Discípulos de Saramago

Olavo de Carvalho

O Globo, 24 de novembro de 2001

Nada mais fácil do que tirar as dúvidas apresentadas por Luiz Garcia no seu artigo de quinta-feira:

1) A presença de 800 jornalistas na folha de pagamento da CUT foi admitida por dirigentes da entidade ao “Jornal do Brasil” de 5 de maio de 1993.

2) Eleições sindicais não revelam a influência dos sindicatos sobre os associados, mas — por definição — a influência dos associados sobre os sindicatos. O argumento de Garcia, portanto, é extemporâneo. Nos sindicatos de jornalistas, há vinte anos toda chapa que se apresenta é de esquerda, maciça a sua votação, mínimo o número de abstenções. Dizer que isto não prova a hegemonia esquerdista é fazer-se de cego.

3) Garcia reconhece que a esquerda domina as redações, mas pretende que isso não afete a orientação do noticiário e afirma que a alegação de distorções sistemáticas é “caluniosa e vil”. Pergunto-lhe, então: quantas vezes, ao longo dos últimos vinte anos, a imprensa nacional investigou os crimes da ditadura, e quantas os dos comunistas? Quantas vezes foram noticiadas as violências de Pinochet e quantas as dos comunistas na China, no Tibete, no Vietnã, na Coréia do Norte? Quantas, o processo contra Pinochet na Espanha e quantas seu similar contra Fidel Castro na Bélgica? Quantas, o milhão de vítimas feitas pelos soviéticos no Afeganistão e quantas as poucas baixas civis registradas na atual intervenção americana? Quantas, a ajuda financeira de um dirigente do Comintern à família Gore? Todas essas distorções e omissões foram meras coincidências, lapsos sem malícia? Seria possível tanta inépcia aliada a tanta inocência? Calunioso e vil é o silêncio com que a imprensa nacional encobre tudo quanto não interesse à causa comunista.

4) A China, para Garcia, tornou-se inofensiva porque entrou na OMC. Mas o problema não é saber se ela entrou na OMC: é saber se ela saiu do Tibete. É saber se ela parou de aumentar seu estoque de armas atômicas. É saber se ela parou de ser recordista mundial de fuzilamentos. É saber se ela parou de prender padres e bispos por serem padres e bispos. Só que estes assuntos estão fora da pauta de uma imprensa decidida a vender uma imagem rósea do comunismo chinês.

Mas voltemos a Jean Sévillia. A situação da imprensa francesa descrita no artigo anterior observa-se quase igual nos EUA: é uma coisa alarmante, embora ainda longe do estado de quase perfeito controle totalitário que se estabeleceu no jornalismo brasileiro.

Em 1985, uma pesquisa do “Los Angeles Times” entre três mil editores e repórteres de 600 jornais e revistas americanos mostrou que, nas eleições de 1964, 94 por cento deles votaram com a esquerda. Mesmo nas eleições de 1972, que deram arrasadora vitória a Richard Nixon, 81 por cento dos jornalistas preferiram George McGovern, mostrando o abismo entre a opinião da classe e as preferências gerais do eleitorado.

Os reflexos disso na orientação do noticiário são escandalosos. Em 1976, enquanto um milhão de cambojanos morriam nas mãos da ditadura Pol-Pot, o “New York Times” deu apenas quatro notícias de violações de direitos humanos no Camboja, mas 66 de análogo teor sobre o Chile (onde o total de mortos da repressão nunca passou de três mil). O “Washington Post” deu nove notícias sobre o Camboja, 58 sobre o Chile. A NBC não fez qualquer menção ao massacre do Camboja, a ABC fez uma, a CBS duas.

O espectador brasileiro, que hoje assiste à TV americana via cabo, fica informado de cada baixa civil no Afeganistão. Mas a rede inteira das grandes TVs americanas deu menos tempo, durante todo o ano de 1985, para o noticiário da invasão soviética (um milhão de afegãos mortos), do que gastou numa só noite com o caso “Irã-Contras”: 56 minutos contra 57.

É impossível ao público americano, assim desinformado, conservar um mínimo razoável de senso das proporções.

Mas a censura esquerdista na mídia de grosso calibre é ali compensada pela profusão de pequenos jornais e revistas que, nas províncias, atingem mais diretamente o público, e nos quais a opinião conservadora ainda tem amplo espaço para se manifestar. Há também muitas agências independentes e sites tipo “press watch”, que neutralizam em parte o efeito falsificador vindo de cima.

No Brasil, a imprensa regional tem peso irrisório em comparação com o da grande mídia, e os sites de exame crítico na internet foram encampados pela própria esquerda, que utiliza esse espaço para manter os donos de jornais sob chantagem psicológica, de modo a dissuadi-los de qualquer veleidade de controlar o esquerdismo desvairado de suas redações. (E além disso — respondo ainda a Garcia –, como iriam controlá-lo, se os jornalistas já vêm das faculdades com a cabeça feita e os poucos profissionais livres de contaminação esquerdista não bastam para preencher nem um décimo das vagas?)

O resultado é que a própria esquerda, jamais satisfeita com a quota leonina que já lhe pertence, se sente insultada e intimidada quando, por descuido ou coincidência, sua rede de fiscais deixa passar algum artigo assinado que — longe das páginas de noticiário, onde a assepsia é impecável — diga contra ela algo de substancial.

Bastou o deputado José Genoíno ler dois ou três artigos contra a candidatura Lula, e pronto, já veio estrilando, em “O Estado de S. Paulo” de 10 de novembro, contra o que lhe parece ser um “cerco ao PT”. O poder não apenas corrompe: enlouquece. Hitler, que decidia a vida e a morte de cada alemão, queixava-se com freqüência de que ninguém o obedecia. Olhava a multidão de seus áulicos, trêmulos e servis como cães surrados, e acreditava ver neles a chama da rebeldia. Era doido, dirão. Pois aqui tudo o que obtiveram das empresas jornalísticas não basta para contentar os novos hitlers: nada fará com que se sintam seguros e satisfeitos aqueles que nasceram para “transformar o mundo” — pois não há poder que chegue para quem sonha em tornar-se demiurgo quando crescer. Do ponto de vista dessa gente, qualquer crítica, por mínima e isolada que seja, é um “cerco”, um perigo iminente, uma conspiração de direita.

Nunca se pode esquecer que, para a mentalidade socialista, os donos de uma empresa jornalística não são verdadeiros donos: são usurpadores temporários. Possuir uma editora de jornais por havê-la comprado ou herdado é imoral e ilegítimo: limpa, correta, honesta, somente a posse obtida pela ocupação das redações à força, como se deu em Portugal durante o reinado do terror midiático encabeçado pelo comissário-do-povo José Saramago.

Para os jornalistas criados nessa mentalidade, o reino da justiça só virá no dia em que cada um deles for um novo Saramago não nas listas de best-sellers, mas na cadeira da presidência da empresa, tomada a tapa em nome do processo histórico. Daí o absurdo de alegar, como Garcia, a mera presença dos patrões como prova da inocuidade do comunismo na imprensa: se bem entendi Karl Marx, a existência de capitalistas não é um obstáculo às revoluções comunistas, mas, ao contrário, o pressuposto delas.

PS – Uma resposta mais detalhada às objeções de Luiz Garcia será publicada em breve nesta homepage.

Descrédito da mídia


Enganar o público não é tão fácil quanto parece  

Olavo de Carvalho


 Publicado em Época, 24 nov 2001, com uma frase a menos. A frase cortada aparece aqui em negrito.

Numa recente pesquisa do Observatório da Imprensa entre 4324 visitantes do seu site, 94 por cento disseram que desde o 11 de setembro a mídia torce o noticiário, decididamente, para o lado dos terroristas.

Isso mostra que o leitor brasileiro não é idiota. Idiotas são certos chefes de redação que imaginam que, controlando um jornal ou revista, controlam a consciência do público.

A famosa “hegemonia”, conquistada ao longo de quatro décadas de usurpação de espaços e neutralização dos adversários, pode ser muito eficiente na rede de ensino. A manipulação psicológica de adolescentes, a exploração política de mentes imaturas, o abuso intelectual de menores tal é, no fundo, a única atividade cultural bem sucedida do esquerdismo militante.

Na imprensa, perante um público adulto, a eficácia do truque sujo é bem relativa.

Ninguém, depois de ver que em dois meses de combate as baixas civis no Afeganistão não chegam à vigésima parte do que os terroristas de bin Laden produziram em cinco minutos em Nova York, pode acreditar nos santarrões de ópera bufa que proclamam os EUA “a maior nação terrorista do mundo”.

Ninguém pode acreditar na seriedade de politiqueiros acadêmicos que, no paroxismo do seu ódio aos EUA, se rebaixam a aplaudir servilmente qualquer ditadorzinho grotesco que prometa fazer mal aos americanos.

Ninguém, ao ouvir o dr. Leonardo Boff dizer que dois aviões espatifados não bastam, que seria preciso jogar logo uns 25, pode deixar de perceber que não há um pingo de cristianismo na alma de um fanático de olhos frios, apologista do genocídio.

Ninguém, ao notar que ao longo de um século, somadas todas as guerras e intervenções, os americanos não chegaram a fazer dois milhões de vítimas — a quota bi-anual do genocídio comunista –, pode deixar de perceber que, dentre as potências imperialistas que já puseram as patas no mundo, os EUA são a mais pacífica, a mais tolerante, a mais incruenta.

Imperialismo é imperialismo e não deve ser aplaudido nunca, mas só um cretino de marca não percebe a diferença de tratamento que os EUA e as potências socialistas deram aos povos colocados sob sua influência respectiva. Mesmo os famosos 200 mil vietcongs mortos, tão pranteados pela mídia, não morreram afinal senão em defesa de ditadores sanguinários que, até então, já haviam matado um milhão de seus próprios compatriotas e depois mataram mais outro tanto.

Ninguém, sabendo que o Talibã foi armado pelos EUA contra a URSS, pode deixar de perceber que os americanos, quando ajudam um povo em guerra, não o escravizam em seguida como sempre o fizeram a China e a URSS, mas o deixam livre, até mesmo, para voltar-se contra seus benfeitores.

Ninguém pode constatar a descarada hostilidade dos jornais e da TV para com os EUA — hoje como na guerra do Vietnã — e ao mesmo tempo acreditar piamente que a mídia é um instrumento de manipulação a serviço do imperialismo ianque.

A mídia serve, sim, a poderosos interesses mundialistas, mas imaginar que coincidam necessariamente com os dos EUA é ignorar cinco décadas de briga de foice entre os nacionalistas norte-americanos e a Nova Ordem Mundial. Essa briga vem sendo cuidadosamente escondida dos olhos do público brasileiro por devotados “agentes de influência” travestidos de jornalistas. Mas algo da verdade sempre acaba vazando por entre as malhas da censura gramsciana.

Corajosamente, o nosso repórter José Hamilton Ribeiro, ferido durante a cobertura dos bombardeios no Vietnã, tem admitido na TV que muito do noticiário que ele e os demais correspondentes de guerra então passavam para a mídia ocidental não eram senão mentiras plantadas pelos vietcongues.

Em grande parte, a hegemonia esquerdista na imprensa é apenas a auto-intoxicação de uma classe que, de tanto discursar para si mesma, de tanto calar as vozes que a desagradam, acabou por se alienar da realidade e, quanto mais poderosos os meios à sua disposição, tanto mais facilmente cai no seu próprio engodo.

Fórum Social ou Socialista?

por Percival Puggina

Antes de mais nada, fica posto um desafio aos leitores que discordarem do conteúdo deste artigo: indiquem-me um país (qualquer um, e basta um) onde o socialismo e as idéias marxistas tenham produzido democracia e prosperidade. Note-se que ao longo de um século e meio esse sedutor modelo só não foi testado na Oceania e na Antártica. E eu não estou, nem mesmo, cobrando desempenho positivo em direitos humanos, equilíbrio ecológico e liberdades públicas; quero apenas um caso em que o socialismo real tenha gerado uma sociedade próspera e democrática.

Os organizadores do Fórum Social Mundial, no ano passado, buscaram pela mão grandes personalidades que compuseram a face externa do evento. Aqui estiveram, em meio a outros do mesmo gênero: o ditador argelino Ben Bella (“eu não sou um democrata, sou um revolucionário”); o senhor Ricardo Alarcón, marionete número um de Fidel Castro (que lhe concede a honra de presidir o único parlamento do mundo que em pleno século XXI ainda emite leis contra a liberdade do povo que diz representar); madame Danielle Mitterrand, para quem “Fidel Castro é um democrata convicto”; a dona Hebe Bonafini, que no diálogo patrocinado pela AFP com o fórum de Davos, proporcionou a mais constrangedora cena de desvario e ódio ideológico de todo o Fórum; o representante das FARC, agente do narcoterrorismo marxista colombiano que agasalhava nossos conterrâneos Fernandinho Beira-Mar e Pitoco. (Não incluo, na lista, o José Bové porque esse vivaldino é farinha de outro saco).

O mais distraído jornalista que tenha acompanhado o Fórum em 2001 sabe que esse grupo estava, para a volúpia socialista do evento, assim como o abre-alas de mulatas está para as escolas de samba organizadas por Joãozinho Trinta: levanta a arquibancada e põe todo mundo no enredo do samba.

Dentro de poucos dias, começa tudo outra vez. E agora querem falar de paz! Então, de duas uma: ou se repete o filme com os mesmos atores, ou se melhora o nível e se busca, pela mão, gente séria e desarmada. Neste último caso se estará reconhecendo que o evento de 2001 foi um lamentável engano, uma encenação mal feita, na mais rigorosa tradição da esquerda mundial: promete uma coisa e entrega outra. Ou, se o Fórum de 2001, com sua fauna guerrilheira, revolucionária e terrorista, for considerado válido, a afirmação se aplicará ao evento de 2002 e ao seu discurso em favor da paz.

Por outro lado, um Fórum Social Mundial, do tipo sério, não pode ser socialista, porque como se viu acima, os problemas sociais não são resolvidos com conversa fiada e o socialismo é um case sem versão bem sucedida. Some-se a esse constrangimento, por fim, a frustração do distinto público. Se o Fórum deixar de ser socialista e começar a tratar dos problemas sociais sem demagogia, com objetividade e eficiência, vai sobrar lugar.

Percival Puggina é arquiteto, político, escritor, presidente da Fundação Tarso Dutra de Estudos Políticos e de Administração Pública.