Os ricos em fuga

 Olavo de Carvalho


 O Globo, 2 de março de 2002

O destino de cada nação depende de muitos fatores, mas um deles é a existência — ou não — de indivíduos que se sintam responsáveis, de maneira direta e pessoal, por esse destino. Juntos ou separados, tais indivíduos formam uma espécie de aristocracia, que não se confunde com a nobreza hereditária, com a grande burguesia ou com a classe letrada. Ao contrário. Muitas vezes provêm dos meios populares, mas seu senso de responsabilidade e iniciativa acaba por levá-los a uma posição de liderança da qual emergem, com o tempo, aquelas três classes privilegiadas. A aristocracia européia nasceu todinha dos talentos militares espontâneos que, ante a passividade geral da sociedade em decomposição após o fim do Império Romano, se ergueram contra os bárbaros invasores, organizaram a defesa e restauraram o senso de ordem, de lei, de civilização. Seus privilégios originaram-se do simples reconhecimento das comunidades, que deram terras, dinheiro, cargos públicos e direitos especiais àqueles que as salvaram do perigo. De modo análogo, a elite comunista que governa a China até hoje conquistou seu lugar pelo ofício das armas, provando sua disposição e capacidade de defender o país contra a invasão japonesa melhor do que podia fazê-lo o velho governo constituído; terminada a guerra, a China tinha uma nova classe dominante. Os exemplos poderiam multiplicar-se ad infinitum: as classes que ascendem ao domínio das sociedades não surgem do nada, nem da exploração: surgem da capacidade de liderar o conjunto, de propor metas e estratégias, de guiar e organizar o povo para a realização de valores que são reconhecidos por todos.

Nem sempre, é claro, a nova classe se constitui no campo da guerra. Os desbravadores de território, os pioneiros da técnica e da indústria, os sábios, os educadores morais e intelectuais da multidão — são outros tantos exemplos de líderes que o próprio povo eleva espontaneamente à condição de classe privilegiada, por gratidão e respeito, quando não pelo simples efeito natural, quase aerodinâmico, que eleva mais alto os que voam na frente.

Mas também é certo que, consolidados os privilégios, nem sempre os valores e virtudes que os geraram se transmitem às gerações subseqüentes. Com o tempo, os herdeiros acabam por imaginar que sua posição na sociedade é uma espécie de direito natural ou divino, eterno e incondicionado; que seu único dever é desfrutar de seus privilégios ou ampliá-los per fas et per nefas, ainda que em prejuízo da sociedade que os elevou ao poder e à glória. Então seus interesses entram em choque com os da maioria. A luta de classes não é a força causal constante que move a sociedade, mas é o efeito inevitável do declínio da própria classe dominante. Por isso mesmo é utópico acreditar que o “direito de propriedade” possa ser defendido incondicionalmente, a despeito da temperatura moral da época; pois o direito de um não é senão a obrigação de outro para com ele — e a obrigação da maioria para com as elites, que deriva temporalmente e depende logicamente da obrigação destas para com ela, não poderia subsistir por muito tempo à autodemissão moral das classes superiores.

Por fim, é claro que, entre os dois momentos acima apontados, o da ascensão criadora e o da expansão predatória, arrivistas e oportunistas de toda sorte embarcam como passageiros clandestinos na classe dominante em formação, apressando o declínio de seu ímpeto originário, a deterioração de suas virtudes e a dissolução de seu senso de responsabilidade.

Dito isso, a aplicação desse critério para a obtenção de um diagnóstico moral das classes superiores no Brasil de hoje pode ser feita da maneira mais fácil, mediante a simples coleta de um dado que é visível — literalmente — com os olhos da cara. Percorra o leitor as ruas centrais de qualquer grande cidade brasileira, aquelas mesmas ruas onde pouco tempo atrás se instalavam orgulhosamente os escritórios das melhores empresas: verá uma multidão de placas de “Vende-se” e “Aluga-se” em imóveis abandonados, deteriorados, cobertos de inscrições no hediondo alfabeto dos grafiteiros. Panorama idêntico observa-se nos bairros residenciais que dez ou quinze anos atrás eram considerados elegantes. E mesmo os condomínios fechados são progressivamente abandonados por outros mais longínquos, cada vez mais longínquos. O território conquistado num esforço secular de construção e civilização é transferido da classe alta para a média, desta para os trabalhadores, destes para a multidão dos biscateiros, prostitutas e prostitutos, mendigos, assaltantes, batedores de carteiras e passadores de drogas. A feiúra, a violência e o caos se expandem em círculos concêntricos, à medida que a elite foge. Foge deixando atrás de si um rastro de miséria, abandono, decomposição.

Mais que um símbolo, o abandono do espaço geográfico é um sintoma objetivo da demissão das classes superiores. Aqueles que, diante do perigo e da dificuldade, abandonam suas próprias casas, com muito mais presteza abandonarão seus deveres e suas responsabilidades, cada qual cuidando apenas da própria sobrevivência, num geral e obsceno “salve-se quem puder”.

Esse processo é psicologicamente compreensível, mas moralmente injustificável. Como admitir que aqueles a quem o curso da História reservou as melhores porções do território não sejam sequer capazes de unir-se para defendê-lo? Não sabem que, ao fugir da luta, não beneficiam de maneira alguma o povo, mas simplesmente o deixam à mercê dos piores e dos mais violentos? Não são nem capazes de perceber que, se os ricos se deixam dominar pelo medo e fogem, muito mais terrível será o medo que se apossará das almas dos pobres quando, junto com os símbolos visíveis da ordem, a própria ordem tiver desaparecido? Não sabem que o território abandonado não fica para o povo, mas para uma nova classe dominante, arrebanhada às pressas entre arrivistas descarados e brutais? E não sabem que o abandono do território físico é apenas o prelúdio de um geral abandono do país?

PS.: No Rio Grande, o cientista político José Giusti Tavares, autor do belo livro “Totalitarismo tardio — o caso do PT”, está sendo processado por ter dito que “o PT não é um partido constitucional, é um partido revolucionário que realmente aposta na luta armada e não aposta em governar” — uma verdade óbvia que eu mesmo venho reiterando há uma década, em artigos e até em livros, sem que ninguém tenha tido jamais a imensa cara de pau de me processar por isso. É óbvio que o PT não aposta somente na luta armada (nem o prof. Giusti jamais pensou uma coisa dessas), mas, como é da tradição leninista, aposta sempre nos dois cavalos do páreo revolucionário: de um lado, apoio discreto às Farc e ao treinamento guerrilheiro do MST; de outro, um discurso democrático e legalista para fins analgésicos.

Efeitos do medo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde
, 28 de fevereiro de 2002

Nas décadas de 60 e 70, o governo de Cuba envolveu-se em sucessivos esforços de intervenção militar no Brasil, treinando guerrilheiros, fornecendo armas, dinheiro e apoio logístico, primeiro para as Ligas Camponesas, depois para as várias organizações terroristas que se formaram a partir de 1964. Isto é um ponto definitivamente comprovado da nossa História. Confirma-o o depoimento dos próprios guerrilheiros, registrado em livros de autores simpáticos ao esquerdismo, como Luís Mir e Denise Rollemberg.

O fato igualmente bem estabelecido de que a agressão haja começado em 1961 basta para impugnar, “in limine”, qualquer tentativa de legitimar a explosão da violência esquerdista pós-1964 como reação justa de facções excluídas do processo político. Bem ao contrário, o golpe militar é que foi uma resposta à ascensão de um dos movimentos revolucionários mais articulados e mais vastos já observados na história da América Latina.

Simplesmente não tem sentido classificar como vítimas de injusta perseguição política os homens que, trabalhando para um país estrangeiro, nele buscaram refúgio quando seus empreendimentos armados em território nacional fracassaram. Muitos desses atacantes integraram-se à nação cubana, tornaram-se oficiais de seus serviços de inteligência e em seguida voltaram ao Brasil como agentes camuflados de um governo estrangeiro hostil.

Tal foi o caso, precisamente, do deputado José Dirceu de Oliveira e Silva, que, graças à proteção pessoal de Raúl Castro, fez uma bela carreira no serviço secreto militar de Cuba e, ao contrário do que vem saindo na imprensa, não voltou ao Brasil só depois da anistia, mas sim muito antes disso, para reorganizar a guerrilha em crise. Esses dados, jamais desmentidos, constam do livro de Luís Mir, A Revolução Impossível.

Nada tenho, pessoalmente, contra o deputado José Dirceu, que foi meu companheiro de Partidão nos anos 60 e com quem tive durante bom tempo relações cordiais.

Odeio ter de dizer isso, mas ninguém merece indenização de um país por ter servido a seus agressores. O deputado e seus correligionários é que deveriam pagar indenização às famílias de soldados brasileiros que morreram em combate contra os agentes de Cuba. Apenas, essas famílias, diante do escândalo repetido dos prêmios dados ao inimigo, têm medo de recorrer à Justiça para fazer valer seus direitos. E quem, hoje em dia, não tem medo?

Quando o sr. José Alencar finge tranqüila superioridade, alardeando que “não devemos ter medo do comunismo” (apelo que chega ao cúmulo do “non-sense” no momento em que a guerrilha colombiana tira de vez a máscara das intenções pacíficas), só o que ele prova é que ele próprio está possuído desse medo, como um seqüestrado com “síndrome de Estocolmo”, ao ponto de se derreter em trejeitos de afeição na esperança vã de aplacar a fúria de quem o aterroriza.

É o medo, o medo geral e avassalador, que está imbecilizando este país e levando-o a aceitar como normas de boa conduta as mais cínicas exigências do sectarismo esquerdista.

É evidente que, desde o ponto de vista sectário, qualquer crime praticado a serviço da esquerda é um mérito, e qualquer boa ação que favoreça o lado contrário é um crime.

Já conhecemos essa dualidade de pesos e medidas, que dá respaldo moral à ocupação chinesa no Tibete, com seu milhão de vítimas civis até agora, enquanto se finge de escandalizada ante o revide americano aos atentados de 11 de setembro.

Já sabemos que, para um esquerdista, a simples hipótese de julgar-se a si próprio pelos mesmos padrões morais com que condena o adversário é repugnante e inadmissível “a priori”.

Já conhecemos o dogma da própria impecância essencial da esquerda, que redime antecipadamente todos os seus crimes por conta dos méritos de um futuro hipotético que ela diz representar no presente. E sabemos que essa mesma crença permite hoje aos apologistas, cúmplices e herdeiros dos regimes mais genocidas de todos os tempos apresentarem-se em público como almas limpas e puras, habilitadas por uma imensa superioridade moral a verberar com santa eloqüência os males do mundo.

Apenas, temos o direito de estranhar que mentira tão velha, tão conhecida, tão abundantemente descrita e desmascarada seja de repente imposta como critério moral oficial a todo um país, e que o seja pelas mãos de um governo que, de todos os que já tivemos, é provavelmente o que foi mais odiado e achincalhado pela esquerda.

Só o medo, o medo soberano e paralisante, pode levar um governo a descer tão baixo, abdicando de todo respeito por si mesmo.

Leituras militares

Olavo de Carvalho


 Zero Hora , 24 de fevereiro de 2002

Comunistas e filocomunistas têm feito o diabo para instilar nos militares brasileiros um anti-americanismo cretino e suicida que só servirá para transformá-los em cópias de Hugo Chávez, senão de Saddam Hussein. Ligeiramente maquiado, o velho terceiromundismo de Lumumba e Frantz Fanon vem adquirindo foros de “doutrina militar brasileira” e, se não for desmascarado em tempo, acabará por levar este país à última degradação.

Qualquer pensamento estratégico-militar só pode se estruturar a partir da localização e definição de um “inimigo”. Martelando e remartelando aos ouvidos de oficiais superiores a lenda do “mundo unipolar”, os agentes da confusão lograram fazê-los crer que a divisão do mundo já não é mais Leste-Oeste, ou capitalismo-comunismo, e sim Sul-Norte, pobres contra ricos. Parece lógico, não é? Num mundo unipolar, quem pode ser o “inimigo” das “nações periféricas”? O pólo único, naturalmente. Logo, o “establishment” militar brasileiro deve se preparar para um confronto com os EUA. Não podendo vencer pelas armas, deve montar uma estratégia de dissuasão, que induza o adversário a desistir de uma guerra trabalhosa demais.

Contra a lógica aparente desse raciocínio, restam os fatos:

1) Não tem sentido falar de “mundo unipolar” quando a ditadura militar chinesa, financiada pelo próprio dinheiro de investidores americanos mais interessados em lucros imediatos do que na segurança de seu país, está mergulhada até a goela no mais intenso esforço armamentista de todos os tempos, acumulando reservas imensas de mísseis transcontinentais, enquanto o suposto “pólo único”, inibido pela pressão da mídia fortemente pró-comunista, se desarma e se enfraquece ao ponto de tornar-se vulnerável a qualquer bin Laden.

2) Não tem sentido falar de “mundo unipolar” num momento em que as forças anticapitalistas conseguem angariar, no mundo islâmico, o apoio de nações inteiras, ao ponto de envolvê-las na aventura do 11 de setembro.

3) Não tem sentido falar de “mundo unipolar” num momento em que a esquerda armada latino-americana, de braços dados com o narcotráfico, ataca por toda parte com uma virulência incomparavelmente superior à da década de 70. Hoje, muito mais que então, o continente se encontra num estado de guerra revolucionária, ainda agravado pelo fato de que nesse ínterim a “longa marcha” gramsciana para dentro das instituições culturais e midiáticas fez delas instrumentos dóceis da desinformação comunista. Os militares, como quaisquer outros seres humanos, dificilmente podem resistir à influência onipresente e avassaladora de uma atmosfera cultural e psicológica sobrecarregada de valores e critérios comunistas que, de tão disseminados, já nem são identificados como tais e passam facilmente como verdades supra-ideológicas. Anestesiados por essa atmosfera, induzidos ademais a uma justa revolta contra um governo que trabalha pela revolução socialista sob a capa de “neoliberalismo”, os militares vêm sendo levados a adotar uma visão do mundo completamente falseada.

Falseada, a começar, pela bibliografia disponível, inteiramente determinada pelas preferências da casta intelectual dominante.

Conversando com algumas dezenas de oficiais superiores, homens sem nenhuma cumplicidade consciente com o comunismo, pude constatar que estavam atualizadíssimos com a literatura útil aos comunistas, mas ignoravam por completo a vasta produção de estudos surgidos das pesquisas da última década nos Arquivos de Moscou. Haviam lido Hobsbawm, Chomsky, Jameson e “tutti quanti”. Não os viam como os meros falsários comunistas que são, mas como intelectuais idôneos, porta-vozes qualificados da “cultura ocidental”. Nada sabiam dos livros de Anatoliy Golitsyn (“New Lies for Old” e “The Perestroyka Deception”), de Stanislav Lunev (“Under the Eyes of the Enemy”), de Christopher Andrew (“The Sword and the Shield”), de Ladislav Bittman (“The KGB and Soviet Disinformation”) ou de Joseph D. Douglass (“Red Cocaine: The Drugging of America and the West”) — em suma, ignoravam as obras mais lidas pelos profissionais de informação e contra-informação militar no mundo.

 Muito menos sabiam de estudos de interesse histórico mais geral publicados na última década sobre o movimento comunista passado e presente, como os de Vladimir Boukovski (“Jugement à Moscou”), Jean-François Revel (“La Grande Parade”), Jean Sévillia (“Le Térrorisme Intellectuel”), Stephen Koch (“Double Lives”), Miguel Farías Jr. (“Cuba in Revolution”), Arthur Herman (“Joseph McCarthy — America’s most Hated Senator”), Carlos Alberto Montaner (“Viaje al Corazón de Cuba”), Roger Kimball (“Tenured Radicals”), Keith Lloyd Billingsley (“Hollywood Party”).

E, é claro, ignoravam ainda mais profundamente obras de maior alcance teórico sobre o assunto, como as de James Billington (“Fire in the Minds of Men”) e Eric Voegelin (“The New Science of Politics”, “History of Political Ideas”).

Com esses rombos no seu quadro de referências intelectuais, e preenchendo-os com materiais do cardápio esquerdista, como não haveriam esses homens bons e patriotas de acabar servindo, de algum modo, aos propósitos daqueles que mais os odeiam?

Poucos homens de farda percebem, por exemplo, que o deplorável episódio da base de Alcântara foi artificialmente criado, para gerar anti-americanismo, por um governo inteiramente servil ao “braço esquerdo” (ONU-CEE) da Nova Ordem Mundial.

Nunca os melhores foram tão facilmente manipulados pelos piores.