Posts Tagged Adam Smith

A fórmula para enlouquecer o mundo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de junho de 2007

Adam Smith observa que em toda sociedade coexistem dois sistemas morais: um, rigidamente conservador, para os pobres; outro, flexível e permissivo, para os ricos e elegantes. A história confirma abundantemente essa generalização, mas ainda podemos extrair dela muita substância que não existia no tempo de Adam Smith. O que aconteceu foi que o advento da moderna democracia modificou bastante a convivência entre os dois códigos. Primeiro elevou até à classe dominante o moralismo dos pobres: na América do século XIX vemos surgir pela primeira vez na História uma casta de governantes que admitem ser julgados pelas mesmas regras vigentes entre o resto da população. No século seguinte, as proporções se invertem: a permissividade não só se instala de novo entre a classe chique, mas daí desce e contamina o povão. É verdade que não o faz por completo: metade da nação americana ainda se compreende e se julga segundo os preceitos da Bíblia. Mas os efeitos da “revolução sexual” foram profundos, espalhando por toda parte o permissivismo e o deboche para muito além da esfera sexual. O episódio Clinton, perdoado pelo Parlamento após ter usado o Salão Oval da Casa Branca como quarto de motel, mostra que, para uma grande parcela da opinião pública, até as aparências de moralidade se tornaram dispensáveis. Um breve exame das estatísticas de gravidez infanto-juvenil e do uso de drogas mostra que idêntica transformação ocorreu nos países da Europa ocidental, onde a dissolução dos costumes já vinha desde o fim da I Guerra Mundial (v. Modris Eksteins, Rites of Spring ).

As conseqüências dessa transformação se ampliam para muito além do domínio “moral”. Conforme vem demonstrando E. Michael Jones numa série memorável de estudos (Degenerate Moderns: Modernity as Rationalized Sexual Misbehavior , San Francisco, Ignatius Press, 1993, e volumes subseqüentes) , é aí mesmo que se deve procurar a causa do sucesso das ideologias totalitárias no século XX. Articulando o seu diagnóstico com o de Gertrude Himmelfarb em One Nation, Two Cultures: A Searching Examination of American Society in the Aftermath of Our Cultural Revolution (New York, Vintage Books, 1999), podemos chegar a algumas conclusões bem elucidativas.

O poeta Stephen Spender, após romper com o Partido Comunista, já havia admitido que o que conduzia os intelectuais ocidentais à paixão por ideologias contrárias à própria liberdade de que desfrutavam era o sentimento de culpa e o desejo de livrar-se dele a baixo preço. A origem dessa culpa reside no fato de que amplas faixas da classe média passaram a desfrutar de lazeres e prazeres praticamente ilimitados, sem ter de arcar com as responsabilidades políticas, militares e religiosas com que a antiga aristocracia pagava o preço moral dos seus desmandos sexuais e etílicos. Num tempo em que a França era o país mais cristão da Europa, Luís XIV tinha nada menos de 28 amantes, mas sua rotina de trabalho era mais pesada que a de qualquer executivo de multinacional, sem contar o fato, tão brilhantemente enfatizado por René Girard (Le Bouc Émissaire , Paris, Grasset, 1982), de que a função real trazia consigo a obrigação de servir de bode expiatório para os males nacionais: quando a cabeça de Luís XVI rolou em pagamento das dívidas de seu pai e de seu avô, isso não foi uma inovação revolucionária, mas o simples cumprimento de um acordo tácito vigente no cerne mesmo do sistema monárquico. Já na Idade Média, os encargos da defesa territorial incumbiam inteiramente à classe aristocrática: ninguém podia obrigar um camponês ou comerciante a ir para a guerra, mas o nobre que fugisse aos seus deveres bélicos seria instantaneamente executado pelos seus pares. Noblesse oblige : a classe aristocrática era liberada de parte dos rigores morais cristãos na mesma medida em que pagava pela sua liberdade com a permanente oferta da própria vida em sacrifício pelo bem de todos. A democratização da permissividade espalha os direitos da aristocracia por uma multidão de recém-chegados que de repente se vêem liberados da pressão religiosa sem ter de assumir por isso nenhum encargo extra, por mínimo que seja, capaz de restaurar o equilíbrio entre direitos e deveres. Ao contrário, junto com a liberdade vem o acesso a bens inumeráveis e a um padrão de vida que chega mesmo a ser superior ao da velha aristocracia – tudo isso a leite de pato. Ortega y Gasset notou, no seu clássico de 1928, La Rebelión de las Masas , que o típico representante da moderna classe média, o “homem massa”, era realmente um filhinho-de-papai, um señorito satisfecho que se julgava herdeiro legítimo de todos os benefícios da civilização moderna para os quais não havia contribuído em absolutamente nada, pelos quais não tinha de pagar coisa nenhuma e dos quais, geralmente, ignorava tudo quanto aos sacrifícios que os produziram.

Por toda parte, nas civilizações anteriores, um certo equilíbrio entre custo e benefício, entre direitos e deveres, entre prazeres e sacrifícios, era reconhecido como o princípio central da sanidade humana. A liberação de massas imensas de população para o desfrute de prazeres e requintes gratuitos é uma das situações psicológicas mais ameaçadoras já vividas pela humanidade desde o tempo das cavernas. Para cada indivíduo engolfado nesse processo, o efeito mais direto e incontornável da experiência é um sentimento de culpa tanto mais profundo e avassalador quanto menos conscientizado. Mas como poderia ele ser conscientizado, se na mesma medida em que se abrem as portas do prazer se fecham as da consciência religiosa? O señorito satisfecho é corroído por um profundo ódio a si mesmo, mas está proibido, pela cultura vigente, de perceber a verdadeira natureza de suas culpas, e mais ainda de aliviá-las mediante a confissão religiosa e o cumprimento de deveres penitenciais. A culpa mal conscientizada, conforme a psicanálise demonstrou vezes sem conta, acaba sempre se exteriorizando como fantasia persecutória e acusatória projetada sobre os outros, sobre “o mundo” sobre “o sistema”. O homem medianamente instruído do nosso tempo joga suas culpas sobre “o sistema”, fingindo para si mesmo que está revoltado pelo que ele nega aos pobres, quando na realidade o odeia por aquilo que esse sistema lhe dá sem exigir nada em troca. Não que o sistema seja isento de culpas; mas a mesma prosperidade geral que espalha os benefícios da civilização entre massas crescentes que jamais poderiam sonhar com isso nos séculos anteriores mostra que essas culpas não são de ordem econômica, mas cultural: o capitalismo não cria miséria e sim riqueza; mas junto com ela espalha o laicismo e o permissivismo, rompendo o equilíbrio entre o prazer e o sacrifício, necessidade básica da psique humana. Daí o aparente paradoxo de que o ódio ao sistema se dissemine principalmente – ou exclusivamente – entre as classes que dele mais se beneficiam materialmente (lembre-se do que eu disse sobre o movimento gay no artigo da semana passada). A tentação socialista aparece aí como o canal mais fácil por onde as culpas do filhinho-de-papai são jogadas precisamente sobre as fontes do seu bem-estar e da sua liberdade. Vejam essa meninada da USP, gente de classe média e alta, depredando uma universidade gratuita, e compreenderão do que estou falando: o que esses garotos precisam não é de mais benefícios; é de uma cobrança moral que restaure a sua sanidade. Mas, como os representantes do Estado são eles próprios señoritos satisfechos que também não compreendem a origem das suas próprias culpas, sua tendência é fazer dos jovens enragés um símbolo da sua própria consciência moral faltante; daí que lhes cedam tudo, num arremedo de penitência, corrompendo-os e corrompendo-se cada vez mais e precipitando uma acumulação de culpas que só pode culminar na suprema culpa da sangueira revolucionária. “Vivemos num mundo demente, e sabemos perfeitamente disso”, dizia Jan Huizinga na década de 30, pouco antes que o desequilíbrio da alma européia desaguasse no morticínio geral. Transcorridas quase oito décadas, a humanidade ocidental nada aprendeu com a experiência e está pronta a repeti-la. Hipnotizada pela lógica do desejo, que não enxerga cura para os males senão na busca de mais satisfações e mais liberdade, como poderia ela descobrir que seu problema não é falta de bens ou prazeres, mas falta de deveres e sacrifícios que restaurem o sentido da vida e a integridade da alma?

Não é preciso dizer que a adesão ao Ersatz revolucionário e socialista, sendo na base uma farsa neurótica, não alivia as culpas de maneira alguma, mas as recalca ainda mais fundo no inconsciente, onde se tornam tanto mais explosivas e letais quanto mais encobertas por um discurso de autobeatificação ideológica (Marilena Chauí sonhava em “viver sem culpas”; o sr. Luís Inácio Lula da Silva admite modestamente ter realizado esse ideal). O ódio ao sistema – com sua expressão mais típica hoje em dia, o anti-americanismo — cresce na medida mesma em que a ilusão autolisonjeira da pureza de intenções induz cada um a sujar-se cada vez mais na cumplicidade com a corrupção e os crimes do partido revolucionário. Os capitalistas, os representantes do “sistema”, por sua vez, aceitam passivamente ser objeto de ódio e até se regozijam nele, na vã esperança de assim purgar suas próprias culpas; mas, como estas não residem onde as aponta o discurso revolucionário, cada nova concessão ao clamor esquerdista os torna ainda mais culpados e vulneráveis.

Antecipando as análises de Jones e de Himmelfarb, Igor Caruso ( Psychanalyse pour la Personne , Paris, Le Seuil, 1962) localizava a origem das neuroses não na repressão do desejo sexual, mas na rejeição dos apelos da consciência moral. O abandono da consciência de culpa não pode trazer outro resultado senão a proliferação de culpas inconscientes. E as culpas inconscientes necessitam de novos e novos bodes expiatórios, cujo sacrifício só as torna ainda mais angustiantes e intoleráveis.

Figuras de linguagem

Toda figura de linguagem expressa compactamente uma impressão sem indicar com clareza o fenômeno objetivo que a suscitou. Decomposta analiticamente, ela se revela portadora de muitos significados possíveis, alguns contraditórios entre si, que podem corresponder à experiência em graus variados. No Brasil de hoje, todos os “formadores de opinião” mais salientes, sem exceção visível – comentaristas de mídia, acadêmicos, políticos, figuras do show business — pensam por figuras de linguagem, sem a mínima preocupação – ou capacidade – de distinguir entre a fórmula verbal e os dados da experiência. Impõem seus estados subjetivos ao leitor ou ouvinte de maneira direta, sem uma realidade mediadora que possa servir de critério de arbitragem entre emissor e receptor da mensagem. A discussão racional fica assim inviabilizada na base, sendo substituída pelo mero confronto entre modos de sentir, uma demonstração mútua de força psíquica bruta que dá a vitória, quase que necessariamente, ao lado mais barulhento, histriônico, fanático e intolerante. Como as pessoas pressentem de algum modo que essa situação ameaça descambar para a pura e simples troca de insultos, se não de tapas ou de tiros, o remédio que improvisam por mero automatismo é apegar-se às regras de polidez como símbolo convencional e sucedâneo da racionalidade faltante, como se um sujeito declarar calma e educadamente que os gatos são vegetais fosse mais racional do que berrar indignado que são animais. O resultado é que a linguagem dos debates públicos se torna ainda mais artificiosa e pedante, facilitando o trabalho dos demagogos e manipuladores.

É um ambiente de alucinação e farsa, no qual só o pior e mais vil pode prevalecer.

O cúmulo da devassidão mental se alcança quando as leis penais passam a ser redigidas dessa maneira. Se a definição de uma conduta delituosa é vaga e imprecisa, a tipificação do crime correspondente se torna pura matéria de preferência subjetiva do juiz ou de pressão política por parte de grupos interessados. Assim, por exemplo, o agitador que pregue abertamente a inferioridade da raça negra e o engraçadinho que faça uma piada ocasional sobre negros podem ser condenados à mesma pena por delito de “racismo”. Duas condutas qualitativamente incomparáveis são niveladas por baixo: não há mais diferença entre delito e aparência de delito. É a mulher de César às avessas: não é preciso ser criminoso, basta parecê-lo. Basta caber numa definição ilimitadamente elástica que inclui desde o uso impensado de certas palavras até a doutrinação genocida explícita e feroz. “Racismo” é uma figura de linguagem, não um conceito rigoroso correspondente a condutas determinadas. Uma lei que o criminalize é um jogo de azar no qual a justiça e a injustiça são distribuídas a esmo, por juízes que têm a consciência tranqüila de estar agindo a serviço da liberdade e da democracia. É uma comédia. Quem se der o trabalho de distinguir analiticamente os vários sentidos com que a palavra “racismo” é usada em diversos contextos verificará que eles correspondem a condutas muito diferentes entre si, das quais algumas podem ser criminosas. Estas é que têm de ser objeto de lei, não o saco de gatos denominado “racismo”. E “homofobia”, então? Seu sentido abrange desde o impulso homicida até devoções religiosas, desde a discussão científica de uma classificação nosológica até a repulsa espontânea por certo tipo de carícias – tudo isso criminalizado por igual. Quem cria e redige essas leis são obviamente pessoas sem o mínimo senso de responsabilidade por seus atos: são adolescentes embriagados de um delírio de poder; são mentes disformes e anti-sociais, são sociopatas perigosos. Só eleitores totalmente ludibriados podem ter elevado esses indivíduos à condição de legisladores, dando realidade à fantasia macabra do “Doutor Mabuse” de Fritz Lang: a revolução dos loucos, tramada no hospício para subjugar a humanidade sã e impor a demência como regra. E não pensem que ao dizer isso esteja eu mesmo apelando a uma figura de linguagem, hiperbolizando os fatos para chamar a atenção sobre eles. A incapacidade de distinguir entre sentido literal e figurado, a perda da função denominativa da linguagem, a redução da fala a um jogo de intimidação e sedução sem satisfações a prestar à realidade, são sintomas psiquiátricos característicos. Quando tomei conhecimento dos diagnósticos político-sociais elaborados pelos psiquiatras Joseph Gabel e Lyle H. Rossiter, Jr., que indo além da concepção schellinguiana da “doença espiritual” classificavam as ideologias revolucionárias como patologias mentais em sentido estrito, achei que exageravam. Hoje sei que estavam certos.

As figuras de linguagem são instrumentos indispensáveis não só na comunicação como na aquisição de conhecimento. Quando não sabemos declarar exatamente o que é uma coisa, dizemos a impressão que ela nos causa. Todo conhecimento começa assim. Benedetto Croce definia a poesia como “expressão de impressões”. Toda incursão da mente humana num domínio novo e inexplorado é, nesse sentido “poética”. Começamos dizendo o que sentimos e imaginamos. É do confronto de muitas fantasias diversas, incongruentes e opostas que a realidade da coisa, do objeto, um dia chega a se desenhar diante dos nossos olhos, clara e distinta, como que aprisionada numa malha de fios imaginários – como a tridimensionalidade do espaço que emerge das linhas traçadas numa superfície plana. Suprimir as metáforas e metonímias, as analogias e as hipérboles, impor universalmente uma linguagem inteiramente exata, definida, “científica”, como chegaram a ambicionar os filósofos da escola analítica, seria sufocar a capacidade humana de investigar e conjeturar. Seria matar a própria inventividade científica sob a desculpa de dar à ciência plenos poderes sobre as modalidades “pré-científicas” de conhecimento.

Mas, inversamente, encarcerar a mente humana numa trama indeslindável de figuras de linguagem rebeldes a toda análise, impor o jogo de impressões emotivas como substituto da discussão racional, fazer de simbolismos nebulosos a base de decisões práticas que afetarão milhões de pessoas, é um crime ainda mais grave contra a inteligência humana; é escravizar toda uma sociedade – ou várias – à confusão interior de um grupo de psicopatas megalômanos.

Em parte alguma

Olavo de Carvalho

O Globo
, 12 de janeiro de 2002

O espectrograma político convencional coloca, na esquerda, o comunismo soviético e chinês; na direita, o nazifascismo; no centro, o socialismo moderado, chamado “fabiano” na Europa e nos EUA por conta da Fabian Society, mas que equivale ao que em terra brasilis é conhecido como “tucano”. Todo o vocabulário consagrado, todas as discussões acadêmicas e parlamentares, todas as polêmicas de botequim dão por assentado que essa é a distribuição das idéias e partidos no mapa ideológico do universo. Se há no fundo de toda a tagarelice ideológica um consenso plenamente firmado, um ponto pacífico, uma zona neutral onde todos concordam, é esse.

Basta um breve exame, porém, para demonstrar que esse esquema é falso, autocontraditório e inviável. O breve exame é o seguinte: do ponto de vista econômico, as duas pontas da escala são indiscerníveis do meio. O comunismo baseia-se no controle estatal da economia, o nazifascismo idem, o socialismo democrático não menos. Se socialismo, segundo definia Karl Marx, é controle estatal dos meios de produção, os três regimes que pretendem abarcar o universo das ideologias possíveis são todos socialistas. Que utilidade pode ter, para uma visão objetiva dos fatos, uma escala diferenciadora que começa por tornar indistintos, sob um ponto de vista tão vital quanto o é a economia, todos os fatos abrangidos?

Nessa escala não há lugar, por exemplo, para o anarquismo, nem para o liberalismo clássico de Adam Smith e da Constituição Americana. Não há lugar para nenhum regime que não mantenha a economia sob estrito controle. Não há lugar para nada que não seja o socialismo. Esse esquema não é um critério distintivo nem um instrumento científico para a descrição dos fatos. É uma prótese, uma camisa-de-força, um cabresto que impede a mente humana de pensar e a obriga a ir, querendo ou não, sabendo ou não, na direção do socialismo. Ele excluir da esfera do pensável as idéias que escapem do quadro de referências socialista e faz com que, qualquer que seja o ponto de vista adotado, a marcha para o socialismo apareça sempre como a chave universalmente explicativa no fundo de toda sucessão histórica.

É evidentemente uma fraude, e não espanta que tenha se disseminado graças sobretudo à propaganda soviética. Quem começou com isso foi, precisamente, Stálin. Quem mais poderia ser? Quase todos os clichês da retórica esquerdista, inclusive os de aparência mais moderninha, remontam a Stálin e à KGB. A KGB foi o maior think tank esquerdista que já existiu. Tinha na sua folha de pagamentos mais intelectuais do que qualquer instituição cultural deste mundo. Ainda que tenha prendido e matado dezenas de milhões de pessoas, sua principal ocupação não era prender nem matar: era estabelecer padrões de linguagem, moldar o discurso da propaganda esquerdista. Mas a propaganda era ali compreendida de maneira ampla: abrangia todas as esferas da comunicação humana. Modas culturais e artísticas, estilos de pensamento, prestígios e desprestígios literários, teatrais e cinematográficos, cânones de veracidade e falsidade científica — tudo ali se fabricava, disseminando-se com a rapidez do raio graças a uma rede de milhões de dóceis agentes, militantes, colaboradores comprados e simpatizantes que, espalhados por todos os quadrantes da Terra, injetavam nos mercados de seus respectivos países esses produtos sem rótulo de origem, que o público engolia facilmente como criações espontâneas da  inventividade local e da feliz coincidência.

A história cultural do século XX seria impensável sem a KGB. Quase metade do que se pensou, se argumentou, se publicou e se encenou na Europa e nos EUA, dos anos 30 a 80, veio de lá. Uma história de conjunto dessa influência avassaladora ainda não se escreveu. Mas os estudos monográficos são tão abundantes e conclusivos, que ninguém que pretenda opinar sobre a cultura desse período tem o direito de ignorar o papel central do maior organismo produtor, disseminador e controlador de idéias que já existiu neste mundo. Seria como escrever a história da Europa medieval sem levar em conta o Papado.

Somente a conjunção da mentira astuta com a ignorância sonsa pode explicar a ausência dessa realidade brutal e avassaladora na concepção que as classes falantes fazem da história mental dos tempos modernos. Mas, quando um estudioso toma consciência dessa realidade, ele já não pode deixar de captar, em tantos discursos esquerdistas que se imaginam novos e originais, o eco passivo de instruções emanadas da KGB cinco ou seis décadas atrás. Quem quer que faça esse estudo se surpreenderá de ver o papel decisivo que a inconsciência, o automatismo e a macaquice desempenham na vida mental das classes que se crêem intelectualmente ativas.

Pois assim é também com o esquema acima mencionado. Até os anos 40, era comum os intelectuais de maior prestígio situarem o nazifascismo ao lado do comunismo entre os movimentos subversivos e revolucionários votados à destruição de tudo o que os conservadores amavam. Esses dois movimentos — um surgido de dentro do outro — podiam dar-se agulhadas de vez em quando, mas nada se comparava, em virulência, ao ataque conjunto que moviam contra a velha democracia liberal. Tanto que, quando, após anos de colaboração secreta, Hitler e Stálin assumiram publicamente sua cumplicidade, ninguém se surpreendeu muito, fora dos círculos comunistas iludidos pelo antifascismo de fachada ostentado por Stálin.

Foi a agressão nazista à URSS que mudou tudo. Agressão tão inesperada, que Stálin, diante do fato consumado, se recusou a acreditar no que via e custou a desistir da esperança de restabelecer a  aliança com Hitler. O ingresso da URSS na guerra fez com que, de improviso, por puro oportunismo, os países ocidentais subscrevessem retroativamente a doutrina stalinista que situava o nazifascismo na “direita” e fazia dele uma antítese e já não o irmão siamês do comunismo. A completa falsidade do esquema, varrida por um tempo para baixo do tapete, veio de novo à tona com a rápida dissolução da parceria entre as potências ocidentais e a URSS após 1945 e a instauração da “guerra fria”.

Mas, para a propaganda soviética, o esquema ganhou uma nova utilidade: qualificar de nazifascistas seus antigos aliados de luta contra o nazifascismo. E assim foi decretado por Stalin. A fidelidade canina de uns e o mimetismo simiesco de outros fizeram o resto. Passado meio século, o estereótipo imbecil ainda exerce seu domínio implacável sobre a mente da “intelligentzia”. Onde quer que ela se meta a falar, lá vem de novo a bobajada: comunismo na esquerda, nazifascismo na direita, fabianos e tucanos no meio.

E nós, o povo, em parte alguma.

Dica para os esquerdistas

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 13 de abril de 2001

Se vocês querem “superar o capitalismo”, a primeira coisa que têm a fazer é tirar da cabeça a idéia de socialismo. O socialismo não apenas é incapaz de superar o capitalismo, como na verdade é apenas uma sombra dele, sem vida própria.

O capitalismo só será superado quando a economia, que ele transformou em centro da existência, já não for mais aceita como princípio causal da História, isto é, quando o último marxista foi enforcado nas tripas do último “homo oeconomicus”.

A superação do capitalismo não pode consistir na destruição da economia de mercado, pela simples razão de que o mercado não é uma ideologia, um regime, uma lei que um governante baixou e outro possa revogar, mas é uma dimensão da existência humana. Algum tipo de economia de mercado sempre existiu e, mesmo no mais burocratizado dos socialismos, continuou a existir. Suprimir a economia de mercado é tão inviável quanto proibir as relações sexuais. O que distinguiu o capitalismo moderno, surgido nos Países Baixos na época da Reforma, foi um conjunto de condições culturais, morais e políticas que, na ausência de forças políticas reguladoras da vida social, permitiram que o próprio mercado assumisse o papel de regulador. Mas não de regulador autocrático. Os principais fatores daquele conjunto eram a homogeneidade dos valores morais vigentes (cristãos e judaicos) e a inexistência de um poder central coercitivo: o acordo interior, na ausência de coerção externa. Tais foram as bases éticas que, como bem viu Adam Smith, fundamentavam a economia de mercado sem que esta, por si, pudesse criá-las. Foi a presença dessas condições que favoreceu o desenvolvimento do capitalismo nos países protestantes e o inibiu nos países católicos, de forte autoridade central.

Por isso é absurdo considerar o capitalismo uma “ideologia”, uma racionalização de anseios políticos. O capitalismo surgiu como realidade operante muito antes de que alguém o formulasse como ideologia. As posteriores “ideologias” capitalistas jamais conseguiram dar conta da rica complexidade do capitalismo e nem mesmo explicar suficientemente sua eficácia.

Mas nessa origem aparecia já uma contradição fundamental. É que não só a fórmula econômica surgida espontaneamente daquela combinação de fatores culturais subsistiu longamente após a dissolução dela, mas também seu sucesso fez com que fosse exportada para regiões onde combinação similar nunca existiu. Pois bem, onde o capitalismo se instalou sem essa base ética, ele teve de improvisar uma – e, aí, a pura “ideologia” capitalista, racionalização esquemática, fez às vezes do fundamento ético faltante. Isto não podia dar certo. Daí o sentido de coisa imposta, revolucionária e autoritária, que a modernização capitalista adquiriu em tantos países, inclusive o Brasil, onde essa contradição se radicalizou ao máximo no regime militar, tão liberal nos seus pretextos ideológicos quanto estatista, centralizador e prepotente nas suas ações.

Ora, o ponto em comum entre “ideologia liberal-capitalista” e marxismo é o viés economicista. O primeiro parte de um recorte fenomênico abstrato – a conduta econômica racional – e o adota, arbitrariamente, como modelo explicativo e norma corretiva de toda a vida social. O segundo não faz senão “colocar de cabeça para baixo” esse modelo, atribuindo a conduta econômica racional já não ao “homo oeconomicus” individual e sim ao Estado socialista, que é ainda mais abstrato, hipotético e artificial do que ele.

Daí a simbiose doentia de ideologia liberal e de socialismo onde quer que as autênticas bases culturais do capitalismo falhem. Mas estas bases falham cada vez mais num mundo onde a religião recua e o poder político se expande.

Por isto o capitalismo se descaracteriza a olhos vistos, ficando cada vez mais parecido com o socialismo, ao mesmo tempo que o socialismo, fracassado enquanto fórmula econômica, ganha uma sobrevida postiça na forma de mitologia cultural do capitalismo e Ersatz de ética religiosa. Por isso, também, será impossível irmos “além do capitalismo”, mesmo em sonhos, enquanto nossa imaginação estiver presa a essa mitologia.

“Superar o capitalismo” é retirar a economia do topo da vida social, submetendo-a a valores supra-econômicos. Mas isso é, no mesmo ato, abdicar do socialismo. O pós-capitalismo ainda não existe nem em teoria. Mas, quando existir, será menos parecido com o socialismo do que com o capitalismo originário, onde a lei de Deus era mais importante do que o progresso econômico e por isto mesmo o progresso econômico era uma bênção e não uma maldição.

Veja todos os arquivos por ano