Trágica leviandade

Olavo de Carvalho

Época, 21 de outubro de 2000

Incapazes de transformar a si mesmos, os esquerdistas buscam transformar o mundo

Jamais conheci um esquerdista que chegasse a sê-lo por etapas, por experiência acumulada e avaliação ponderada dos fatos. Todos tomam posição logo de cara na entrada da adolescência, antes de saber coisa alguma do mundo, e passam o resto da vida julgando tudo à luz dessa opção inicial. Nada lhes parece mais normal, portanto, que presumir que as opiniões contrárias às suas tenham se originado de escolhas igualmente irracionais, apenas com signo invertido.

Acontece que a quase totalidade dos pensadores anticomunistas é constituída de indivíduos que um dia foram comunistas e depois mudaram de idéia por um lento, difícil e doloroso processo de autodesmascaramento. As obras de Arthur Koestler, Irving Kristol, David Horowitz, Whittaker Chambers, Milovan Djilas, Daniel Bell e tantos outros – hoje excluídas do mercado livreiro – não são apenas “argumentações” em favor de uma “posição”: são expressões de uma experiência longamente amadurecida no isolamento e na árdua conquista de si. Cada um desses homens pagou um alto preço moral por suas idéias, enquanto as dos comunistas foram recebidas, prontas e gratuitas, de um ambiente juvenil onde circulavam como frases feitas.

É verdade que, para muitos comunistas, sua escolha ideológica trouxe provações e riscos. Mas justamente isso lhes deu um pretexto edificante para que se dispensassem de questionar as doutrinas às quais tinham oferecido a vida. Quem, depois de passar por perseguições, prisão, tortura, há de querer reconhecer que sofreu tudo isso por uma mentira? Assim, o heroísmo esquerdista é de ordem apenas física e social, sem profundidade interior: quanto mais o militante tem a coragem de padecer por suas crenças, mais covardemente foge do risco de se decepcionar com elas. Ademais, seu sofrimento tem sempre o reconforto da solidariedade coletiva, organizada, mundial. Sozinho, no cárcere, ele tem a certeza de que milhões lutam a seu lado. Quem haverá de querer, no fundo do poço, abdicar desse último consolo?

Mas é precisamente esse heroísmo em dose dupla que se encontra nos homens que, após sofrer perseguição de seus adversários políticos, consentiram em suportar, solitários, o ódio de seus antigos companheiros. Heroísmo, na verdade, triplo, pois entre a primeira e a segunda provação vem o mais difícil: a travessia do deserto, a luta para vencer a si mesmo. Por isso os clássicos do anticomunismo têm aquela tensão moral, aquele peso das decisões plenamente responsáveis e aquela high seriousness que faltam por completo às obras de seus adversários. Se as biografias pessoais de Marx, Lênin, Mao, Stálin e Fidel são uma galeria de baixezas (envolvem desde rituais satanistas e crueldade para com os familiares até pedofilia), não são menos deprimentes os perfis intelectuais de um cínico imoralista como Brecht (o homem que disse dos acusados no Processo de Moscou: “Se eles são inocentes, merecem ser fuzilados precisamente por isso”), de um sabujo profissional como Lukács, sempre pronto a mudar de opinião sob comando, ou de um palhaço verboso como Jean-Paul Sartre, sem falar nas dúzias de vigaristas acadêmicos que o famoso experimento Sokal desmascarou definitivamente.

Há uma trágica leviandade em homens que, incapazes de transformar a si mesmos, se dispõem a “transformar o mundo”. Que mundo pode nascer daí senão uma pantomima sangrenta?

O futuro da liberdade

Olavo de Carvalho

O Globo, 21 de outubro de 2000

Na sua última entrevista, publicada postumamente em setembro de 1997, François Furet dizia que o maior problema da sociedade liberal-capitalista é sua dificuldade de construir um corpo político, pois a idéia mesma que funda o liberalismo, a doutrina da autonomia individual, resiste a encarnar-se na forma de uma estrutura política, de um Estado. O sucesso do comunismo e do fascismo, prosseguia o historiador, deveu-se ao fato de que, em contraste com essa incapacidade crônica do liberalismo, pensavam o corpo social como unidade e davam a essa unidade uma expressão política também unitária, por meio do Partido-Estado.

Esse diagnóstico fornece a melhor explicação para o fato de que no próprio seio do liberalismo as tendências centralizadoras e estatizantes ressurgem ciclicamente sob novas roupagens e novas denominações, algumas delas diabolicamente enganosas porque alegam inspirar-se nos próprios ideais do liberalismo.

A constatação desse estado de coisas sugere automaticamente uma pergunta: uma sociedade politicamente centrífuga não tem outra alternativa senão ceder de vez às ofertas de unificação totalitária ou viver eternamente de arranjos de ocasião entre a liberdade de jure e as concessões de facto a um crescente poder centralizador?

Furet não dá nenhuma resposta, mas passa de raspão por ela e nem percebe que é uma resposta. A dificuldade de encontrar uma fórmula política, segundo ele, manifestou-se da maneira mais patente naquela sucessão de crises que foi a Revolução Francesa, ao passo que “permaneceu escondida no caso da Revolução Americana, revolução demasiado fácil, transcorrida sob as bênçãos da religião a um povo cristão, que não teve a necessidade de renegar um passado aristocrático e feudal e teve ainda a sorte de encontrar uma centena de grandes homens políticos”.

Não é muito certo dizer que os americanos tiveram “dificuldade” de encontrar uma fórmula política. O que eles tiveram foi uma profunda indiferença pela busca dessa fórmula. O testemunho é de Aléxis de Tocqueville: meio século depois da independência, as pequenas comunidades, núcleos da vida americana, ainda se orgulhavam de viver à margem de toda autoridade central, unidas às comunidades vizinhas tão-somente pelos laços de comércio, religião e cultura. A dificuldade apareceu mais tarde e, de certo modo, artificialmente. Apareceu por iniciativa da própria classe política, que buscou forçar a unificação jurídico-administrativa do país, condição prévia para a consecução dos grandes planos imperiais que tinha em vista. Conforme assinalei em meu livro “O jardim das aflições” (cinco anos antes da dupla Negri & Hardt a quem a nossa intelectualidade símia credita essa descoberta), as ambições centralizadoras e imperialistas germinavam no espírito dessa classe já antes mesmo da Revolução e cresceram inteiramente por fora das aspirações da sociedade americana, a qual, sendo indiferente ao Estado, teria de sê-lo mais ainda ao crescimento dele para além-fronteiras.

Se essa sociedade pôde evitar os conflitos que viriam a marcar a História da França, foi graças a três fatores. Primeiro, a religião, uma religião tanto mais arraigada na alma do povo quanto mais livre da contaminação estatal, pois fora justamente para proteger seu culto religioso de toda interferência governamental que os pioneiros tinham vindo para o Novo Mundo. Essa religião, popular e extra-oficial, mas ao mesmo tempo conservadora e apegada às tradições, dava aos americanos sua unidade moral, mais funda e decisiva que qualquer unidade política. Em segundo lugar, a economia. Sua base, religiosa até à medula, era a “sociedade de confiança” de que fala Alain Peyrefitte, ou a “ethics of loyalty” enaltecida por Josiah Royce: a liberdade de comprar e vender, fundada na comum expectativa da lealdade espontânea de todos para com todos.

Por fim, a cultura. Até hoje a elite americana – presidentes de empresas, oficiais do Exército, homens de letras – provém de uns 200 colégios particulares, que, desprezando os supostos avanços tão afoitamente assimilados pela pedagogia estatal, conservaram quase intacto o método educacional de antes da Revolução, baseado nos “três rr” – reading, writing, arithmetics – e na leitura dos clássicos: a boa e velha liberal education. Esse método produziu a “centena de grandes homens” que decidiu o destino da América.

Religião livremente fiel às tradições, economia sã fundada na moral religiosa e uma elite de homens conscientes dos valores básicos da civilização: eis os três fatores que puderam superar a contradição entre liberalismo e estrutura política, poupando ao povo americano os fracassos sangrentos da Revolução Francesa. Pois esta, em contrapartida, ocorreu numa sociedade onde a religião era burocratizada e infectada de mundanismo, a economia era centralizada pelo Estado sanguessuga e a cultura era um festival de insanidades, obra da nova classe intelectual leviana e fútil, vaidosa e cheia de afetado desdém pelo que estivesse acima da sua compreensão. Não podendo apostar nem na religião, nem na cultura, nem na economia, a França arriscou tudo – e tudo perdeu – na busca insana do corpo político perfeito.

Eis aí a lição que François Furet nos deu sem perceber: o futuro de uma sociedade baseada na liberdade individual não depende do utópico e insaciável “aperfeiçoamento das instituições”, mas da religião sincera, da ética nos negócios e da formação intelectual da elite: de tudo aquilo, enfim, que é desprezado por um país louco que, à imitação da França revolucionária, deposita todas as suas esperanças na política e no Estado.

O nome da ganhadora

Olavo de Carvalho

Época, 14 de outubro de 2000

O Brasil odeia corrupção, mas não liga para espionagem. Quem ganha com essa diferença?

Na onda de moralismo persecutório que assola o país, há uma desproporção monstruosa entre as tempestades de cólera que se desencadeiam à simples suspeita de algum desvio de dinheiro público e a tolerante indiferença ante a prática generalizada da espionagem política.

Dentre milhões de brasileiros, pareço ser o único sensível à esquisitice desse fenômeno, no qual nem o povo, nem as autoridades, nem a imprensa dão sinal de perceber nada de mais. Inútil lembrar a meus concidadãos que o presidente Nixon, inabalável no cargo após dúzias de denúncias de corrupção, foi tirado de lá num relance à primeira revelação de um único delito de grampo. Inútil evocar os inumeráveis discursos e análises que naquele tempo ressaltaram a diferença crucial entre simples atos desonestos e a usurpação da autoridade do Estado. A ordem democrática, constatou-se então, pode sobreviver a todas as fraudes, mas não a justiceiros autonomeados que se arrogam os poderes do serviço secreto. Não há, aí, medida comum: os bens do Estado não podem valer mais que o Estado mesmo, fundamento e garantia desses bens.

No Brasil, porém, é o contrário: ninguém se ofende de que meros cidadãos particulares, a serviço de interesses grupais, se sintam autorizados a furtar documentos, grampear telefones e vasculhar extratos bancários de seus desafetos políticos. Mas que alguém toque numa parcela qualquer de “nosso” dinheiro, e a nação toda se ergue, enfurecida, exigindo cabeças. A usurpação da autoridade não é nada, o dinheiro público é tudo. O defraudador vulgar é uma ameaça à segurança nacional, o espião político é no máximo um pecador venial, tolerado, perdoado e até enaltecido em nome da prioridade dos fins sobre os meios. Tal é a escala de valores subentendida em todo o nosso discurso moralizante, quer ecoe no Parlamento, na imprensa ou em conversas de botequim. Quanto mais implícita e subtraída a todo exame crítico, mais essa norma se consolida como unanimidade nacional.

Ora, quaisquer que sejam as causas sociais do crime e da corrupção, ninguém nega que elas residem na mentalidade vigente, no código de valores e contravalores que determinam, consciente ou inconscientemente, a conduta dos seres humanos. E a escala de valores que acabo de descrever estabelece, da maneira mais ostensiva, o primado absoluto do dinheiro sobre a ordem legal que o sustenta. Sabem o que isso significa, moralmente? A hipersensibilidade aos valores pecuniários, acompanhada de insensibilidade aos valores mais abstratos e gerais, delineia o inconfundível perfil da mentalidade sociopática, da mentalidade dos delinqüentes e defraudadores, estelionatários e traficantes, proxenetas e ladrões. É nessa mentalidade que o brasileiro está sendo educado por uma campanha de ódio seletivo, que se prevalece da visibilidade espetaculosa do delito menor para tornar invisível o delito maior. Por isso, em vez de moralizar a nação, essa campanha só faz produzir mais corrupção, mais espionagem, mais perversão do senso moral. Mas seria injusto dizer que ninguém ganha nada com isso. Para saber quem ganha, perguntem a si mesmos se alguma facção política se destaca, mais que as outras, na dupla atividade de espionar e denunciar. Tal será o nome da afortunada beneficiária da perdição nacional.