Velhas histórias

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 10 de junho de 1999

No dia 3 de abril de 1964, o coronel Hélio Ibiapina Lima recebeu um prisioneiro no QG do IV Exército, Recife. Reconheceu instantaneamente o velho sargento, comunista até à demência, mas bom soldado, que servira sob o seu comando. O prisioneiro estava amarrado e ele mandou desamarrá-lo. Estava esfomeado e ele mandou alimentá-lo.

Quando o coronel saiu, um grupo de agitadores direitistas arrancou o prisioneiro do QG e o levou pelas ruas, com um laço no pescoço. Alguém avisou o coronel e ele foi no encalço da turba. Mandou parar a festa e levou o prisioneiro de volta, sob o olhar furioso da multidão. O prisioneiro, aterrorizado, agarrava-se ao braço esquerdo do coronel, que com a outra mão se agarrava por sua vez ao cabo da pistola 45. Na primeira esquina o coronel ofereceu libertá-lo, para evitar novas tentativas de linchamento. O prisioneiro achou que estaria mais seguro no quartel. Ele estava com bolhas nos pés, por ter sido obrigado a caminhar descalço sobre o asfalto quente, e o coronel mandou medicá-lo. Alguns dias depois, o prisioneiro soube que havia um pedido de habeas-corpus em seu favor e foi pedir ao coronel que não o soltasse, pois os perseguidores rondavam o quartel à sua espera. Ficou e sobreviveu.

O nome do prisioneiro era Gregório Bezerra. As famílias de outros comunistas – Waldir Ximenes de Farias, Miguel Dália, Almir Campos de Almeida Braga –, quando souberam dos acontecimentos, foram pedir às autoridades que seus parentes presos fossem colocados sob a guarda do coronel Ibiapina, com quem estariam seguros.

No entanto, há 35 anos ouço contar que Gregório Bezerra foi espancado sob as ordens do coronel Ibiapina. Eu próprio, imbuído de credulidade residual mesmo depois de morta há duas décadas minha fé no comunismo, repeti essa história numa conferência no Instituto de História e Geografia Militar, por mero espírito de porco, pois fora avisado de que o malvado personagem, agora general e presidente do Clube Militar, estava na platéia. Ele não me levou a mal. Apenas me chamou a um canto para contar os fatos, com documentos e testemunhos para comprová-los.

Mais uma vez, depois de tantas, amaldiçoei minhas orelhas que, por companheirismo saudosista ou mera falta de malícia, tinham novamente sido enganadas pelos comunistas, com as bênçãos do arquimeloso d. Paulo Evaristo Arns.

Agora a lenda é publicada de novo, pela enésima vez, pelo jornal O Globo , e ainda haverá quem acredite, principalmente porque vem naquele tom casual de banalidade transitada em julgado, disfarçada como mero aposto num parágrafo que trata de outra coisa. É o mais velho truque dos intrigantes: enxertar a mentira comprometedora numa conversa qualquer, de passagem, como quem não quer nada, contando com a vulnerabilidade subliminar do ouvinte distraído. Tomando carona num outro assunto, a discreta calúnia não se expõe ao risco de uma discussão e acaba sendo aceita por automatismo. Repetida a operação umas centenas de vezes, o absurdo se impregna no fundo do subconsciente popular, pronto para resistir, com todas as forças da irracionalidade, a qualquer exame sensato. Quem já não acreditou, por esse meio, em histórias de orgias prodigiosas em claustros de carmelitas? Há toda uma engenharia da credulidade, mas ninguém jamais a praticou com a arte e a persistência dos comunistas. A lenda do torturador Hélio Ibiapina está assim incorporada aos arquivos da estupidez universal, o mais inabalável patrimônio histórico do mundo, e continuará sendo publicada pelos séculos dos séculos, amém.

Em aditamento a meu artigo “A história oficial de 1964”: – Um respeitável acadêmico do Rio, ex-militante da direita civil armada, me confirmou que organizações direitistas de São Paulo e do Paraná receberam, às vésperas do 31 de março, caixas e mais caixas de metralhadoras INA. Mais uma prova da minha teoria: a direita civil estava pronta para um massacre de esquerdistas, que a inesperada iniciativa das Forças Armadas paralisou no momento decisivo. Se algum comunista chegou vivo ao fim de 1964, deveu isto a seus desafetos fardados. Oh, vergonha, mãe do ressentimento!

Piada sinistra

Olavo de Carvalho

Ombro a Ombro, Ano XII, no 133, junho de 1999

Quando criança, fiquei muito impressionado ao ver na série de documentários Século XX o célebre prefeito de Nova York, Fiorello La Guardia, destruindo a marretadas uma montanha de máquinas caça-níqueis. Também fiquei impressionado ao ver há poucos dias, na TV brasileira, o governador Anthony Garotinho destruindo a marretadas uma pilha de armas apreendidas. Era o mesmo símbolo, nos dois casos, ambos calcados no estereótipo de Elliot Ness triunfante sobre o mal e a desordem. Mas o que me impressionou foi constatar como duas cenas aparentemente similares e originadas num modelo comum podiam ser, no seu sentido profundo, simetricamente opostas. Os caça-níqueis de La Guardia tinham sido apreendidos da Máfia: durante anos tinham servido à jogatina ilegal. As armas foram apreendidas de cidadãos honestos: nenhuma jamais serviu à prática de crime, nem havia o menor sinal de que seus proprietários planejassem usá-las para esse fim.

O aparente enigma da identidade dos símbolos com oposição de significados resolve-se pela velha fórmula de Karl Marx: a História se repete como farsa. E no caso brasileiro a farsa ainda teve o desplante de repetir-se a si mesma, ampliada em escala federal, na hora em que o presidente da República enviou ao Congresso a nova lei que proíbe em todo o país a venda de armas.

Embora o presidente tivesse ao menos a prudência de declarar que a nova lei tem um sentido “simbólico”, o que é o mesmo que confessar que é inócua e não vai diminuir em nada a violência e o crime, é manifesto que ela se inspira no exemplo do governador carioca.

Ora, o que Anthony Garotinho tem a ensinar ao país sobre o controle da criminalidade é rigorosamente nada. Até o momento, a campanha “Rio Desarme-se” não tomou uma única arma de bandido. Sua única realização no combate à criminalidade foi desarmar as vítimas. E que essa estupidez se consume por meio de pressão publicitária ou de uma lei não faz a menor diferença. Fiorello La Guardia acabou com a exploração dos caça-níqueis em Nova York porque tomou aos criminosos o instrumento do crime. Não havia por lá nenhum Anthony Garotinho para lhe sugerir que tentasse obter o mesmo resultado apreendendo as moedas do bolso dos cidadãos.

Na verdade, não foi essa a única vez em que o governador demonstrou sua tendência incoercível à inversão grotesca da ordem das coisas. Quando um bandido foi morto pela polícia num tiroteio, e seus comparsas, em protesto, invadiram o Túnel Santa Bárbara para atear fogo em viaturas de propriedade do Estado, Garotinho ficou solidário com os revoltosos, subindo o morro para pedir desculpas pela brutalidade… dos policiais.

As duas atitudes, na verdade, se complementam: se bandido também é povo, logo, povo também é bandido. Uma vez que os bandidos são bons cidadãos que merecem desagravo oficial quando enfrentam a polícia a tiros, nada mais lógico do que apreender as armas do povo para que não cometa qualquer atrocidade contra assaltantes, assassinos, estupradores e traficantes. Depois disto restaria ainda a hipótese de agredi-los a tapa, se não fosse cruel atentado contra os direitos humanos.

Mas coerente é também o governador com a política de seu partido, pois, se alguém ainda se lembra, foi sob idêntica alegação e promessa de diminuir por esse meio a violência no Rio que o ex-governador Leonel Brizola, criador e primeiro mentor de Garotinho, suspendeu toda ação da polícia nos morros, instaurando ali o regime feudal dos chefes do tráfico que exclui do Estado de direito os tristes habitantes daquela parte da cidade. Na época, não foi menor do que hoje a gritaria em favor da “nova política de segurança pública” que, como a de Garotinho, prometia mundos e fundos. O fracasso inevitável custou, para os cidadãos cariocas, milhares de vidas. Para o sr. Leonel Brizola, custou apenas uns arranhões passageiros na sua reputação de político esperto. A única diferença é que na época ainda houve na imprensa alguma oposição a Brizola, enquanto hoje Garotinho conta com o apoio maciço da mídia monoliticamente dominada pela esquerda.

Coerente, ainda, é o governador com a estratégia da revolução comunista, que seu partido tão bem representou ao longo das últimas décadas. Pois Lênin, logo após chegar ao poder, recomendava aos agentes do novo governo: “Procure catalogar todos aqueles que possuam armas de fogo, para que as mesmas sejam confiscadas no momento oportuno, tornando impossível qualquer resistência à nossa causa.”

Coerente não só com a linha geral, mas com as tradições de luta da esquerda no Brasil. Pois, se durante os anos da ditadura militar os esquerdistas presos selaram no cárcere uma aliança com o banditismo organizado, na esperança de cooptá-lo para a luta armada, e se nos anos seguintes a proteção ostensiva do brizolismo aos senhores dos morros consolidou esse pacto infernal, é sensato que, numa etapa seguinte da tomada do poder, o esquerdismo já elevado à condição de dominador do Estado reparta com seus tradicionais aliados o monopólio da posse das armas, excluindo desse privilégio o restante da população. Cercado desde baixo pelas forças policiais devidamente doutrinadas, e desde cima pelo exército informal dos morros, o povo inerme e acovardado nada mais poderá fazer senão dizer amém ao formidável poder totalitário que não terá sequer de recorrer à violência para fazer-se obedecer.

Coerente, ademais, com as grandes mudanças havidas no cenário ideológico da esquerda internacional. Pois, se de um lado a estratégia gramsciana da ocupação lenta e sutil do aparelho de Estado foi progressivamente aceita como superior à técnica leninista da insurreição, de outro lado a velha ortodoxia da estatização radical dos meios de produção cedeu lugar a um melting pot meio socialdemocrático, meio fascista, onde as grandes empresas, seguras de terem um lugar privilegiado na nova ordem, passam a colaborar generosamente com a esquerda em ascensão, sabendo que sua liberdade econômica não será debilitada mas sim reforçada pela extinção de todas as demais liberdades. Aderindo à estratégia mais recente, mas conservando um pé nas tradições pedetistas, Garotinho soube tirar proveito do que há de melhor nos dois mundos, pondo o prestígio posadamente nacionalista da velha esquerda a serviço do oportunismo internacionalista da nova.

Coerente é finalmente o governador ao defender a hipótese de diminuir a criminalidade tomando as armas de brinquedo das mãos das crianças. Coerente porque nada mais lógico, para acabar com a brincadeira, do que um garotinho tomar os brinquedos dos outros.

É verdade que Garotinho não saiu tomando brinquedos à força, covardemente, mas ofereceu trocá-los por chocolates. Garoto esperto. Mas, se a proposta for estendida aos delinqüentes, adultos na maioria, não creio que chocolates sejam ainda uma barganha tentadora. Será preciso trocar as metralhadoras Uzi e os fuzis AR-15 por papelotes de cocaína — com o risco, é claro, de que os traficantes venham a acusar o governo de concorrência desleal.

Quando o governador promete, com atos dessa natureza, libertar o Rio do crime e da violência, o mínimo que qualquer pessoa em seu juízo perfeito deve concluir é que está diante de uma piada sinistra. E seria realmente uma piada, se a proibição das armas tivesse o objetivo alegado pelo governador e não o de simplesmente enfraquecer a população para que não resista, amanhã ou depois, às imposições da nova ordem socialista.

É possível, no entanto, que, mesmo do ponto de vista do alegado propósito de refrear o banditismo, essas medidas surtam algum efeito. Pelo menos um efeito psicológico: alguns bandidos devem estar tão perplexos de que alguém pretenda combatê-los por meios tão formidavelmente inócuos, que se absterão de fazer todo mal pelos próximos meses e se manterão paralisados, em ansiosa expectativa, supondo que o governador, ao fazer-se de louco, deva estar escondendo alguma carta na manga.

Quando passar esse efeito, quando eles perceberem que as autoridades não têm nenhuma arma secreta por baixo da afetação de esquisitice, que, bem ao contrário, o governo apostou na encenação precisamente porque nada mais pode nem pretende fazer contra eles, aí uma imensa gargalhada de alívio sacudirá os morros, e na cidade haverá choro e ranger de dentes.

E então surgirá a pergunta temível, que por enquanto ninguém quer fazer: se amanhã ou depois, num assalto, for morto a tiros algum ex-proprietário de arma que a tenha depositado piedosamente no altar da “Rio Desarme-se”, os autores da lei de proibição das armas serão responsabilizados criminalmente por o haverem desprovido de seus meios de legítima defesa?

A resposta é: Não. A campanha e a lei que gerou foram concebidas de modo a que seus criadores possam lucrar com a mera hipótese de seus efeitos positivos, sem ter de arcar com a responsabilidade de qualquer conseqüência negativa, por mais material, direta e imediata que seja. No entanto, é fato: submetido a um massacre publicitário que não deu a menor chance aos argumentos contrários, o povo aceitou a proposta. Embriagados de crença milenarista na possibilidade de mudar a realidade por um gesto patético de autonegação histérica, milhares de bons cidadãos incapazes de matar uma mosca fizeram fila para livrar-se de revólveres enferrujados e espingardas de caça, na esperança louca de assim abrandar uma violência para a qual nem eles nem suas armas jamais contribuíram no que quer que fosse. Jamais um contrato leonino foi assinado pela parte mais fraca com tanta presteza, alegria, confiança e esperança. Não faltou, no rito de autocastração popular, nem mesmo um esforço para envolver a mistificação numa atmosfera beatífica de sacrifício religioso, com os altares das igrejas abertos para a deposição dos instrumentos do mal que nunca fizeram mal algum. E, como se não bastasse toda essa tempestade de injeções de morfina mental, a TV Globo, uma vez assinado pelo governador o decreto de proibição da venda de armas, rapidamente selecionou para a noite seguinte o filme Tombstone — a história do valente xerife que proibiu o porte de armas na sua cidade —, acrescentando-lhe nas legendas um subtítulo que vale por uma campanha eleitoral: “A justiça está chegando.” Se isso não é manipular a opinião pública, se isso não é abusar da boa-fé popular, não sei o que mais pode ser.

Com um ar de inocência que raia o cinismo, o governador alega, em prol da nova lei, que defender a população é dever do Estado, não do próprio povo. Em lógica isto chama-se um non sequitur — um raciocínio descaradamente sofístico em que a conclusão não se segue da premissa: de que o Estado tenha o dever de nos defender não se segue que ele tenha o direito de impedir que nos defendamos se ele não nos defende. Pois, a partir do momento em que os meios de exercício da legítima defesa são suprimidos, a integridade física de cada cidadão deixa de ser um bem que lhe pertence por direito natural e se torna uma concessão do Estado. E mesmo que houvesse — para raciocinar per absurdum — a pretendida conexão lógica entre o dever alegado e o direito suprimido, o Estado teria ainda a obrigação de cumprir primeiro o seu dever, antes de exigir que abdicássemos do nosso direito. O xerife de Tombstone, afinal, já era célebre inimigo e matador de bandidos quando proibiu as armas na cidade, enquanto a corrente política do sr. Garotinho, ao contrário, só tem na sua folha de serviços uma história de tolerância cúmplice, para não dizer uma história de amor com o banditismo. Virgil Earp pagou com seu próprio sangue e o de seus irmãos o acréscimo de autoridade que exigiu aos moradores de Tombstone. Já o sr. Garotinho, ao desprover os cidadãos de seus meios de defesa pessoal em troca da mera promessa de uma proteção policial que não tem meios de lhes dar, assina uma promissória que será resgatada com o sangue dos outros. O que ele exige é que apostemos, na sua promessa de nos dar uma segurança impossível, nada menos que a nossa própria vida e a de nossos familiares, enquanto ele não aposta senão seus votos na próxima eleição. E se o governador não tem o poder de nos dar uma proteção à altura do sacrifício que nos exige, quanto mais não estará abaixo tal encargo o governo federal, o qual não consegue controlar nem mesmo a polícia palaciana que grampeia impunemente os telefonemas do próprio presidente da República!

Do ponto de vista moral e lógico, é óbvio que, se a obrigação de desarmar-se é total e incondicional, — como tende a sê-lo na medida em que os sofismas de Garotinho sejam aceitos como sã filosofia pela legislação federal —, também será total e incondicional a obrigação da polícia de extinguir a criminalidade por completo, pois, se o Estado não tolera que o cidadão tenha meios de autodefesa contra a agressão armada, o cidadão não tem por que tolerar a mínima falha do Estado na tarefa de defendê-lo. No entanto, essa justa proporção dos direitos e deveres recíprocos entre cidadão e Estado não será respeitada. O cidadão que seja encontrado com uma arma será preso, e se depois de solto for assassinado a tiros na primeira esquina antes que a polícia possa socorrê-lo, ninguém será punido por tê-lo tornado indefeso. Ora, não há responsabilidade quando não há punição pelos erros. A lei contradiz portanto, da maneira mais flagrante, o preceito que a justifica: o Estado, por meio dela, se exime de toda responsabilidade pela nossa segurança no instante mesmo em que diz assumir o monopólio da sua proteção. Uma lei tão arrogante, pretensiosa e leviana, que atenta não só contra a letra da Constituição Federal mas contra os princípios elementares do direito, é uma lei nula e inane desde o momento em que se assina.

O voto de confiança que o governador está cobrando dos cariocas só é comparável, na proporção do risco envolvido, àquele que Deus exigiu de Abraão, com a diferença de que Garotinho não terá nenhuma obrigação de fornecer o carneiro para colocar no lugar das vítimas sacrificiais. Por aí se tem a medida do impacto psicológico da operação, que parece calculada por engenheiros comportamentais para deixar o povo paralisado e sonso numa espécie de transe emotivo no qual ele se disporá a ceder tudo, tudo, em troca da miragem de um bem impossível. Tenho razões para supor que tão fina estratégia de manipulação da opinião pública não brotou espontaneamente da cabeça de Garotinho, como Minerva da cabeça de Júpiter, mas veio pronta de organismos internacionais dispostos a usar os brasileiros como cobaias para a aplicação de uma política de desarmamento geral das populações que é, comprovadamente, um item prioritário do programa da Nova Ordem Mundial. A suspeita é tanto mais razoável quando se nota que a poderosa revista Time, trocando sua aparente função noticiosa pela auto-atribuída missão de decretar os rumos da História alheia, já se adiantou à decisão dos brasileiros para nomear Garotinho um dos líderes maiores incumbidos dirigir o Brasil globalizado do século XXI. E por que Garotinho deveria merecer tamanho destaque antecipado, se até o momento sua única realização foi precisamente a campanha que segue item por item a receita de sociedade ideal ditada pelas potências globalizantes? Estas coisas, sim, requereriam investigações e uma CPI, se este país ainda tivesse um mínimo de sanidade e senso de honra nacional.

Mas, qualquer que seja o caso, o que o governador Anthony Garotinho está exigindo de nós é um crédito de confiança que, em todas as hipóteses imagináveis, não será pago pelo depositário da confiança e sim pelo depositante. Exatamente como aconteceu com quem confiou na política de segurança de Leonel Brizola.

A proposta é tão obviamente imoral, ilógica, insensata e irresponsável, que, pelo simples fato de tentar impô-la à credulidade dos cidadãos, os mentores da campanha “Rio Desarme-se” já deveriam ser postos na cadeia por exploração da boa-fé popular. Tanto mais porque, se o monopólio estatal das armas só por uma hipótese implausível poderá refrear criminosos que nunca precisaram de autorização do Estado para ter e usar armas, seu efeito imediato e incontornável é o de deixar a população tão desarmada ante os bandidos quanto ante a autoridade estatal, hoje depositada nas mãos de uma corrente política cujo namoro com o banditismo organizado é fato histórico conhecido de todos.

A piada sinistra de Garotinho só é piada quando damos crédito a seus objetivos declarados. Basta compreender que o propósito da estratégia adotada nada tem a ver com a eliminação do banditismo, e a piada revela sua face de coisa mortalmente séria.

De Bobbio à Bernanos

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde (São Paulo), le 6e. juin 1999

(Traduit par Henri Carrières et Armand Grabois)

Le XXe siècle a commencé avec la proclamation presque universelle de la fin des démocraties et, après une succesion d’expériences totalitaires dont le bilan se monte à presque 200 millions de morts, se termine par l’universelle reconnaissance que nous ferions mieux d’apprendre définitivement à nous intéresser à la démocratie.

Pour la première fois dans les temps modernes, l’Humanité semble être arrivée à un accord. Quoiqu’il y ait encore des dictatures un peu partout, l’idée de dictature a perdu toute crédibilité intelectuelle, et l’on croit, avec un optimisme assez platonique, que ce qui disparaît du ciel des idées devrait tôt ou tard disparaître de ce bas monde. Et, quoique personne n’attribue aux démocraties actuelles la vertu de la perfection, il y a un consensus général que Norberto Bobbio a résumé en une sentence lapidaire: “La seule solution pour les malheurs de la démocratie, c’est un surplus de démocratie”.

Mais cette formule est-elle celle d’un consensus ou celle d’un problème?

En premier lieu, que signifie “plus de démocratie”? Un libéral croit que c’est moins d’intervention de l’État dans l’économie; un social-démocrate croit que c’est plus de secours de l’État aux pauvres ou défavorisés. Ainsi, non seulement on réédite la vieille confrontation entre capitalisme et socialisme, tous les deux sous le nom de démocratie, mais on arrive finalement à un cul-de-sac, puisque pour réaliser la première alternative il faudrait accroître le contrôle étatique sur la vie privée (pour le moins afin que l’État, dépourvu de son fardeau économique, acquière de nouvelles fonctions qui légitiment son existence), et pour réaliser la seconde il faudrait augmenter les impôts et gonfler la bureaucratie étatique jusqu’à paralyser l’économie et paupériser encore plus le pauvres.

En deuxième lieu, il y a de bonnes raisons de douter que “plus de démocratie” soit encore de la démocratie. La démocratie n’est pas comme un pain, qui croît sans perdre l’homogénéité: à mesure qu’elle s’étend, sa nature change jusqu’à se convertir en son contraire. L’exemple le plus caractéristique — mais, certes, pas unique — est ce qui se passe avec la “démocratisation de la culture”. En un premier moment, démocratiser la culture c’est distribuer généreusement aux masses les soi-disant “biens culturels”, autrefois réservés, dit-on, à une élite. En un deuxième moment, on exige que les masses aient aussi le droit de décider ce qui est et ce qui n’est pas un bien culturel. Alors, la situation se renverse: offrir aux masses les biens de l’élite n’est plus pratiquer la démocratie: c’est insulter le peuple. Les couches populaires, affirme-t-on, ont droit à “leur propre culture”, dans laquelle la musique rap peut être préférable à Bach. L’intellectualité se livre alors à toute sorte de théorisations afin de prouver que les biens supérieurs autrefois convoités par la masse n’ont pas, en fin de compte, plus de valeur que tout ce que la masse possédait déjà avant de les conquérir. Et, quand l’ancienne différence entre culture d’élite et culture de masses semble finalement rétablie sous le nouveau et réconfortant prétexte de la relativité, les intellectuels se révoltent encore plus, car il découvrent que tous les biens, égalisés par l’universel rélativisme, sont devenus de pures marchandises sans valeur propre: Bach est devenu fond sonore pour les campagnes publicitaires de culottes et le rap, grâce au marché du disque, a créé une nouvelle élite de millionaires, cyniques et arrogants comme ne l’aurait osé être l’ancienne élite. Un processus identique se répète dans les domaines de l’éducation, de la morale et même de l’économie, où chaque nouvelle fournée de bénéficiaires du progrès s’accroche à ses nouveaux privilèges avec une avarice et une violence inconnue des élites plus anciennes: le fascisme a surgi parmi les nouvelles classes moyennes créés par la démocratie capitaliste, et la “Nomenklature” soviétique, la plus jalouse des classes dominantes qui n’ait jamais existé dans ce monde, est née de l’ascension de soldats et d’ouvriers dans la hiérarchie du Parti.

En troisième lieu, on a peut-être le danger le plus grave: un consensus en faveur de la démocratie n’est constructif qu’en apparence, car la démocratie, par définition, consiste à se passer de tout consensus. Démocratie n’est pas concorde: c’est une manière intelligente d’administrer la discorde. Et la clameur universelle pour “plus de démocratie”, dans la mesure même où elle s’affirme comme un consensus, donne des signes de ne plus pouvoir supporter aucune voix discordante.

Ainsi, il y a des raisons pour craindre que, si le XXe siècle a commencé par demander des dictatures et s’est terminé par exiger la démocratie, le nouveau siècle finisse par suivre le parcours dans le sens précisément inverse. Car, comme disait Bernanos, la démocratie n’est pas l’opposé de la dictature: elle en est la cause.