionalista. Dificilmente alguém poderia com mais eficácia neutralizar aquilo que afirma.

O esquema neoliberalismo-social-democracia, bem como sua pretensa síntese ou “terceira via”, não apenas não permite compreender nada, como foi posto em circulação precisamente para que ninguém compreendesse nada. Foi posto em circulação pelos mesmos poderes que conceberam o MAI, aos quais serve de areia para jogar nos olhos da imprensa. Os homens que dirigem o mundo não são neoliberais nem social-democratas, e aliás não teriam chegado aonde chegaram se não tivessem passado anos estudando a teoria e a técnica do chamado “gerenciamento de conflitos”, justamente para aprender a controlar o fluxo dos acontecimentos mediante o jogo de oposições em cuja realidade aparente se deleita, se embasbaca e se confunde a imprensa do Terceiro Mundo, como um sapo hipnotizado pela serpente.

Se o globalismo que vai arrasando os Estados nacionais é monopólio dos neoliberais e imperialistas, da “direita” em suma, como se há de explicar que a esquerda, em toda parte, lute pela uniformização mundial de direitos (como por exemplo os do trabalhador imigrante), a qual resulta em golpear os Estados nacionais mais fundo – e mais baixo – do que estes foram atingidos pelo MAI? Também não tem aí explicação o fato de que, desejando deter a globalização, a esquerda fomente por toda parte ressentimentos raciais que, integrando os ressentidos na grande comunidade mundial da sua raça, os transforma ipso facto em fatores debilitantes de qualquer união nacional possível. E muitíssimo menos se explicaria racionalmente, na perspectiva jaboriana, a mobilização histérica das esquerdas em favor de um ecologismo global que, por definição, não pode ser administrado autonomamente pelos Estados nacionais, e que, aplicado ao Brasil, já resultou em entregar a ONGs estrangeiras o controle de regiões mais extensas do que alguns Estados da Federação, sem encontrar oposição senão entre os militares, tradicionais bêtes noires da fantasia esquerdista.

Não, não: o globalismo não é neoliberal, pela simples razão de que não é one way . É um movimento de mão dupla, que tanto debilita os poderes nacionais pela apologia do livre comércio e da abolição das fronteiras, quanto o faz pela disseminação de insatisfações e reivindicações esquerdistas que, não podendo ser atendidas na escala dos Estados, terminam por subjugar as nações ao despotismo branco das organizações supranacionais.

Dos esquerdistas que colaboram para esse fim, somente uns poucos o fazem com plena consciência, e destes não posso dizer em público o que penso.

Podem ser facilmente identificados pelo teor ecológico, futurista e vagamente esotérico (“Nova Era”) do seu discurso. Nomeei um deles, semanas atrás, numa nota publicada na revista República , da qual me permito recordar um trecho:

“No folclore midiático brasileiro, ‘esquerda’ ainda significa aquele velho complexo de progressismo e nacionalismo que se opunha às multinacionais. Mas essa esquerda não existe mais: todos os seus remanescentes se tornaram servidores das causas neo-esquerdistas (negros, gays, aborto, etc.) calculadas para debilitar os Estados nacionais e favorecer o poder global.

Todos servem a um novo senhor, parasitando o prestígio do velho – uns por ingenuidade, outros por excesso de esperteza. Por enquanto ainda iludem a opinião pública e talvez a si mesmos. Mas, aos poucos, todos, sem exceção, irão perdendo as inibições, tirando as máscaras e declarando, alto e bom som, quem são e a que vieram. Com sua entrevista em Veja de 26 de agosto, o dr. Leonardo Boff tornou-se o pioneiro desses globalistas neo-assumidos: ‘O mundo – declarou ele – vai ao encontro de uma grande crise, e a saída será a criação de uma central de gerenciamento planetário.’ Que o advento desse tremendo poder central terá algo como a glória e o prestígio de uma nova revelação religiosa, é algo que também o sr. Boff não esconde: ‘Segundo ele, afirma Veja , os empresários andam com uma fome imensa de espiritualidade e estão atentos para a necessidade de uma nova ordem mundial.’ Governo mundial e Nova Ordem: é o paraíso espiritual do FMI.”

Quanto aos outros, que colaboram às tontas e por mera incapacidade de escapar do esquema dualista, a estes digo apenas que está na hora de acordar, de perceber que as causas e bandeiras nada significam apenas pelas belas palavras do seu enunciado abstrato (direitos, igualdade, humanismo, etc., etc.), mas pelo esquema concreto de poder no qual se enquadram como lances de uma estratégia bem complicada, na qual o bem é às vezes calculado precisamente para gerar o mal.

Muitos se gabam de ter superado o esquematismo esquerda-direita, mas continuam presos numa versão mais sutil do mesmo esquema, que é o confronto progressismo-reacionarismo. O futuro deste país depende de que essas pessoas, entre as quais estão algumas de nossas melhores cabeças e alguns corações sinceros, se dêem conta finalmente de que nenhum poder é uniformemente progressista ou reacionário, mas que todas as ambições políticas justas ou injustas, neste mundo, sempre se realizaram dosando espertamente uma coisa e a outra e batendo, em suma, com duas mãos.