Ainda a arte de escrever

Olavo de Carvalho

O Globo, 19 de maio de 2001

Como eu vinha dizendo que imitar é o melhor jeito de aprender a escrever, muitos leitores, com razão, sentiram-se no direito de me perguntar quem imitei. Ao longo da vida, fiz muitos exercícios de imitação. Não publiquei nenhum, é claro, nem os guardei. Mas ainda ressoam no que escrevo — aos meus próprios ouvidos, pelo menos — as vozes dos mestres que escolhi.

Os principais foram, entre os clássicos da língua portuguesa, Camões, Antônio Ferreira, Fernão Mendes Pinto, Camilo e Euclides. Machado foi um deleite, não um aprendizado. Nunca o imitei conscientemente, porque, malgrado a devoção que lhe tenho, as diferenças de personalidade entre nós são demasiado fundas. Não consigo me conceber tímido, recatado, elegante e, ademais, funcionário público.

Mas com facilidade me imagino um navegante e aventureiro como os nossos clássicos renascentistas, um polemista doido “doublé” de metafísico como Camilo, um misto de cientista e repórter como Euclides.

A empatia, no aprendizado por imitação, é tudo. Por isto cada um tem de escolher seus modelos.

Os meus entram aqui como simples amostras. Do Eça, para dizer a verdade, jamais gostei muito. Ele escreve tão gostoso porque seu pensamento é fácil, leviano, sem densidade ou luta interior. Não me lembro de ter voltado jamais a uma página sua. Pessoa, tanto quanto Machado, foi um amor impossível. Ele é maravilhoso, mas eu jamais desejaria ser esse sombrio professor de inglês, todo encapotado no mistério e sem ânimo de decifrá-lo.

Também nada devo literariamente a Bruno Tolentino, malgrado a amizade e a admiração sem reservas que tenho por ele.

O fator que nos separa é sociológico. Brega por origem e vocação, não posso me identificar com as raízes culturais — portanto, nem com o tônus verbal — de um rapaz de família célebre, parente de meio mundo, criado entre literatos.

Fui amigo e devoto discípulo de Herberto Sales. A primeira visão que tive dele foi a de um velho mulato gorducho, sentado a um canto no lobby do Hotel Glória com um livro e um caderninho. O livro era um volume de Proust. No caderninho Herberto anotava, com uma caligrafia miúda, as soluções verbais que pudesse aproveitar. Poucos autores brasileiros, dizia Otto Maria Carpeaux, tiveram uma consciência artística tão desperta, tão aguda, tão esforçada quanto Herberto Sales.

Aprendi também com o próprio Carpeaux, do qual li praticamente tudo o que publicou em português. Ele não era um visual, mas um auditivo. Não nos fazia ver as coisas, mas adivinhá-las pela sua repercussão em épocas e almas. Ele tinha a arte camerística de, num breve artigo, introduzir sutilmente um tema, desenvolvê-lo, fazê-lo ressoar em muitas oitavas e resolvê-lo rapidamente, nas linhas finais, com uma “coda” abrupta e estonteante. Ninguém, entre nós, dominou como ele a técnica do ensaio breve, condensação poética de controvérsias científicas enormemente complexas.

A Nelson Rodrigues também devo muito. Dois títulos condensam toda a sua arte de escrever: “A vida como ela é” e “O óbvio ululante”. O segredo do seu estilo é a audácia de dizer as coisas da maneira mais direta e corriqueira, transfigurando o prosaico em símbolo. Não encontro coisa similar senão em Pío Baroja e Julien Green, embora neste sem nada do cinismo de Nelson, naquele com um cinismo diferente, mais frio e resignado.

Mas a arte de resumir todo um argumento numa frase breve, de impacto brutal — que tantos me condenam como se fosse prova de não sei que sentimentos ruins — aprendi mesmo foi com três santos: S. Paulo Apóstolo, Sto. Agostinho e S. Bernardo. Tudo tem um preço. Ninguém pode imitar os santos, nem mesmo em literatura, sem escandalizar uma intelectualidade pó-de-arroz.

Dos autores estrangeiros do século XX, além de Baroja e Green, os que mais me ensinaram foram Ortega y Gasset e Bernanos. Ortega é de longe o maior prosador da língua espanhola, sem similares nela ou em qualquer outra pela sua força de fazer ver aquilo de que fala. Na verdade, mais que fazer ver. Ele próprio comparava a força aliciante do seu estilo a um punho que saltasse da página e agarrasse o leitor pela goela, obrigando-o a envolver-se na discussão como se fosse problema pessoal. Efeito parecido despertam as páginas de Bernanos, mas com um “pathos” de moralista encolerizado que falta por completo ao amável e gentil Ortega.

Como escritor de livros de filosofia tive de passar também pelos problemas da exposição filosófica, mais complexos, do ponto de vista técnico-literário, do que em geral se imagina. Para mim, o maior expositor filosófico de todos os tempos (não o maior filósofo, é claro) foi Éric Weil. Nos seus escritos, a construção abstrata eleva-se às alturas de uma realização estética, mas de uma estética que, em vez de se superpor como um adorno ao pensamento conceitual, é encarnação direta do próprio espírito filosófico. A força do seu estilo é a beleza da razão quando alcança o plano mais alto da pura necessidade metafísica. Apenas, para apreciá-la, é preciso ter desenvolvido o senso dessa necessidade, que falta por completo às mentes grosseiras, divididas entre o caos empírico e o formalismo lógico vazio. A estas o vigor da prova pode dar a impressão de um autoritarismo dogmático, de uma imposição da vontade, quando ela vem precisamente do contrário, da total rendição da vontade ante aquilo que, simplesmente, é o que é.

Virtudes similares, em grau menor, encontro em Edmund Husserl e Louis Lavelle, com a ressalva de que este insiste demais no que já demonstrou e aquele abusa dos termos técnicos em prol da brevidade que, como já dizia Horácio, se opõe à clareza.

O grande expositor filosófico nada tem de “didático”. A filosofia, sendo educação em sua mais íntima essência, é por isto mesmo metadidática, não havendo nela a possibilidade de uma seriação graduada do mais fácil para o mais difícil. Em filosofia a melhor maneira de dizer é aquela que encarne da maneira mais direta e fiel o próprio método filosófico, e o método filosófico melhor é o que mais eficazmente apreenda a coisa da qual se fala, sem nada acrescentar à sua simplicidade ou subtrair da sua complexidade. Não se pode falar legitimamente de filosofia senão desde um ponto de vista filosófico. Não há quadro de referência externo desde o qual se possa “compreender” uma filosofia, pela simples razão de que a filosofia é a arte de montar os quadros de referência de toda compreensão. Por isso, a “divulgação filosófica” acaba sendo, quase sempre, fraude; e os melhores escritos filosóficos quase nunca parecem bons a quem os julgue de fora, com critérios unilateralmente “literários”.

Recolocando em circulação informações essenciais

Prefácio a A Face Oculta da Estrela, de Adolpho J. de Paula Couto

Olavo de Carvalho

15 de maio de 2001

Um dos itens essenciais do cardápio gramsciano que hoje regula a dieta mental brasileira é o controle das informações, com a supressão de todas aquelas que possam trazer dano ao projeto revolucionário comunista. Foi preciso quarenta anos de “ocupação de espaços” (termo técnico gramsciano) nos jornais, nas editoras e nas instituições culturais em geral para obter esse efeito, que hoje pode se considerar satisfatoriamente conquistado. Notícias, livros e idéias inconvenientes foram tão eficazmente retirados do mercado, que a simples hipótese de que possam existir já desapareceu da imaginação popular. Se mencionamos, por exemplo, a agressão comunista que desencadeou o conflito do Vietnã, ninguém sabe do que estamos falando, pois a mentira tola de que os EUA começaram a guerra já fincou raízes na opinião pública como um dogma inabalável. Se falamos de “estratégia revolucionária”, todos arregalam os olhos, porque estão certos de que isso não existe. Se aludimos aos planos em avançado estado de realização para restaurar no América Latina o império comunista que se perdeu no Leste Europeu, somos imediatamente rotulados de fantasistas e paranóicos, embora esse objetivo tenha sido proclamado aos quatro ventos por Fidel Castro no Foro de São Paulo.

Claro: todas as informações que dariam credibilidade às nossas palavras foram suprimidas da imprensa, das livrarias, da memória nacional enfim. Até das escolas militares foi suprimida a disciplina de “Guerra revolucionária” cujo estudo fazia da classe fardada o último reduto de uma consciência alerta contra o avanço comunista.

Dezenas e dezenas de livros publicados na última década sobre as novas estratégias da revolução comunista foram colocados fora do alcance da população brasileira por um eficiente cordon sanitaire em torno do mercado editorial e da imprensa cultural, hoje reduzidos quase que por completo à condição de instrumentos auxiliares da estratégia de dominação esquerdista. Roendo pelas bordas, contornando o enfrentamento direto, evitando a pregação explícita, essa estratégia conseguiu tão completamente dominar as consciências, que muitos, nos meios jornalísticos e culturais, repetem os slogans da moda sem ter a menor idéia de que são palavras-de-ordem comunistas.

Há, é claro, os colaboradores conscientes. Mais que conscientes: profissionais. A CUT, o PT, o MST têm em sua folha de pagamento milhares de profissionais das comunicações. É um exército de repórteres e redatores maior que o da Globo, da Abril, da Folha e do Estadão somados. Eles bastariam para fazer daquelas organizações esquerdistas as maiores indústrias jornalísticas e editoriais do país. Mas o fato é que eles não são pagos para escrever: são pagos para não escrever. São pagos para “ocupar espaços” nas editoras de jornais, livros e revistas, bloqueando por sua simples presença as palavras inconvenientes e espalhando, por sua simples conversação diária, as palavras convenientes. Mesmo nessa elite ativista, poucos têm a consciência de que sua função é de censores e manipuladores. Tal é a sutileza do gramscismo, que sempre conta com o efeito do implícito e não-declarado. Não é preciso nem mesmo dizer a esses profissionais o que fazer: imbuídos das convicções desejadas, colocados nas posições decisivas, eles irão sempre na direção esperada, como água no ralo. Os outros, então, ao repetir o que eles dizem, não terão a menor idéia do projeto global com o qual estão colaborando. Tão automático e impensado é esse mecanismo, que um dos maiores especialistas em manipulação de intelectuais no mundo soviético, Willi Münzenberg, o chamava “criação de coelhos”: para começar, basta um casal. O resto vem por força da natureza. Mas o que se plantou nas redações, com dinheiro aliás recebido do exterior, não foi um casal de coelhos: foram alguns milhares de casais. O efeito multiplicador é irresistível.

Hoje, na segurança, na desenvoltura pomposa e arrogante com que pessoas que ignoram tudo do assunto nos asseguram que o comunismo é coisa do passado ao mesmo tempo que repetem servilmente slogans comunistas sem saber que são slogans comunistas, reside a melhor garantia de que os planos anunciados por Fidel Castro no Foro de São Paulo serão realizados com a cumplicidade sonsa de milhões de imbecis tranqüilos e auto-satisfeitos.

Nada mais urgente do que recolocar em circulação as informações suprimidas. Só isso poderá restaurar a possibilidade de um debate realista sobre temas que hoje estão entregues à imaginação banal de palpiteiros ignorantes e à engenharia consensual dos estrategistas que os manipulam.

Na reconquista dessa possibilidade, este livro está destinado a tornar-se um marco memorável. Aqui, pela primeira vez, reúne-se uma documentação suficientemente ampla para demonstrar o caráter ineludivelmente comunista, revolucionário e conspirador de uma organização que, aos olhos dos desinformados, passa ainda como a encarnação por excelência de uma esquerda renovada, democrática, purificada de toda contaminação com o passado totalitário.

A coragem, a paciência e a determinação com que seu autor, Adolpho J. de Paula Couto, reuniu e ordenou estas provas fulminantes da perfídia esquerdista farão dele, para sempre, alvo do ódio dos atuais senhores da moral. Creio que nada de mais honroso se poderia dizer de um homem de bem.

São Paulo, 15 de maio de 2001

————

Adolpho J. de Paula Couto, A Face Oculta da Estrela, Gente das Letras, Porto Alegre. Telefone do autor: 051 225-6588.

Explicação terapêutica

Olavo de Carvalho


Época, 12 de maio de 2001

Por que o marxismo é uma doença da alma e por que os doentes fogem do tratamento

Quando digo que a honestidade intelectual é incompatível com a contaminação marxista da inteligência, não há nisso nenhuma “tomada de posição ideológica”. Há, sim, a conclusão de mais de 20 anos de estudos, durante os quais me abstive de opinar em matéria política justamente para evitar que uma “tomada de posição” falseasse minha visão do assunto.

Uma das conclusões a que cheguei é que não pode haver honestidade se o opinador não distingue, em suas idéias, o que é conhecimento da realidade e o que é ativa intervenção nela: ninguém pode escapar da ilusão e da mentira se seus pensamentos são profecias auto-realizáveis.

Ora, no marxismo, especulação e ação vêm essencialmente confundidas porque ele rejeita in limine qualquer conhecimento puramente teórico ou contemplativo. Para o marxista, a separação de teoria e prática é “formalismo burguês”: só podemos conhecer a realidade mergulhando de cabeça no processo ativo de sua transformação. Essa idéia penetrou fundo na mentalidade dos intelectuais e hoje impera, seja como dogma estabelecido, seja como pressuposto inconsciente, sobre todos os debates públicos neste país ou onde quer que o marxismo tenha exercido uma influência determinante.

Acontece que essa é talvez a idéia mais enganosa que alguém já teve. Enquanto não a varrermos das cabeças pensantes, não haverá honestidade, sinceridade e realismo em nenhuma discussão política ou cultural.

A “união de teoria e prática” exerce sobre as consciências um apelo muito forte porque nela reconhecem, instintivamente, sua própria linguagem interior, ignorada pelo realismo frio das filosofias científicas. Na esfera da alma individual, teoria e prática são de fato inseparáveis. Quando tomo consciência de um dado de minha realidade pessoal, o conhecimento adquirido se incorpora, imediatamente, a essa própria realidade. O preguiçoso que toma consciência de que é preguiçoso já não é apenas um preguiçoso: é um preguiçoso consciente. A consciência da preguiça já não é pura visão teórica: ela age imediatamente sobre a realidade conhecida e a transforma.

Ora, a escala do coletivo, do histórico, do social, que é onde o marxismo e seus resíduos afirmam resolutamente a união de teoria e prática, é precisamente onde ela não pode se realizar de maneira alguma. Supondo-se, por exemplo, que a visão marxista da classe proletária fosse certa, nem por isso ela se impregnaria automaticamente na prática das lutas proletárias como a consciência da preguiça se impregna na alma do preguiçoso. Entre a teoria na mente de Marx e a revolução proletária no mundo real, algumas décadas de propaganda teriam de ser percorridas. Não há transmissão automática dos pensamentos dos filósofos às ações da multidão. Na verdade, 150 anos de marxismo não bastaram para metê-lo na cabeça dos trabalhadores do mundo, malgrado os prodigiosos esforços da propaganda soviética.

Ao afirmar a unidade intrínseca e essencial daquilo que só pode ser unido por muito trabalho e artifício, o marxismo falseia, na base, os dois pilares da inteligência humana: o conhecimento e a ação.

Quem quer que tenha se deixado levar pelos encantos do marxismo está gravemente contaminado por uma mentira fundamental, que, se não for erradicada, acabará por falsear todo o seu pensamento. Só que, como na escala individual consciência e realidade estão de fato unidas, a falsidade não será só do pensamento: será também da personalidade, dos atos, da vida.

Eis por que combater o marxismo não é só combater uma “opinião” como qualquer outra: é convocar de volta à autenticidade da vida seres humanos que alienaram suas existências no altar de uma farsa e que já não sabem como sair dela. É psicoterapia, no sentido mais nobre da palavra. Se me odeiam por praticá-la, isso reflete apenas o terror pânico com que os fantasmas da neurose reagem ante a chegada da elucidação terapêutica.