A hora do lobo

Olavo de Carvalho

Época, 8 de setembro de 2001

No lusco-fusco moral, o país vacila e teme

Poucas imagens me impressionaram tanto, nos últimos tempos, quanto a de Silvio Santos, prisioneiro em sua própria casa, sorrindo diante das câmeras. Todo um condensado de tensões contraditórias transparecia nessa máscara enigmática: o ríctus de pavor do condenado que antevê o próprio cadáver, a ânsia de camuflar o sofrimento sob a figura estereotipada do eterno garoto jovial dos programas de auditório, a revolta impotente de um cidadão e pai que, vítima da desordem e da maldade, tenta dissipar a má impressão deixada por uma filha afetada de síndrome de Estocolmo, que dois dias antes glamourizava seus algozes diante do público estupefato.

Essa imagem resume, para mim, a situação existencial de nossa classe dominante acuada, inerme, desorientada, prendendo entre os dentes uma prótese de sorriso num último e desesperado esforço de persuadir-se de que está tudo sob controle.

O Brasil, na verdade, já não tem classe dominante nenhuma. Está numa transição entre duas classes dominantes. A antiga, de empresários e políticos tradicionais, já não domina nada. A nova, de intelectuais enragés, ainda não se sente segura o bastante para agarrar de vez a máquina cujo domínio ambicionou e cuja posse, longamente negada, agora se lhe oferece diante dos olhos como uma promessa e um risco.

Nesse interregno, o país agita-se num vazio atormentado e sombrio, o lusco-fusco das transições revolucionárias. É a hora do lobo, o momento indeciso entre uma longa noite de espreita e uma aurora sangrenta. A hora em que o predador esfaimado, ansioso para saltar sobre suas vítimas, hesita ainda em sair da toca porque não tem a certeza de que vai caçar ou ser caçado.

É natural que a essa nebulosa indefinição do poder correspondam, na esfera moral, psicológica e até lingüística, o completo embotamento da sensibilidade, a dissolução de todos os critérios, a abolição do certo e do errado. Também é natural que cada um busque camuflar sua incerteza e perplexidade mediante afetações de indignação moral inflamada, ersatzretórico da lucidez moral. A moral é função da inteligência, da escolha racional. Quando essa capacidade desaparece, a ênfase verbal histriônica do moralismo acusatório é a última tábua de salvação para a alma que naufraga.

O que não é natural de maneira alguma é que os autores e inspiradores da situação, os promotores da mutação revolucionária, nem de longe reconheçam nela o resultado de suas próprias ações, mas se finjam e até se creiam observadores isentos, capazes de enunciar diagnósticos e prescrever remédios.

Chego a duvidar de meus olhos quando vejo um desses apóstolos da liberação da delinqüência, algum velho leitor e discípulo devoto dos teóricos do potencial revolucionário do banditismo, Marcuse e Hobsbawm, aparecer em programas de TV para analisar, com ares professorais de neutralidade científica, os efeitos de sua longa militância em favor da desordem e atribuí-los, com o ar mais inocente do mundo, à maldade do capitalismo. É o lobo convocado a dar seu parecer médico sobre a saúde das ovelhas.

Entre a hipótese do fingimento cínico e a da dupla sinceridade de uma cisão esquizofrênica, fico com ambas. O sujeito começa fingindo, depois ele todo se transmuta em fingimento. “Mentir em prol da verdade”, afinal, é um clássico lema comunista. Não há como praticá-lo sem acabar apagando todas as distinções entre o sincerismo cândido e a farsa maquiavélica. No fim o cidadão se sente tanto mais bondoso e confiável quanto menos sabe discernir o bem do mal.

Mas como impedir que, na nebulização geral dos critérios, o encargo do guiamento moral da nação acabe ficando nas mãos dos homens mais desorientados se justamente eles são os únicos que estão desorientados o bastante para se sentir orientados?

O Império do Ódio

Huáscar Terra do Valle
advogado e escritor

5 de setembro de 2001

Depois do ataque terrorista aos Estados Unidos tomei conhecimento de que o prefeito de Nova York pedira milhares de sacos funerários para retirar os corpos das vítimas.

Para minha estupefação, a pessoa que me deu esta informação não podia esconder sua alegria ao tomar conhecimento da extensão da carnificina. Ficou feliz com a notícia, esfregou as mãos de contentamento, ensaiou alguns passos de dança, abriu um largo sorriso e exclamou: “Pena que não tenha morrido mais gente”.

Esta pessoa parece normal. No entanto, é comunista, e, naturalmente, eleitor do Lula. Odeia obcecadamente os Estados Unidos, por razões ideológicas, ou melhor, patológicas. É tão intenso seu rancor que se sente feliz ao saber que milhares de cidadãos inocentes, pais, mães e filhos, foram castigados pelo “crime” de serem americanos. Seu ódio é tão avassalador que até ignora que dezenas de brasileiros também encontraram seu fim debaixo de toneladas de escombros. Uma contadora, de Belo Horizonte, escapou, porém perdeu uma perna, o que deve ter aumentado a euforia deste demente.

O ódio transforma as pessoas em monstros. Outro comunista abriu sua alma para mim, declarando: “Sou comunistae quero matar todo o mundo”. Podemos apenas imaginar a intensidade do ódio que corrói a mente doentia de comunistas e de certos fanáticos islamitas. Para dar vazão a seu ódio, imaginam que sua brutalidade lhe assegurará um lugar no paraíso, onde gozará de prazeres orgásticos pelo resto da eternidade. Nenhum animal é capaz de tamanha baixeza e estupidez.

Hitler odiava os judeus e exterminou seis milhões. Stalin odiava todos aqueles que pudessem ameaçar seu poder e matou sessenta milhões. Mao Tsé-tung também deu vazão ao seu ódio chacinando sessenta e seis milhões de conterrâneos. Pol Pot matou um terço da população do Cambódia, à procura do comunista perfeito. Fidel Castro, por falta de material, matou apenas dezessete mil, sem falar naqueles que torturou e em muitos que ainda estão encarcerados nas merdácias de Cuba.

As frustrações da vida represam o ódio das pessoas, que buscam maneiras de se expressar. Movimentos de massa, como nazismo, comunismo, terrorismo e muitas religiões, como o Islamismo, oferecem a estas pessoas oportunidades de dar vazão a este rancor sufocado no peito, que rói suas mentes e as leva a verdadeira paranóia. Sofrem principalmente com o sucesso de outras pessoas (ou de outros países) e dedicam sua vida a destruir as pessoas ou nações objeto de sua inveja. Só assim conseguem aliviar o tormento da percepção da própria insignificância. Na esteira desta patologia vêem as teses comunistas que seduzem as massas, como as de que os países ricos são culpados pela pobreza de outros países, que o Brasil é colônia dos Estados Unidos, e outras falácias.

São esses represamentos doentios de ódio que levam as pessoas a abraçar uma causaqualquer causae, por ela, até sacrificar a própria vida, como ocorreu com os camicases árabes que perpetraram os covardes ataques a New York e a Washington.

Grandes ditadores sempre galvanizaram as massas oferecendo-lhes a chance de dar vazão a este ódio reprimido, elegendo um alvo, qualquer que seja ele: os judeus, os burgueses, os americanos, os pagãos, os infiéis. No Brasil, grupos neonazistas se unem no ódio a nordestinos, pretos e homossexuais.

Os fanáticos, sejam eles comunistas, nazistas ou islamitas, transbordam de ódio a ponto de perder completamente a sensibilidade ao sofrimento humano. Hitler, Stalin, Mao Tsé-tung, Pol Pot, Fidel Castro e outros açougueiros nunca se preocuparam com o infinito sofrimento que causaram. Cinicamente, Stalin afirmou que enquanto a morte de uma pessoa é uma tragédia, a morte de milhões não passa de uma estatística. Assim agia ele e assim agem os terroristas, comunistas e outros depravados mentais.

Por que os esquerdistas e os islamitas odeiam os americanos? Temos incontáveis motivos para admirar e gostar dos Estados Unidos, um país estabelecido segundo os princípios dos grandes gênios do Iluminismo, fundado nos ideais de liberdade, democracia e respeito ao indivíduo e às leis.

Quem não gostar do Estados Unidos, pelo menos deveria admirá-lo por suas realizações. É um país que, sozinho, é responsável por um quarto de toda a produção de riqueza do mundo e pelo desenvolvimento da maior parte da ciência e da tecnologia. Os Estados Unidos salvaram o mundo em duas guerras mundiais e seus cientistas já conquistaram quase trezentos prêmios nobéis, concedidos àqueles que contribuíram para o desenvolvimento científico e moral da humanidade. É sempre o primeiro país a enviar socorro quando ocorrem cataclismos em qualquer parte do mundo e é o único país que facilmente aceita emigrantes e os assimila como cidadãos, com todos os direitos.

Aqueles que odeiam os Estados Unidos, como alguns islamitas e também os membros do MST, do PT, do Pc do B, do PDT, da UNE, assim o fazem porque odeiam também a liberdade e o respeito ao indivíduo. São fanáticos patológicos, inimigos acerbos do individualismo, adoradores do coletivismo, que não perdoam o sucesso do capitalismo. Não conseguem aceitar o fracasso do coletivismo comunista e de outras religiões e querem destruir aqueles que obtiveram o sucesso que eles não conseguiram. Não passam de dementes que desejam destruir aqueles que desnudam, pela comparação, sua própria insignificância moral e material. Aspiram ainda a conquista do poder, por quaisquer meios, para dar vazão a seus instintos assassinos, com toda a truculência e bestialidade que caracterizam os adeptos do Jihad (guerra santa islâmica), como o Talibã, e os países comunistas de todos os quadrantes.

O pior é que fanatismo não tem cura. Apesar da queda do Muro da Vergonha e do fracasso retumbante de todas as economias comunistas, ainda existem dementes carregando no bolso o Manifesto do Partido Comunista e sonhando em fazer de nosso país uma Cuba com oito milhões e meio de quilômetros quadrados, como já tentaram várias vezes e continuam tentando, com a cumplicidade de educadores, jornalistas, artistas, estudantes e do próprio governo.

O fanatismo de esquerda, aliás, qualquer fanatismo, não tem cura, porque, na mente corrompida de suas vítimas ocorre uma total inversão de valores. Em vez de amor, cultivam o ódio. O que é mau para suas vítimas, como no caso da carnificina de New York, para eles torna-se bom e motivo de comemorações. A desgraça daqueles que os humilham é alegria para eles. Em vez de admiração para com aqueles que progridem, reagem com hostilidade, guerra ou terrorismo. Em vez de seguir os passos daqueles que melhoraram, só querem destruí-los, porque acham mais fácil voltar à idade da pedra lascada, como o Afeganistão, onde as mulheres são obrigadas a usar sacos (burcas) em vez de roupas e podem ser lapidadas até a morte se exibirem um braço em público.

Finalmente, não adianta mostrar a estes dementes o sucesso do capitalismo, cuja maior vitrine são os Estados Unidos. Ao contrário: as realizações do capitalismo realçam sua insignificância, aumentando suas frustrações e recalques, detonando o ódio e incitando-os a destruir aqueles que os penalizaram conscientizando-os da própria mesquinhez.

 

Moral e genocídio

Olavo de Carvalho


O Globo, 1o de setembro de 2001

Não me lembro de jamais ter falado ou pensado mal de alguém por sua conduta sexual, por mais esquisita que ela pudesse parecer aos que me rodeavam. Além de não me considerar um buquê de virtudes para que a comparação com os outros fosse de algum reconforto para o meu ego periclitante, conheço-me o bastante para poder dizer, com toda a sinceridade, que sou incapaz de me interessar pela vida privada de quem quer que seja. Posso estar errado, mas, numa época em que o genocídio e as prisões em massa se tornaram banalidade, alguém perder o seu tempo escandalizando-se com pequenas indecências me parece uma imperdoável frescura.

Na base de toda moral está o senso das proporções. O segundo mandamento formula-o da maneira mais eloqüente. Quando passar a era dos Robespierres, Hitlers, Lenins, Pol-Pots e Castros, quando o mundo voltar ao normal e a humanidade reconquistar seu rosto humano, talvez os filmes pornôs e a gandaia geral comecem a me incomodar. Por enquanto, considero-as apenas naturais reações de fuga diante de uma situação intolerável, que não passa sequer pela consciência: vai direto de um sentimento de terror difuso para uma cama de bordel, onde tudo se dilui, por instantes, num deleitoso esquecimento.

O próprio Papa já disse que numa época de loucura coletiva o peso dos pecados não é o mesmo.

Daí o meu profundo desinteresse e até irritação ante campanhas moralizantes de qualquer espécie. No entanto, por idênticas razões, não posso suportar que a defesa do direito à esquisitice se torne, ela própria, um neomoralismo mais intolerante e mais imbecil do que qualquer puritanice já registrada ao longo da História. Quando um conservador se enche de indignação ante coisas que no máximo seriam dignas de riso ou de piedade, sinto estar na presença de um louco enfurecido. Mas, quando um apologista de qualquer “sex lib” pretende que seus gostos sexuais sejam mais dignos de respeito e de proteção estatal do que a devoção religiosa dos outros, aí vejo que o louco já passou dos limites da loucura e entrou no campo da maldade pura e simples. Nunca, em hipótese alguma, a busca de um prazer corporal qualquer será coisa mais elevada, mais respeitável e mais digna de proteção oficial do que a busca da verdade, sobretudo quando esta importa em sacrifícios pessoais, como se dá no caso da devoção religiosa, de qualquer devoção religiosa, e mais ainda daquela que siga a linha de alguma das religiões antigas e universais, como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, que construíram a humanidade e fizeram de nós alguma coisa mais valiosa que um chimpanzé.

Deleites eróticos, gastronômicos, químicos ou indumentários são e serão sempre direitos menores, em cuja defesa não se deve empregar mais tempo ou energia do que na preservação da dignidade humana ou do direito de pensar. Se duvidam da sinceridade com que digo isso, por favor observem que, sendo fumante contumaz e impenitente, muito constrangido pelo antitabagismo psicótico reinante, raramente ou nunca me lembro de escrever em defesa do meu direito de fumar.

Se perdemos o senso da diferença entre o prazer e o dever, se não somos mais capazes de estabelecer uma hierarquia de prioridades entre o que gratifica o nosso corpo e o que eleva nossa consciência, então nos tornamos indignos da condição humana e damos razão aos que, considerando a produção de gente uma atividade tecnológica e industrial como qualquer outra, pretendam atirar à câmara de gás os que não sejam aprovados no controle de qualidade.

Se prezamos antes o deleite do corpo do que os deveres do espírito, então, sem a menor dúvida possível, somos neodarwinistas e nazistas até a medula do nosso ser. Por isso mesmo é que considero indecente, hediondo e intolerável o critério de prioridades adotado pelo Ministério brasileiro da Justiça nas propostas que pretende apresentar à Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, que começou ontem em Durban, África do Sul. Ultrabadalado por causa de suas “posições progressistas”, o Ministério pretende atacar de frente toda discriminação sexual e isto está muito bem. O que não está muito bem é que, na sua afetação de bons sentimentos pelos grupos discriminados, essa entidade não tenha uma só palavra a dizer em favor dos católicos que estão sendo massacrados na China e cujos apelos desesperados, jamais ecoados pela mídia nacional, nos chegam diariamente através da agência vaticana Fides. Muito menos se preocupa o bondoso Ministério com as mães chinesas que continuam a ser fuziladas às pencas quando se recusam a abortar seus filhos. Nem tem, a piedosíssima repartição burocrática, o menor olhar de piedade para com os religiosos budistas que, após o massacre de um milhão de seus compatriotas, fugiram do Tibete e hoje vivem errantes pelo mundo. Nada disso comove o sentimentalíssimo dr. Gregori, embora ele deva ao prestígio da religião a sua carreira política.

Sim, sofrer constrangimento por ser homossexual é triste, é revoltante. Mas aquele que sofre não apenas constrangimentos menores, e sim prisão, tortura e morte por ter consagrado sua vida ao espírito, será ele menos digno de proteção e respeito?

A inversão das proporções na agenda libertária do nosso Ministério é tanto mais abominável quando se considera que os mesmos países que se destacaram na perseguição a grupos religiosos são também notórios repressores de homossexuais, se bem que em grau menor. Mas neste caso o Ministério estrila, naquele não. Por que o direito de uns ao prazer há de ser mais sacrossanto que o direito de outros à vida? Será que, no entendimento desse nosso governo, “gozar é preciso, viver não é preciso”?

Nenhuma perseguição ou discriminação sofrida por qualquer grupo sexual, racial, ou cultural ao longo de toda a história humana se compara, em números e em crueldade, ao destino terrível que a modernidade impôs aos religiosos. Mais seres humanos foram condenados à morte desde o século XIX por serem ortodoxos, católicos, protestantes, budistas, judeus ou muçulmanos do que, ao longo de todos os séculos, por qualquer outro motivo.

Mesmo a discriminação racial, longe de ser um fenômeno básico e independente, não foi senão o efeito colateral da aplicação de doutrinas materialistas e darwinistas que pretenderam, com base numa pseudobiologia, desbancar a convicção religiosa da substancial igualdade dos homens perante o Eterno. A multiplicidade aparente dos sintomas da maldade coletiva remete sempre a uma doença básica: a revolta contra Deus.

Se a conferência de Durban e o nosso Ministério da Justiça ocultarem esse fato sob uma tagarelice desproporcional em torno de formas menores e secundárias de discriminação e perseguição, eles terão assumido, perante a História, o papel de legitimadores, ao menos involuntários, do maior e mais monstruoso dos genocídios.