Truth and Pretext

by Olavo de Carvalho

O Globo, Rio de Janeiro, May 27th. 2000

Translated by Daniel Brilhante de Brito (http://www.dbb.com.br)

Sceptics, relativists and pragmatists, who champion the idea that knowledge is something merely functional, operational have the grandest of pretences, namely that in a democracy rigorous, proven truth will undermine the health of the body politic. They suggest that if you claim to know the truth it is because you are utterly intolerant of adverse opinion. Such is their point. They then set out to argue that you can prove nothing whatever; and will go on to claim that the world will not be happy until all the theories have cancelled out one another, and mankind has finally acknowledged that there is no such thing as truth; that whatever goes under this name are just figments. These, again, are only provisional, if useful in nature. Once you have abolished the test of truth, all ideas have just about the same value. At this stage, you will have perfect democracy.

People used to judging ideas by their face value, and this means nearly the whole of the human race, will not think twice before jumping to this conclusion, if only because from their standpoint they are flattered to find out that their opinions being as useful and as provisional as any other these can justifiably be ranked beside those of Aristotle and Leibnitz.

But this persuasive set of appearances leaves out the plain, brutal fact that neither of this century’s major brands of totalitarianism – Communism or Nazism – accepted the existence of an objective truth; much to the contrary their tenet was that ideas, rather than instrumental to the knowledge of the real world were just tools that could be used to change it. Karl Marx was explicit on his head in his ‘Theses on Feuerbach”. One odd peculiarity of the Marxist view is the notion that History cannot be approached ‘from the outside’; nor for that matter can its unfathomable depths be explored theoretically other than by a subject who as a preliminary step has himself joined the cause of the proletariat; for not until the subject is personally engaged in the working class struggle is he expected to grasp the revolutionary process from within, in other words, the dialectic process itself through which this process evolves. When he claimed that class war was inextricably both a scientific theory and the rule of thumb for the revolutionary praxis, Marx distorted the very idea of ‘scientific theory’. Stripped of its role as an intellectual synthesis of objective findings, scientific theory was no more than a means of producing or modifying these findings in retrospect to fit the theory.

Nobody grasped this notion so thoroughly as did Lenin when he found that a proletarian revolution was conceivable in a nation where no proletariat existed; all that was needed was for a self-appointed élite of future proletarians to take over, and once in power to set about creating a proletariat.

Even more blatantly instrumental and pragmatic was Adolf Hitler’s idea of truth. As reported by Hermann Rauschning in his “Conversations with Hitler”(1940), he said, “I am quite aware that in a scientific sense there is no such thing as ‘races’. But as a politician I must have a concept to justify the destruction of the existing order to give place to a new one.” This is as though the ghost of Karl Marx were haunting his surroundings – the world, after all, is not meant to be described, but changed.

He who would believe an objective truth will look for one and put it to the test of proof. Conversely, he who will reduce the truth to a tool of change for the world cannot abide the onus of proof, all he has to do is to eliminate whoever stands in the way as an obstacle to change.

Um lindo pretexto para ignorar a verdade

Olavo de Carvalho

O Globo, 27 de maio de 2000

“O pensador ideológico cria uma linguagem
para expressar não a realidade,
mas a sua alienação dela.” (Eric Voegelin)

O mais lindo pretexto dos céticos, relativistas e pragmatistas para advogar uma noção puramente funcional ou operacional da verdade é que a verdade certa e provada faz mal à saúde política da democracia. Se um sujeito está persuadido de que conhece a verdade, ele não tem a menor tolerância para com a opinião adversa. É o que eles alegam. Daí partem para provar a impossibilidade de provar o que quer que seja, proclamando que o mundo só será feliz quando todas as teorias se neutralizarem umas às outras e a humanidade reconhecer que não existem verda­des, apenas ficções úteis e provisórias. Suprimido o critério de veracidade, todas as idéias terão direitos iguais. Será a democracia perfeita.

A mente habituada a julgar as afirmações pelo valor nominal aceita mais que depressa essa esperançosa conclusão, lisonjeada ademais pela perspectiva de que suas próprias opiniões, sendo tão úteis e provisórias quanto quaisquer outras, vale­rão o mesmo que as de Aristóteles ou Leibniz.

Mas, contra esse persuasivo arranjo de aparências, resta o fato brutal de que, dos dois grandes totalitarismos do século, comunismo e nazismo, nenhum acredi­tou na existência da verdade objetiva ou na possibilidade de conhecê-la. Bem ao contrário, estavam ambos convictos de que as idéias não são instrumentos para co­nhecer a realidade e sim para transformá-la. Karl Marx diz explicitamente isso nas famosas “Teses sobre Feuerbach”. Uma das mais excêntricas peculiaridades inte­lectuais do marxismo é justamente que sua visão da história declara não poder ser compreendida desde fora e pelo puro exame teorético: para captar suas insondáveis profundidades o sujeito tem de primeiro aderir à causa do proletariado e, partici­pando das lutas proletárias, apreender o processo revolucionário no próprio curso dialético da ação que o produz. Ao proclamar que a luta de classes é inseparavel­mente uma teoria científica e a regra prática da ação revolucionária, Marx perverte a noção mesma de “teoria científica”, que, de instrumento de síntese intelectual dos dados objetivos, se torna o meio de produzir ou modificar esses dados para que retroativamente coincidam com a teoria. Ninguém compreendeu isso melhor do que Lênin, quando descobriu que podia fazer uma revolução proletária num país sem proletariado: bastava que uma elite se autonomeasse representante dos proletá­rios futuros, tomasse o poder e em seguida criasse um proletariado.

Ainda mais descaradamente instrumental e pragmatista era a noção de ver­dade de Adolf Hitler. Ele disse a Hermann Rauschning (Conversações com Hitler, 1940): “Sei perfeitamente que, num sentido científico, não existem raças… Mas, como político, preciso de um conceito que me permita dissolver a ordem es­tabele­cida e impor em seu lugar uma ordem totalmente nova.” É o espírito de Karl Marx que baixou no terreiro: não se trata de descrever o mundo, mas de transformá-lo.

Quem acredita em verdade objetiva busca encontrar uma e prová-la. Aquele que reduz a verdade a um instrumento para transformar o mundo não tem de provar nada: tem apenas de dar cabo de quem fique atravessado no caminho da transformação.

24/01/00

Condor Choca Militantes

Janer Cristaldo

Baguete Diário, 26 de maio de 2000

Para eles, as nações não tinham fronteiras e o palco de lutas era o planeta todo. Em 35, uma judia berlinense, oficial do Exército Vermelho soviético, veio coordenar a revolução no Brasil, assessorada por aparatchiks belgas, alemães, franceses e argentinos. Osvaldo Peralva, membro brasileiro do Kominform, sediado em Bucareste, ao denunciar a conspiração toda em O Retrato (Editora Globo, 1962), foi banido do mundo intelectual e classificado como agente da CIA. O que Peralva denunciou com conhecimento de causa foi mais tarde documentado por William Waack, no excelente Camaradas (Companhia das Letras, 1993), com pesquisas nos arquivos do Kremlin.

Em 36, foram todos para a Espanha, dar apoio bélico e moral a Stalin, que tentava imobilizar a Europa estrangulando-a com o controle do Mediterrâneo. Juan Negrín, ministro da Fazenda do governo Largo Caballero, raspou os cofres da Espanha em troca de aviões, carros de combates, canhões, morteiros e metralhadoras russas. Ao celebrar com um banquete no Kremlin a chegada das 7.800 caixas com 65 quilos de ouro cada uma (três quartos das reservas espanholas), Stalin, evocando um ditado russo, comemorou: “Os espanhóis não voltarão a ver seu ouro, da mesma forma que ninguém pode ver as orelhas”. Aproveitando a vaza, um vigarista malaguenho fez fortuna internacional, dando o título de Guernica a um quadro em torno à morte de um toureiro.

Em 59, eles deram apoio logístico e de mídia a Fidel e Che, para instalar a mais longa ditadura da América Latina. De Paris, um filósofo feio, baixinho e confuso veio dar seu aval ao tirano do Caribe. Uma foto da época é das mais emblemáticas: Sartre, de pescoço espichado para o alto, adorando Castro como um Deus. Em La Lune et le Caudillo (Gallimard, 1989), Jeannine Verdès Leroux nos relembra este momento de extraordinária poesia.

— Todos os homens têm direito a tudo que eles pedem – pontifica Castro. – E se eles pedem a lua? – pergunta Sartre. O ditador retoma seu charuto e se volta para o filósofo baixinho: – Se eles pedem a lua, é porque têm necessidade dela.

Pediam a lua no bestunto do ditador e do filósofo. Em verdade, queriam dólares, pão e liberdade. Da mesma forma que a Espanha, em 36, foi um campo de treinamento para a Segunda Guerra, a América Latina era laboratório de experimentos sociais para os filosofadores europeus que, no dizer de Camus, assestavam suas poltronas no sentido da História.

Também dos salões de Paris vinha o apoio teórico a Che Guevara e seus celerados, através de Régis Debray, mais tarde ministro de Mitterrand. Che morreu em odor de santidade e hoje é cultuado na Bolívia, como San Ernesto de la Higuera. Danielle Mitterrand, a viúva enamorada pela figura romântica do guerrillero, dá apoio a guerrilha zapatista em Chiapas, comandada por um agitprop branco travestido de líder indígena, o subcomandante Marcos. E a mulher de Debray criou a biografia fictícia da guatemalteca Rigoberta Menchú, embuste que mereceu o prêmio Nobel da Paz de 92.

Nos anos 60, eles tentaram reeditar no Brasil a Intentona de 35. Para isso, foram treinados na China, União Soviética, Cuba e Argélia. Fracassados e escorraçados em 64, os sobreviventes migraram ao Chile para assessorar Allende e ao Uruguai para dar apoio aos tupamaros. De Cuba, vinha o brado de guerra: “un, dos, tres, mil Vietnãs”. Derrotados no Uruguai em 73 por Bordaderry, deixaram o país conhecido como a “Suíça latino-americana” em destroços, com mais da metade de sua população ativa refugiada no exterior. Para simbolizar o apoio de Cuba ao regime marxista que se instalara no Chile, Castro presenteou Allende com uma submetralhadora. Presente de grego: foi a mesma que o líder marxista usou para suicidar-se em 73. Derrubado o regime de Allende, eles rumaram à Argentina e Portugal, onde a “Idéia” estava em marcha. Em 76, instaura-se, com Videla, a ditadura militar na Argentina. Era o momento de dar de rédeas rumo a outros nortes.

Em 75, alguns militares lusos, entusiasmados com a derrocada de um salazarismo já moribundo, tentaram instalar na península ibérica a república socialista que os espanhóis já haviam exorcizado. A esperança migrara para Portugal. Ou para o Peru, onde o Sendero Luminoso e o Tupac Amaru assassinaram, nos 80, milhares de peruanos, sob a inspiração humanitária do Grande Timoneiro.

Era o que, em Paris, chamávamos de la grande randonée. Aventureiros de todos os quadrantes, alguns imbuídos de nobres ideais, outros de ressentimentos e vontade de poder, migravam de um país a outro para “fazer a Revolução”. Em qualquer geografia sentiam-se em casa: sempre havia um comitê para recebê-los como heróis e delegar-lhes novas tarefas. Só no Rio de Janeiro, o cardeal Eugenio Sales alugou 80 apartamentos para abrigar aparatchiks de toda a América Latina, que chegaram a acolher grupos de 150, simultaneamente. O total de militantes hospedados, entre 76 e 82, chegou a cinco mil pessoas.

Eles percorreram o século e o continente latino-americano, receberam doutrinação ideológica e treinamento de guerrilha em diversos países. Quem atesta esta internacionalização são os próprios guerrilheiros em suas memórias. Foram financiados pela China, ex-URSS e até pela miserável Cuba. Além de dispor santuários para onde quer que fugissem, gozavam de exílios confortáveis nas sociais-democracias européias. Se um aparatchik era preso na mais discreta fronteira do mundo, no outro dia manifestantes em Paris, Berlim, Estocolmo ou Londres pediam sua libertação. A luta não tinha fronteiras. Agora condenam, indignados, a chamada operação Condor.

Que horror! Os militares da América Latina trocavam informações e serviços para combatê-los. Isto me lembra um debate dos anos 70 em Estocolmo. Pacifistas denunciavam as Forças Armadas suecas, porque estas usavam armas que feriam e matavam. Um oficial, muito pedagógico, teve de vir a público para esclarecer: “a função de uma arma é ferir e matar”.

Consta que os responsáveis pela operação Condor até se comunicavam em código. Maquiavélicos, estes senhores.

Baguete