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Sobre a arte de debater

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de maio de 2011

No curso do meu debate com o prof. Alexandre Duguin, topei com duas afirmações que andam na boca de todo mundo e passam por verdades elementares. Primeira: Todos os atos humanos são politicamente comprometidos. Segunda: Não existe neutralidade, tudo é tomada de posição ideológica. A facilidade com que hoje em dia se reduz ao silêncio qualquer adversário mediante o apelo a essas premissas mostra que a mera hipótese de examinar-lhes sentido lógico não passa pela cabeça de ninguém. Os resultados desse exame podem, no entanto, ser bastante surpreendentes:

(1) “Todo pensamento humano é politicamente orientado e motivado” é uma afirmação baseada na mera confusão entre conceito e figura de linguagem. Todos os atos humanos “podem”, em tese e idealmente, ter alguma relação mais próxima ou mais remota com a política, mas nem todos podem ser “politicamente orientados e motivados” no mesmo grau e no mesmo sentido. Nenhuma intenção política me move quando vou ao banheiro, visto minhas calças, tomo um refrigerante, como um sanduíche, ouço uma cantata de Bach, arrumo os papéis no meu escritório ou corto a grama do meu jardim (a não ser que o propósito de evitar uma invasão de cobras seja um preconceito político contra essas gentis criaturas). A ligação dos atos humanos com a política distribui-se numa escala que vai de 100 por cento a algo como 0,00000001 por cento. Quando, por exemplo, George W. Bush fazia pipi, seria isso um ato político no mesmo grau e no mesmo sentido da declaração de guerra ao Iraque? Com toda a evidência, a proposição “Todo pensamento humano é politicamente orientado e motivado” salta da mera notícia de uma participação que pode ser vaga e remotíssima à afirmação peremptória de uma identidade substancial perfeitamente inexistente e de uma igualdade quantitativa impossível. Não é um conceito. É uma figura de linguagem, uma hipérbole. Como tal, não descreve nenhuma realidade objetiva, mas a ênfase que o falante deseja imprimir ao assunto – numa escala que pode ir da mera demanda de atenção até à abolição psicótica do senso das proporções.

Todos os atos humanos, por definição, participam, em grau maior ou menor, de todas as dimensões não só da vida humana, mas da existência em geral. Nenhum participa delas todas no mesmo nível e com a mesma intensidade. Assim, afirmações do tipo “tudo é física”, “tudo são átomos”, “tudo é psicologia”, “tudo é biologia”, “tudo é teatro”, “tudo é jogo”, “tudo é religião”, “tudo é vontade de poder”, “tudo é economia”, “tudo é sexo” e “Todo pensamento humano é politicamente orientado e motivado” são ao mesmo tempo irrefutáveis e vazias. Não podem ser contestadas, porque não dizem nada.

(2) A afirmação “Não existe um lugar no reino do pensamento humano que possa ser neutro em termos políticos” é uma confusão primária entre gênero e espécie: entre a política como uma das dimensões gerais da existência e as várias disputas políticas em especial, historicamente existentes aqui e ali. Ainda que se aceitasse, ad argumentandum, a hipótese de que todos os atos humanos são políticos, isso não implicaria de maneira alguma a conclusão de que cada ser humano tem de tomar posição em todas as disputas políticas que se travam no seu tempo. A possibilidade mesma de tomar posição implica a seleção prévia de quais disputas são relevantes e quais são indiferentes ou falsas. A neutralidade ante uma multidão de questões políticas é não somente possível, mas é uma condição indispensável para a tomada de posição em qualquer uma delas em particular.

Os gregos chamavam “topoi” (lugares-comuns) a esses argumentos gerais que podem ser brandidos a qualquer momento, sempre com alguma eficácia, em defesa de pontos particulares. Mais eficazes ainda se tornam os lugares-comuns quando não são mencionados, mas ficam implícitos, sustentando com a força de uma autoridade invisível qualquer bobagem que se queira “provar”.

Descobrir as premissas ocultas dos argumentos é um requisito fundamental para a compreensão de qualquer debate publico. A mera atribuição de intenções – prática divinatória muito comum no Brasil – é um substitutivo caricatural dessa técnica. Outro é postular a filiação hipotética de uma idéia a uma corrente de pensamento qualquer e, mediante a condenação dessa corrente, dar a idéia por impugnada.

O nome da ganhadora

Olavo de Carvalho

Época, 14 de outubro de 2000

O Brasil odeia corrupção, mas não liga para espionagem. Quem ganha com essa diferença?

Na onda de moralismo persecutório que assola o país, há uma desproporção monstruosa entre as tempestades de cólera que se desencadeiam à simples suspeita de algum desvio de dinheiro público e a tolerante indiferença ante a prática generalizada da espionagem política.

Dentre milhões de brasileiros, pareço ser o único sensível à esquisitice desse fenômeno, no qual nem o povo, nem as autoridades, nem a imprensa dão sinal de perceber nada de mais. Inútil lembrar a meus concidadãos que o presidente Nixon, inabalável no cargo após dúzias de denúncias de corrupção, foi tirado de lá num relance à primeira revelação de um único delito de grampo. Inútil evocar os inumeráveis discursos e análises que naquele tempo ressaltaram a diferença crucial entre simples atos desonestos e a usurpação da autoridade do Estado. A ordem democrática, constatou-se então, pode sobreviver a todas as fraudes, mas não a justiceiros autonomeados que se arrogam os poderes do serviço secreto. Não há, aí, medida comum: os bens do Estado não podem valer mais que o Estado mesmo, fundamento e garantia desses bens.

No Brasil, porém, é o contrário: ninguém se ofende de que meros cidadãos particulares, a serviço de interesses grupais, se sintam autorizados a furtar documentos, grampear telefones e vasculhar extratos bancários de seus desafetos políticos. Mas que alguém toque numa parcela qualquer de “nosso” dinheiro, e a nação toda se ergue, enfurecida, exigindo cabeças. A usurpação da autoridade não é nada, o dinheiro público é tudo. O defraudador vulgar é uma ameaça à segurança nacional, o espião político é no máximo um pecador venial, tolerado, perdoado e até enaltecido em nome da prioridade dos fins sobre os meios. Tal é a escala de valores subentendida em todo o nosso discurso moralizante, quer ecoe no Parlamento, na imprensa ou em conversas de botequim. Quanto mais implícita e subtraída a todo exame crítico, mais essa norma se consolida como unanimidade nacional.

Ora, quaisquer que sejam as causas sociais do crime e da corrupção, ninguém nega que elas residem na mentalidade vigente, no código de valores e contravalores que determinam, consciente ou inconscientemente, a conduta dos seres humanos. E a escala de valores que acabo de descrever estabelece, da maneira mais ostensiva, o primado absoluto do dinheiro sobre a ordem legal que o sustenta. Sabem o que isso significa, moralmente? A hipersensibilidade aos valores pecuniários, acompanhada de insensibilidade aos valores mais abstratos e gerais, delineia o inconfundível perfil da mentalidade sociopática, da mentalidade dos delinqüentes e defraudadores, estelionatários e traficantes, proxenetas e ladrões. É nessa mentalidade que o brasileiro está sendo educado por uma campanha de ódio seletivo, que se prevalece da visibilidade espetaculosa do delito menor para tornar invisível o delito maior. Por isso, em vez de moralizar a nação, essa campanha só faz produzir mais corrupção, mais espionagem, mais perversão do senso moral. Mas seria injusto dizer que ninguém ganha nada com isso. Para saber quem ganha, perguntem a si mesmos se alguma facção política se destaca, mais que as outras, na dupla atividade de espionar e denunciar. Tal será o nome da afortunada beneficiária da perdição nacional.

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