Em parte alguma

Olavo de Carvalho

O Globo
, 12 de janeiro de 2002

O espectrograma político convencional coloca, na esquerda, o comunismo soviético e chinês; na direita, o nazifascismo; no centro, o socialismo moderado, chamado “fabiano” na Europa e nos EUA por conta da Fabian Society, mas que equivale ao que em terra brasilis é conhecido como “tucano”. Todo o vocabulário consagrado, todas as discussões acadêmicas e parlamentares, todas as polêmicas de botequim dão por assentado que essa é a distribuição das idéias e partidos no mapa ideológico do universo. Se há no fundo de toda a tagarelice ideológica um consenso plenamente firmado, um ponto pacífico, uma zona neutral onde todos concordam, é esse.

Basta um breve exame, porém, para demonstrar que esse esquema é falso, autocontraditório e inviável. O breve exame é o seguinte: do ponto de vista econômico, as duas pontas da escala são indiscerníveis do meio. O comunismo baseia-se no controle estatal da economia, o nazifascismo idem, o socialismo democrático não menos. Se socialismo, segundo definia Karl Marx, é controle estatal dos meios de produção, os três regimes que pretendem abarcar o universo das ideologias possíveis são todos socialistas. Que utilidade pode ter, para uma visão objetiva dos fatos, uma escala diferenciadora que começa por tornar indistintos, sob um ponto de vista tão vital quanto o é a economia, todos os fatos abrangidos?

Nessa escala não há lugar, por exemplo, para o anarquismo, nem para o liberalismo clássico de Adam Smith e da Constituição Americana. Não há lugar para nenhum regime que não mantenha a economia sob estrito controle. Não há lugar para nada que não seja o socialismo. Esse esquema não é um critério distintivo nem um instrumento científico para a descrição dos fatos. É uma prótese, uma camisa-de-força, um cabresto que impede a mente humana de pensar e a obriga a ir, querendo ou não, sabendo ou não, na direção do socialismo. Ele excluir da esfera do pensável as idéias que escapem do quadro de referências socialista e faz com que, qualquer que seja o ponto de vista adotado, a marcha para o socialismo apareça sempre como a chave universalmente explicativa no fundo de toda sucessão histórica.

É evidentemente uma fraude, e não espanta que tenha se disseminado graças sobretudo à propaganda soviética. Quem começou com isso foi, precisamente, Stálin. Quem mais poderia ser? Quase todos os clichês da retórica esquerdista, inclusive os de aparência mais moderninha, remontam a Stálin e à KGB. A KGB foi o maior think tank esquerdista que já existiu. Tinha na sua folha de pagamentos mais intelectuais do que qualquer instituição cultural deste mundo. Ainda que tenha prendido e matado dezenas de milhões de pessoas, sua principal ocupação não era prender nem matar: era estabelecer padrões de linguagem, moldar o discurso da propaganda esquerdista. Mas a propaganda era ali compreendida de maneira ampla: abrangia todas as esferas da comunicação humana. Modas culturais e artísticas, estilos de pensamento, prestígios e desprestígios literários, teatrais e cinematográficos, cânones de veracidade e falsidade científica — tudo ali se fabricava, disseminando-se com a rapidez do raio graças a uma rede de milhões de dóceis agentes, militantes, colaboradores comprados e simpatizantes que, espalhados por todos os quadrantes da Terra, injetavam nos mercados de seus respectivos países esses produtos sem rótulo de origem, que o público engolia facilmente como criações espontâneas da  inventividade local e da feliz coincidência.

A história cultural do século XX seria impensável sem a KGB. Quase metade do que se pensou, se argumentou, se publicou e se encenou na Europa e nos EUA, dos anos 30 a 80, veio de lá. Uma história de conjunto dessa influência avassaladora ainda não se escreveu. Mas os estudos monográficos são tão abundantes e conclusivos, que ninguém que pretenda opinar sobre a cultura desse período tem o direito de ignorar o papel central do maior organismo produtor, disseminador e controlador de idéias que já existiu neste mundo. Seria como escrever a história da Europa medieval sem levar em conta o Papado.

Somente a conjunção da mentira astuta com a ignorância sonsa pode explicar a ausência dessa realidade brutal e avassaladora na concepção que as classes falantes fazem da história mental dos tempos modernos. Mas, quando um estudioso toma consciência dessa realidade, ele já não pode deixar de captar, em tantos discursos esquerdistas que se imaginam novos e originais, o eco passivo de instruções emanadas da KGB cinco ou seis décadas atrás. Quem quer que faça esse estudo se surpreenderá de ver o papel decisivo que a inconsciência, o automatismo e a macaquice desempenham na vida mental das classes que se crêem intelectualmente ativas.

Pois assim é também com o esquema acima mencionado. Até os anos 40, era comum os intelectuais de maior prestígio situarem o nazifascismo ao lado do comunismo entre os movimentos subversivos e revolucionários votados à destruição de tudo o que os conservadores amavam. Esses dois movimentos — um surgido de dentro do outro — podiam dar-se agulhadas de vez em quando, mas nada se comparava, em virulência, ao ataque conjunto que moviam contra a velha democracia liberal. Tanto que, quando, após anos de colaboração secreta, Hitler e Stálin assumiram publicamente sua cumplicidade, ninguém se surpreendeu muito, fora dos círculos comunistas iludidos pelo antifascismo de fachada ostentado por Stálin.

Foi a agressão nazista à URSS que mudou tudo. Agressão tão inesperada, que Stálin, diante do fato consumado, se recusou a acreditar no que via e custou a desistir da esperança de restabelecer a  aliança com Hitler. O ingresso da URSS na guerra fez com que, de improviso, por puro oportunismo, os países ocidentais subscrevessem retroativamente a doutrina stalinista que situava o nazifascismo na “direita” e fazia dele uma antítese e já não o irmão siamês do comunismo. A completa falsidade do esquema, varrida por um tempo para baixo do tapete, veio de novo à tona com a rápida dissolução da parceria entre as potências ocidentais e a URSS após 1945 e a instauração da “guerra fria”.

Mas, para a propaganda soviética, o esquema ganhou uma nova utilidade: qualificar de nazifascistas seus antigos aliados de luta contra o nazifascismo. E assim foi decretado por Stalin. A fidelidade canina de uns e o mimetismo simiesco de outros fizeram o resto. Passado meio século, o estereótipo imbecil ainda exerce seu domínio implacável sobre a mente da “intelligentzia”. Onde quer que ela se meta a falar, lá vem de novo a bobajada: comunismo na esquerda, nazifascismo na direita, fabianos e tucanos no meio.

E nós, o povo, em parte alguma.

A transfiguração fenomenológica

Seminário de Filosofia, janeiro de 2002

Raymond Abellio 

Este texto será usado nas aulas de janeiro de 2002, no Rio (dias 9 e 10), em São Paulo (dia 12) e em Curitiba (dias 25 e 26), como material de análise e ponto de partida para investigações sobre três assuntos interligados: a natureza da especulação fenomenológica; teoria do conhecimento e gnosticismo; filosofia e mística. Peço aos alunos que o imprimam e o tragam consigo nas aulas. Fiz esta tradução e coloco-a aqui somente para facilitar a distribuição deste material entre os alunos do Seminário, ficando portanto proibida sua reprodução para quaisquer outros fins. — O. de C.

Quando, na atitude natural que é a de todos os seres “normais” existentes, “vejo” uma casa, minha percepção é espontânea, e é essa casa que vejo — não a minha percepção dela. Por outro lado, se minha atitude é “transcendental”, então é minha percepção mesma que é percebida. Mas esta percepção de uma percepção altera completamente minha abordagem primitiva.

O estado de experiência atual de alguma coisa, não complicado de início, perde sua espontaneidade pelo fato mesmo de que a nova contemplação tem por objeto algo que originariamente era um estado, não um objeto, e de que os elementos que compõem minha percepção não incluem somente aqueles pertencentes à casa “enquanto tal”, mas aqueles pertencentes à percepção mesma, considerada enquanto um fluxo atualmente vivenciado. E um traço essencialmente importante dessa “alteração” é que a concomitante visão que tive, nesse estado bi-reflexivo, da casa que era o meu “motivo” original, longe de ser perdida, deslocada ou nublada pela interposição dessa “minha” segunda percepção entre eu e a “sua” percepção original, é, paradoxalmente, intensificada, tornando-se mais clara, mais “atual” e carregada de mais realidade objetiva do que antes.

Confrontamo-nos aqui com um fato do qual não se pode dar conta por pura análise especulativa: isto é, a transfiguração da coisa quando conscientemente experienciada, sua transformação numa “supercoisa”, sua passagem de ser algo “sobre o qual se conhece” para ser algo que “é conhecido”. Este fato é insuficientemente apreciado, embora seja o mais notável em todo o campo da experimentação fenomenológica. Todas as dificuldades que encontramos na fenomenologia corrente e, de fato, em todas as teorias clássicas do conhecimento, nascem do fato de que consideram a dualidade consciência-conhecimento suficiente e apta para absorver a totalidade da experiência; ao passo que só a tríade conhecimento-conhecimento-ciência pode fornecer o genuíno fundamento para a fenomenologia.

Decerto, nada pode tornar essa transfiguração patente exceto a direta e pessoal experiência do próprio fenomenologista. Mas ninguém pode pretender ter compreendido a verdadeira fenomenologia transcendental a não ser que tenha tido essa experiência e sido “iluminado” em resultado dela. Ninguém, nem o mais sutil dos dialéticos ou o mais astuto lógico, que não tenha feito essa experiëncia e não tenha portanto visto coisas-por-trás-de-coisas, pode fazer senão falar sobre a fenomenologia; não pode participar ativamente de nenhuma experiência fenomenológica. Vejamos um exemplo mais preciso:

Até onde posso recordar, sempre fui capaz de reconhecer as cores azul, vermelha e amarela. Meu olho as via, e eu tinha um conhecimento latente delas. Certamente “meu olho” não fazia perguntas a respeito delas: como poderia fazê-lo? A função dele é ver — não ver-se a si mesmo no ato de ver. Mas meu cérebro mesmo estava como que adormecido: ele não era em nenhum sentido o “olho do olho”, mas meramente um prolongamento desse órgão. E portanto eu dizia simplesmente, quase sem pensar: isso é um belo vermelho — ou um azul apagado — ou um verde brilhante.

Um dia, anos atrás, quando caminhava entre os vinhedos do Cantão de Vaud, olhando o Lago de Genebra, tive a mais extraordinária experiência. O declive do outro lado, o azul do lago, o violeta das montanhas da Savóia, e à distância as geleiras cintilantes do Grand Comblin — tudo isso eu tinha visto uma centena de vezes. Então eu soube que nunca tinha olhado para eles. E, no entanto, eu vivera ali por três meses.

É verdade que, desde o começo, essa paisagem tinha me afetado profundamente. Mas tinha apenas produzido em mim um vago sentimento de exaltação. Sem dúvida o “eu” do filósofo é mais forte do que qualquer paisagem. A pungente sensação de beleza que experimentamos é apenas o “eu” medindo a infinita distância que nos separa da beleza, e daí obtendo forças. Mas, naquele dia, repentinamente, eu soube que era eu que estava criando aquela paisagem e que sem mim ela não existiria: “Sou eu que vos vejo e que me vejo a ver-vos e, ao fazer isso, vos crio.” Este grito do coração é o grito do Demiurgo ao criar o “seu” mundo. Não é apenas a suspensão do “velho” mundo, mas a projeção de um mundo “novo”. E, naquele instante, de fato, o mundo foi re-criado.

Eu nunca tinha visto cores tais. Elas eram milhares de vezes mais vívidas, mais delicadamente nuançadas, mais “vivas”. Eu soube que acabava de adquirir um sentido das cores — que eu estava vendo a cor pela primeira vez, e que até então eu nunca tinha realmente visto um quadro ou penetrado o mundo da pintura. Mas eu soube também que por esse despertar da consciência, a percepção de minha percepção, eu detinha a chave daquele mundo de transfiguração que não é um misterioso submundo, mas o verdadeiro mundo do qual estamos banidos pela nossa ignorância. Isso não tem nada a ver com a atenção. A transfiguração é completa. A atenção nunca é. A transfiguração conhece-se a si mesma em sua suficiência positiva. A atenção almeja atingir algum dia essa suficiência. Não se pode dizer, é claro, que a atentividade é vazia. Ao contrário, ela anseia pela plenitude. Mas este anseio não é realização. Quando voltei ao vilarejo, encontrei pessoas que estavam muito “atentas” a seu trabalho; no entanto, para mim, pareciam estar caminhando adormecidas.

Cahiers du Cercle d’Etudes Metaphysiques, 1954.

O varejo e a liderança nas indústrias

José Nivaldo Cordeiro


5 de janeiro de 2002

A revista Exame que está nas bancas trás uma excelente reportagem de capa sobre o comportamento de diversos mercados, destacando o avanço de marcas pouco conhecidas no ranking dos mesmos, contrariando o manuais de marketing em uso nas academias e no comando das gigantes nacionais e multinacionais. A reportagem é assinada pelo editor executivo Nelson Blecher e é daquelas que deverão ser lida por muito tempo. É uma referência para a compreensão da dinâmica do mercado brasileiro.

Todas as análises listadas na reportagem sobre o fenômeno estão corretas e pertinentes. Mas penso que a reportagem deixou pelo menos quatro pontos importantes sem o devido aprofundamento: 1- Não há barreiras à entrada na maioria dos mercados de bens de consumo de massa, razão pela qual qualquer descuido das marcas líderes enseja o aparecimento de um enxame de novos concorrentes; 2- É falsa a visão dos executivos de marketing de que o esforço mercadológico, com ênfase na comunicação, é a condição para o triunfo no mercado, o que induz a uma postura arrogante por parte das indústrias líderes em relação aos concorrente e aos canais de distribuição; 3- A dependência de força de venda terceirizada, com a estrutura em cascata dos impostos, pode significar a diferença entre ter lucro ou prejuízo; e 4- A relação coma rede varejista tem que ser cultivada como a variável estratégica de qualquer negócio, sob pena de fracasso mesmo das melhores marcas e dos melhores produtos.

O primeiro ponto parece uma obviedade. O conhecimento tecnológico para a produção da maioria dos produtos está incorporado no maquinário e a mão-de-obra gerencial treinada para tocar a fábrica é relativamente abundante. Então não há barreiras significativas nem de conhecimento e nem de custos, de modo que pessoas empreendedoras e com faro empresarial podem se estabelecer com grande sucesso.

O segundo ponto é a arrogância dos executivos de marketing, hoje já bem menor do que no passado, mas não o bastante. Nas empresas de bens de consumo de massa esses executivos normalmente são o poder, relegando opiniões valiosas dos executivos de vendas a segundo plano. Eu mesmo tive uma experiência didática quando era gerente de vendas de uma grande indústria de iogurtes. Na época fomos procurados por uma grande cadeia de varejo para fabricar a sua marca própria , o que naturalmente nos daria uma vantagem competitiva formidável em relação aos concorrentes, pois essa era a segunda maior cadeia varejista do país, à época. A idéia foi vetada pelo diretor de marketing, sob o falso argumento de que assim estaria prostituindo-se o mercado. É claro que um concorrente menor topou a parceria e aumentou substancialmente a sua participação no mercado, em prejuízo da marca líder.

Qual foi o erro de análise de diretor de marketing? Que a sua tarefa não era vender a produção industrial enquanto tal, mas sim, uma marca, uma evidente bobagem. Um coisa não colide com a outra, muito ao contrário. Está claro que a razão estava com o diretor de vendas, que queria o negócio, mas não teve força para vencer um argumento falso.

A utilização de distribuidores e outros intermediários no processo de venda caducou em muitos mercados. A forte concorrência obriga a prática de margens pequenas sobre o custo de produção, do contrário o produto não vende, de modo que colocar intermediários significa agregar custo de impostos sem agregar valor. É suicídio. A estratégia correta é terceirizar a logística, mas preservar a força de venda. A logística deve ser entregue aos melhores operadores do ramo, que podem reduzir substancialmente os custos, mas tirar pedidos nos mercados, fazer o trabalho de merchandising e demais as ações nos pontos-de-venda tem que ser encarado como uma necessidade estratégica, algo como o coração do negócio. Produzir não é o mais importante; o essencial é vender.

Por fim, é preciso sublinhar que a rede varejista, desde aquelas pequenas com apenas um ou poucos pontos-de-venda, até aquelas gigantes, devem ser tratadas de forma personalizada, conhecendo-se toda a estrutura decisória e procurando antecipar-se aos movimentos estratégicos dessas empresas. Para isso é preciso uma força de venda muito bem treinada. Um perfeito conhecimento do setor varejista é a condição para uma ação de sucesso em qualquer indústria e não fazê-lo pode custar bem caro. Uma organizada inteligência de vendas é absolutamente essencial mas, diga-se, é algo mais fácil de dizer do que de fazer.

O varejo é o locus onde a vitória ou a derrota de qualquer negócio se consuma. É a lição mais relevante de mercado nos tempos atuais.