Um inimigo do povo

Olavo de Carvalho


 O Globo , 22 dez. 2001

Em “Os Demônios” de Dostoiévski, publicado em 1872, um revolucionário diz a outro: “Você sabia que já somos tremendamente poderosos? Preste atenção. Já fiz a soma de todos eles. Um professor que, com as crianças, ri do Deus delas, é alguém que está do nosso lado. O advogado que defende o assassino educado porque ele é mais culto que suas vítimas… é um de nós. O promotor que, num julgamento, treme de medo de não parecer progressista o bastante, é nosso, nosso… Você sabe quantos deles vamos conquistar aos pouquinhos, por meio de pequenas idéias prontas?”

Quase meio século antes da tomada do Palácio de Inverno, um século antes da difusão mundial das obras de Antônio Gramsci, o romancista já havia captado a estratégia macabra da “revolução cultural”, à qual o fundador do Partido Comunista Italiano deu apenas um embelezamento teórico mas que, em essência, já estava em ação desde o século XVIII, nos salões onde aristocratas se deliciavam com as idéias de Diderot e Rousseau sem perceber que o único propósito delas era legitimar sua decapitação.

Os homens que se gabam de ser práticos — empresários, políticos, comandantes militares — são os mais lentos em perceber o sentido prático de certas modas culturais sem teor político demasiado aparente, nas quais não enxergam senão curiosidades acadêmicas ou até exigências morais legítimas, mas cujo efeito, temporariamente obscurecido pela variedade e confusão das palavras que as veiculam, mais cedo ou mais tarde acaba por se manifestar da maneira mais brutal. Invariavelmente, esse efeito é um só: o assassinato político em massa, o genocídio.

Em geral, só dois tipos de observadores estão conscientes dessa conexão: os intelectuais ativistas, que desejam produzi-la, e os estudiosos independentes. Os primeiros têm todo o interesse de mantê-la oculta sob um véu de pretextos diversionistas, de ordem moral, estética, pedagógica, econômica, etc., sob cuja profusão as vítimas não apreendam a unidade do processo revolucionário subjacente. Os segundos, quando tentam alertar a sociedade para o que se passa, quase que invariavelmente são rejeitados como alarmistas e paranóicos por aquela mesma parcela parcela do tecido social que a revolução há de extirpar da maneira mais cruel e sangrenta.

Basta a constatação desse fato, aliás, para dar por terra com a teoria gramsciana do “intelectual orgânico”, segundo a qual as classes criam seus intelectuais sob medida para a defesa de seus interesses: com regularidade sinistra, de Voltaire a Antonio Negri, é sempre o inimigo da classe dominante que é cortejado por ela, enquanto o intelectual que desejaria preservar o sistema, por descrer da bondade e utilidade das revoluções, é estigmatizado, no mínimo, como excêntrico e marginal.

Dostoiévski, que defendia a monarquia e a religião, continuou sempre um “outsider”, enquanto os escritores revolucionários eram recebidos nos círculos elegantes, onde gozavam de toda a estima e consideração — quando não da confiança cega — de suas futuras vítimas. Nicolai Berdiaev, aristocrata de nascimento, revolucionário de convicção, conta em suas memórias como, na juventude, gostava de escandalizar princesas e condessas com discursos inflamados contra a moral e a hierarquia. Só mais tarde, ao saber que todas elas tinham morrido na Revolução, se deu conta de que contribuíra levianamente para a consecução de um crime hediondo. O caso mostra que nem mesmo os próprios colaboradores mais ativos da “revolução cultural” precisam ter plena consciência da finalidade a que seus atos, aparentemente inócuos ou então rodeados de uma aura de piedoso idealismo, concorrem quando somados a milhões de outros atos semelhantes, praticados nesse mesmo instante por uma legião dispersa de militantes, colaboradores e simpatizantes que se ignoram uns aos outros. No topo, só uma elite muito restrita tem a visão intelectual do conjunto, que não precisa ser “dirigido” como uma conspiração organizada, mas apenas sutilmente orientado, de tempos em tempos, por intervenções oportunas. O automatismo, o espírito de imitação e a atração incoercível das modas fazem o resto.

Mesmo quando não resulta diretamente numa tomada do poder político, a revolução cultural deixa marcas profundas e indeléveis no corpo da sociedade. Dois estudos recentes de Roger Kimball, editor de “New Criterion” — “Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted Our Higher Education” e “The Long March: How The Cultural Revolution of the 1960’s Changed America” — mostram como a incansável guerra psicológica movida pelos intelectuais ativistas contra a religião, a moral, a lógica e o bom-senso produziram, na vida americana, resultados catastróficos praticamente irreversíveis: a perda coletiva dos padrões mais elementares de julgamento, a prematura decrepitude intelectual dos estudantes, a disseminação endêmica das drogas, a criminalidade desenfreada. Não por coincidência, os mesmos intelectuais que conscientemente se esforçaram para criar esse estado de coisas (muitos deles a serviço da KGB ou da espionagem chinesa, como hoje se sabe graças à abertura dos Arquivos de Moscou) são os primeiros a tirar redobrado proveito político de seus próprios atos, imputando os resultados deles ao “sistema”, à “corrupção intrínseca do capitalismo” etc. etc.

É preciso ser muito cego para não perceber que coisa idêntica se passa no Brasil, com o agravante — verdadeiramente desesperador — de que estudos como os de Kimball (e centenas de outros similares) nem são traduzidos nem há equivalentes produzidos pela intelectualidade local, dividida entre a maioria de ativistas enfurecidos e a minoria de observadores acovardados, mudos, ou então acomodatícios e cúmplices. Em resultado, a simples tentativa de diagnosticar o estado de coisas é rejeitada — mesmo por parte do “establishment” — como ousadia impolida e abuso intolerável, quando não como conspiração de extrema direita.

A revolução cultural, aqui, já alcançou seu máximo triunfo, que é o de tornar proibitiva a sua própria discussão. Pouparei aos leitores o relato dos constrangimentos, ameaças e boicotes que tenho sofrido em resposta à minha simples iniciativa de analisar e mostrar à plena luz do dia a marcha de uma revolução que desejaria poder continuar florescendo à sombra protetora do implícito, do nebuloso e do não declarado. Mas, quando um escritor independente, isolado, sem conexões políticas ou protetores de espécie alguma, é combatido não por meio de argumentos e sim de manobras de bastidores e mobilizações coletivas de ódio, como se fosse um governante ou um poderoso líder de massas, então é que a atividade intelectual já se encontra inteiramente submetida aos cânones da “revolução cultural”, e quem quer que ouse contrariá-los, mesmo em pura teoria, mesmo a título pessoal e sem qualquer pretensão de reagir politicamente ao curso dos acontecimentos, já é considerado um elemento perigoso e um inimigo do povo.

Carta de Michael Peirce sobre Olavo de Carvalho

Olavo de Carvalho

20 de dezembro de 2001

Uma amiga muito querida, que me pede para permanecer anônima, enviou a Michael Peirce, colunista do site de Lew Rockwell (http://www.lewrockwell.com/peirce/peirce-arch.html), algumas traduções de meus artigos publicados logo após o 11 de setembro (reproduzidas noutro lugar desta homepage). Transcrevo aqui a resposta do sr. Peirce. – O. de C.

December 20th, 2001

Dear Mrs…,

Mr. Carvalho seems to be, as we say in the US, “wired tight.” I read the articles you included and found little or nothing I could disagree with, other than the fact that I don’t share his paranoia about Russia. However, smarter people than me do share that paranoia so I may be the one who is wrong.

My sad answer to you is that I’m not surprised that they wish to silence his voice. “They?” Yes, “they” are those wicked people I have thought of over the years as communists, cultural marxists, traitors and much else. It has dawned on me recently that “they” are simple the devil’s own tools – every country in the world is being submerged under a dark curtain of evil and these beasts are behind it all. The struggle is worldwide, and we are losing everywhere. Men are falling away from the church and the Word of God faster than we can evangelize them. Each looks to his own good and forgets his brother – government is almost universally corrupt and many churches have fallen into the pit of apostasy.

The question we as Christians must address is simple: are these the last days written of the Bible? Has the devil been “loosed for a little while?” I can’t be sure, I’m no prophet, but more and more it looks that way to me. I’m not suggesting that any of us give up the struggle for freedom, and take some fatalistic, almost Islamic attitude of “In’shallah” but there will come a time when the struggle against evil appears to be a failure and the Enemy will appear to win everywhere.

When that happens, many of us will die or be locked up. So be it. Better to die standing for righteousness and common sense, than to live as a slave to sin. And if it turns out that this is not the end time, that this is just another cycle in the ongoing battle – then we may even triumph in the end. At this point in time – I feel that is unlikely.

I send you, and Mr. Carvalho my greetings, and best wishes, along with a hearty and sincere merry Christmas. May the Lord bless your efforts to keep the darkness from swallowing up your country. We may or may not meet in this world but I have no doubt that we will meet in the next.

God bless you,

Michael Peirce

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20 de dezembro de 2001

Prezada senhora,

O sr. Carvalho parece estar, como dizemos nos EUA, “bem ligado”. Leio os artigos que a senhora envia e encontro pouco ou nada com que possa discordar, exceto o fato de que não compartilho a paranóia dele com relação à Rússia. No entanto, algumas pessoas mais sabidas que eu partilham dessa paranóia e pode ser que eu é que esteja errado.

Minha triste resposta é que não estou surpreso de que “eles” procurem silenciar a voz dele. “Eles”? Sim, “eles” – são aqueles sujeitos maldosos que ao longo dos anos pensei fossem comunistas, marxistas culturais, traidores e muitas outras coisas. Percebi recentemente que “eles” são simplesmente os instrumentos do demônio mesmo – todos os países do mundo estão sendo submergidos sob uma obscura cortina de maldade, e essas bestas estão por trás de tudo. A luta é mundial, e estamos perdendo por toda parte. Os homens estão caindo para fora da igreja e da Palavra de Deus mais rápido do que podemos evangelizá-los. Cada um busca seu próprio bem e esquece o de seu irmão – o governo é quase universalmente corrupto e muitas igrejas caíram no poço da apostasia.

A questão que nós, como cristãos, precisamos colocar é simples: são estes os últimos dias, a que a Bíblia se refere? Terá o diabo sido “solto por um tempo”? Não estou seguro. Não sou profeta. Mas mais e mais as coisas me parecem ser assim. Não estou sugerindo que nenhum de nós abandone a luta pela liberdade e assuma uma atitude fatalística de “In shah Allah”, mas chegará um tempo em que a luta contra o mal parecerá um fracasso e o Inimigo pareça vencer em toda parte.

Quando isso acontecer, muitos de nós morrerão ou serão presos. Que seja. Melhor morrer de pé pela retidão e pelo senso comum, do que viver escravo do pecado. E se acontecer que estes não sejam os tempos finais, que este seja apenas mais um ciclo de uma batalha contínua – então poderemos mesmo triunfar no final. Neste momento do tempo, acho isso improvável.

Envio à senhora e ao Sr. Carvalho minhas saudações e melhores votos, junto com um “Feliz Natal” sincero e de coração. Que o Senhor abençoe seus esforços de impedir que as trevas submerjam o seu país. Podemos vir a encontrar-nos ou não neste mundo, mas não tenho dúvidas de que nos encontraremos no próximo.

Deus os abençoe,

Michael Peirce

O país mais burro do mundo

Olavo de Carvalho


 Zero Hora , 16 dez. 2001

Dentre estudantes de 32 países, testados em sua compreensão de leitura, os brasileiros tiraram o último lugar. Não o penúltimo ou o antepenúltimo. O último. Com uma das maiores redes de ensino público do universo, com uma quantidade impressionante de professores “per capita”, com investimentos maciços do governo e o esforço conjugado de milhares de ONGs e empresas milionárias empenhadas “soi disant” em “elevar o nível” da nossa educação, o Brasil é, hoje mais que nunca, um país de analfabetos funcionais.

Nada do que saiu impresso nos últimos dias pode dar, como esse fato alarmante, uma idéia da verdadeira situação do Brasil no mundo.

Por que uma notícia tão significativa — a mais importante da semana, sob certos aspectos — suscita na mídia e nos meios ditos intelectuais uma quantidade tão escassa de comentários? Por que as poucas reações que se fazem discretamente ouvir se limitam às lamentações convencionais de sempre, quando não a desculpas de ocasião?

A resposta é simples. A estupidez da nossa classe estudantil não se explica por causas menores, de ordem administrativa ou econômica, nem por curiosas coincidências. Ela não é um fato isolado. Ela reflete o estrago geral da cultura brasileira que tenho documentado desde 1996 nos dois volumes publicados e nos três inéditos de “O Imbecil Coletivo. Atualidades Inculturais Brasileiras” — uma amostragem suficientemente ampla para que ninguém possa negar a realidade dos fatos. Ela reflete os efeitos de uma devastadora “revolução cultural” que, iniciada nos anos 70 e empenhada em reduzir a rede de ensino e todas as instituições de cultura a instrumentos do mais maquiavélico oportunismo político de todos os tempos, estampa agora diante de nós o seu abjeto resultado. Não se pode manipular a inteligência humana sem engessá-la, imobilizá-la e atrofiá-la.

Vinte anos atrás eu trabalhava numa revista de educação, distribuída a professores da rede pública. Por intermédio dessa publicação e de outras análogas, os intelectuais ativistas faziam críticas ferozes ao que chamavam “educação tradicional” e infundiam nas professorinhas uma confiança ilimitada nos novos modelos que, a seu ver, dariam aos jovens brasileiros a educação ideal. Esses modelos traziam algo das idéias de Jean Piaget mas eram inspirados sobretudo nos ídolos pedagógicos do esquerdismo militante: Paulo Freire, Demerval Saviani, Emília Ferrero e, no fundo de tudo, Antonio Gramsci. Sinceramente: eu lia aquela porcaria toda e previa uma catástrofe. Hoje a catástrofe está aí, mas ela é tão profunda que já não pode tomar consciência de si mesma. Aquelas entusiasmadas professorinhas que imaginavam fazer uma revolução por meio de seus alunos, convertidos em “agentes de transformação social”, foram elas próprias transformadas no curso do processo: já estão burras demais para atinar com a conexão de causa e efeito. Por isto a revelação brutal dos resultados da mutação idiotizante não suscita nenhum debate sério, nenhuma tomada de consciência, nenhuma corajosa admissão do erro fundamental. As professorinhas não apenas esqueceram o que sabiam: esqueceram que esqueceram. Estão amortecidas e estupidificadas pelo seu próprio discurso.

Revoluções análogas ocorreram nos EUA, na França e em outros países, com resultados igualmente perversos, documentados, por exemplo, em “A Escola dos Bárbaros” de Isabelle Stahl, “Machiavel Pédagogue” de Pascal Bernardin, “Brave New Schools” de Berit Kjos e “The Long March. How the Cultural Revolution of the 1960’s Changed America” de Roger Kimball. Quem leia esses livros verá que os brasileiros não apenas são os piores estudantes do mundo, mas que o são em comparação com uma média geral monstruosamente inferior à dos anos 60. Há uma queda mundial do nível de inteligência, e o Brasil está na vanguarda do abismo.

Não há também nenhum motivo para supor que o baixo desempenho dos estudantes não se repita, igualzinho, em outros setores da sociedade. Estudantes não são uma entidade separada e distinta, mas uma fatia, uma amostra do bolo. Os índices de burrice seriam muito provavelmente os mesmos se a comparação fosse entre empregados da indústria. Uma pesquisa local do antropólogo Luiz Marins mostrou que nas fábricas brasileiras é inútil passar um aviso por escrito: ou o aviso é dado oralmente, ou o conteúdo simplesmente não entra na cabeça dos operários. É razoável conjeturar que os índices comparativos de incompreensão de leitura não seriam muito diferentes se a avaliação não fosse entre estudantes, mas entre políticos, jornalistas, professores universitários — ou profissionais da escrita. A prodigiosa degradação do gosto literário nacional fez com que os poucos escritores valiosos que restam se tornassem confidenciais, cedendo o lugar nas páginas do noticiário editorial a uma galeria de patetas mais ou menos alfabetizados que passam por escritores. O público “letrado” já perdeu até mesmo a distinção entre um escritor e um sujeito qualquer que escreve qualquer coisa. Um escritor é membro de uma confraria artesanal milenar. Ele conhece os instrumentos expressivos criados por uma tradição que vem de Homero a Naipaul, e no que ele escreve se percebe, nas entrelinhas, o diálogo com seus parceiros de ofício, por cima das fronteiras de épocas. Um sujeito qualquer que escreve, mesmo que o faça direitinho, não dispõe senão dos instrumentos usuais da mídia — ele não dialoga senão com os tagarelas do momento: quando morrerem, sua escrita morrerá com eles. Essa distinção, que deveria ser a base da educação literária nas escolas, já se tornou imperceptível à média dos leitores “cultos”. Daí o fenômeno espantoso dos nomes mais cogitados para a última vaga aberta na Academia Brasileira. Não havia entre eles um único escritor: apenas sujeitos que escreviam direitinho. E ninguém notava a diferença.