Refletindo sobre a violência

Por José Nivaldo Cordeiro


16 de Junho de 2002

Recebi um texto muito bem escrito, ainda que em forma preliminar, de um amigo internauta (Josino Moraes), na qual ele não titubeia em classificar a violência que se verifica no Brasil de guerra (“A guerra brasileira”). Isso em virtude da natureza do processo em que se dá a violência, da forma em que se organizam as quadrilhas de malfeitores, com marcantes características militares, e dos números maiúsculos de suas vítimas. E mais: ele identifica que a espiral de violência é ainda mais forte nos centros ricos do País, onde a economia é mais desenvolvida, como as regiões metropolitanas. É difícil discordar do autor.

O termo guerra pode ser também compreendido como uma metáfora para definir um processo de regressão da nossa sociedade ao um estado pré-civilizatório.

No meu modo de ver, o grande drama é que o Estado e a elite pensante do País têm-se portado de forma neutra: a guerra é travada basicamente entre a população civil ordeira e trabalhadora e os delinqüentes. Essa neutralidade das forças do Estado, bem com defesa ideológica dos bandidos feita pela intelectualidade, têm contribuído para o aumento do número de vítimas e para a impunidade dos malfeitores. Nada é mais emblemático para exemplificar esse fato do que as legislações recentes que disciplinam – na verdade, proíbem – o porte de arma, como se delinqüentes pedissem licença pública para portá-las. A cada onda de homicídio, mais restrições ao porte, como se o fato de se desarmar as vítimas reduzisse o apetite de seus algozes. Santa ignorância!

A situação do Rio de Janeiro, como a que vimos envolvendo o repórter Tim Lopes, não é suficiente para mobilizar as autoridades do Estado e nem para sensibilizar os formadores de opinião. Fosse esse País governado de forma correta, por pessoas comprometidas com seus bons cidadãos, em vinte e quatro horas comandos militares e policiais poderiam prender ou destruir as quadrilhas organizadas que controlam o tráfico e o banditismo em geral, não lhes faltando os meios operacionais para isso. Falta-lhe, isso sim, o comando das autoridades, que só poderiam dá-lo se para isso tivessem a vontade política. Preferem antes chamar inúteis e hipócritas passeatas pela paz, como se o lado ativo da beligerância tivesse ouvidos para ouvir tal apelo.

Até agora grupos dos chamados ativistas pelos direitos humanos não descansaram seu discurso e suas investigações, condenando a ação da polícia paulista, que, de forma expedita, antecipando-se aos delinqüentes, interceptou um comboio, matando doze celerados. Ao invés de cerrar fileiras com as forças policiais, que se mostraram eficientes e prontas para o enfrentamento, tais pessoas fazem o contrário, apontado o delo no rosto dos agentes da ordem como se eles fossem os criminosos. Tresvalorizaram todos os valores.

O fato é que o Estado brasileiro, nos seus diferentes níveis, tem que cumprir o seu papel e entrar na guerra do lado certo, o lado em que estão os bons cidadãos. Se esses ativistas insanos, aliados dos bandidos, não quiserem fazer o mesmo, devem ser acusados de cumplicidade pela violência – pela morte e pela perda de patrimônio – daqueles que foram vitimados. São cúmplices ativos e engajados na causa dos agentes da desordem. Isso é preciso ser dito com todas as letras.

Estudos como o de Josino Moraes devem ser multiplicados, para melhor esclarecer a opinião pública e subsidiar as autoridades no processo correto de tomada de decisão.

Vaidade mortal

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 16 de junho de 2002

“A burguesia tece a corda com que será enforcada.” (V. I. Lênin)

No Brasil, qualquer sujeito que tenha algum dinheiro no bolso — e principalmente na bolsa — acredita-se por isso um conhecedor do mundo, um dominador dos segredos mais íntimos da mente humana, da história, da sociedade e do poder. Mesmo devida ao acaso, à ajuda dos amigos ou a um pai generoso, sua vitória financeira lhe parece uma prova incontestável da veracidade das suas idéias e da sabedoria das suas preferências. Baseado nessa convicção, ele acredita poder opinar com razoável certeza sobre uma variedade de assuntos sem necessitar para isso de estudos longos e dificultosos, bastando-lhe, na mais estafante das hipóteses, uma lambida no noticiário do dia e uma rápida inspeção dos últimos best sellers aclamados pelo New York Times.

Esse é o perfeito idiota opulento que os intelectuais de esquerda utilizam para subsidiar a “revolução cultural” destinada a preparar a destruição da classe dos idiotas opulentos.
A vaidade suprema desse tipo de indivíduo é mostrar que não é apenas um grosseirão materialista e voraz, mas uma alma superior, uma mente aberta — e, segundo a lógica convencional que o inspira, ninguém pode ser mais aberto do que aquele que se abre ao que lhe é adverso. Mais ainda, ser hospitaleiro para com o inimigo não é somente um sinal de tolerância e espírito democrático: é prova da coragem e tranquilidade sobranceira de quem, sentindo ter em suas mãos o controle completo da situação, pode se permitir o luxo de se expor desarmado àqueles que teriam razões para matá-lo.

Pode haver tentação mais atraente para um homem que, saciado o seu apetite de bens materiais, nada mais tem a desejar deste mundo senão algum prazer psicológico, alguma satisfação do ego?

Assim, pois, o idiota, crendo homenagear-se a si mesmo, corteja, alimenta e fortalece seus inimigos, que o lisonjeiam pela frente enquanto escarnecem dele pelas costas e, contando os milhões que dele obtiveram para o fomento da revolução cultural socialista, já o antevêem em estado de cadáver após a vitória da causa que financiou.

Por mais patente que seja aos observadores de fora, a periculosidade dessa causa permanece invisível para aquele que a subsidia. Isso é necessariamente assim, porque nenhum idiota poderia imaginar-se superior se não se mostrasse também superior aos vulgares conflitos ideológicos e partidários, declarando reiteradamente que esquerda e direita são estereótipos superados e portanto aceitando como altas produções culturais, ideologicamente neutras por sua superioridade mesma, as mais ostensivas e violentas expressões da propaganda esquerdista. Cultivar metodicamente a incapacidade de captar o sentido ideológico do que lê e do que ouve torna-se assim o princípio dominante da auto-educação do idiota opulento, que quanto mais se afunda nessa cegueira obstinada mais é lisonjeado pelo meio em torno como homem culto e de bom gosto, terminando por acreditar que é mesmo portador dessas duas excelsas qualidades.

Mas nenhum gozo da tolerância vaidosa seria completo se não viesse complementado e sublinhado pela ascética renúncia a tudo o que pudesse parecer uma argumentação em causa própria, uma vergonhosa submissão da alta cultura aos interesses da classe burguesa.

Assim, o idiota não apenas financiará generosamente os que conspiram contra a sua classe, mas se absterá de fazer o mesmo com os que desejam ajudá-la, e negará até mesmo a mais módica contribuição a pessoas e entidades que pareçam de algum modo pró-capitalistas, liberais ou conservadoras.
Mas, como não basta que a mulher de César seja honesta, sendo igualmente importante parecê-lo, ele se afastará até mesmo do contato com suspeitos de direitismo em qualquer grau, comprazendo-se em fazer piadinhas a respeito deles nas rodas da esquerda elegante e em censurá-los como paranóicos, alarmistas, medrosos ou radicais, bem diferentes das pessoas tolerantes, democráticas, tranqüilas e seguras de si como, por exemplo, ele próprio.

Eis portanto que o idiota opulento não apenas ajuda a difundir as idéias de seus inimigos, mas colabora ativamente para a censura e a supressão das de seus aliados.
A partir do momento em que essas condutas se consolidam em hábitos, o idiota opulento está transformado, em caráter provavelmente definitivo, num praticante devoto e guardião cioso daquela espécie de tolerância que Herbert Marcuse, ao inventá-la, nomeou “tolerância libertadora” e definiu em termos que não deixam margem para a menor ambigüidade: “Toda a tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a direita.”

Uma prova de que a aplicação dessa regra vem alcançando sucesso é que, enquanto entidades inúteis e danínhas como o Viva-Rio e o MST nadam em dinheiro, o Instituto Liberal de Brasília está ao ponto de fechar por falta de recursos. E não faltam imbecis para imaginar que os Institutos Liberais representam o poder da alta finança, enquanto aquela dupla de instituições perversas e suas inúmeras congêneres personificam o povinho inerme em luta contra os poderoso…

A arrogância da incultura

Olavo de Carvalho


O Globo, 15 de junho de 2002

Está circulando pela internet um artigo assinado por Rubens Alves, educador e professor da Unicamp, que defende a eleição de Lula para presidente mediante um truque de argumentação que tem tudo para enganar milhares de leitores.

O professor Alves começa reproduzindo, como se pretendesse defendê-las, duas das objeções de praxe contra o candidato do PT:

Primeira: é um caipira inculto, que mal terminou o curso primário e, habilitado a trabalhar antes com os músculos do que com o cérebro, não tem o mínimo preparo para lidar com as grandes questões nacionais. Segunda: tem umas propostas de política agrária que, se aplicadas, levarão o país a uma convulsão social.

Uma vez expostas essas objeções, o autor as neutraliza de repente, com grande efeito persuasivo, mostrando que as copiou de discursos feitos não contra Lula, mas contra Abraham Lincoln, o qual, a despeito delas, veio a tornar-se um dos maiores presidentes dos EUA.

Conclusão: Lula na presidência não há de ser mais perigoso — ou vexaminoso — do que o foi Abraham Lincoln.

Pois bem, esse artigo, para mim, só prova uma coisa: a incultura pretensiosa de um certo tipo de educador e professor universitário — certamente o mais comum hoje em dia — que emporcalha sua cátedra fazendo dela um palanque para a difusão de mentirinhas tolas convenientes ao seu partido. Aí já estamos um passo além da simples politização abusiva da vida universitária. Politiqueiros de cátedra sempre existiram, mas eles buscavam conservar ao menos uma aparência de dignidade intelectual. Agora, a ânsia eleitoreira suprimiu esse último resíduo de escrupulosidade: para promover o candidato, não se vexa de apregoar tolices que estão abaixo do nível de exigência do ensino primário.

O paralelo entre a educação de Lula e a de Abraham Lincoln é falso até o limite da alucinação. Ambos esses políticos vieram, é certo, de família pobre, e mal tiveram educação formal. A diferença é que Lincoln, estudando sozinho, tornou-se um grande conhecedor de história e de literatura, e dominou seu idioma natal ao ponto de escrever, já aos vinte e poucos anos, como um autêntico clássico da língua inglesa. Já o sr. Lula da Silva só o que consegue é pronunciar com língua presa uns discursinhos miseráveis que, se lhe granjeiam alguns votos, é apenas graças ao efeito tranqüilizante que a exibição de mediocridade pode ter sobre platéias de invejosos doentios que fogem do admirável como da peste. Para estes, a melhor qualidade que um candidato pode apresentar é a de não ser melhor que eles. Votando em Lula, votam em si mesmos, porque se sentem capazes de fazer tudo o que ele faria e, elegendo-o, não serão obrigados a respeitá-lo.

O sucesso de Lula é, de fato, a plena legitimação da incultura orgulhosa. Este senhor não se deu o trabalho de aprimorar sua formação nem mesmo depois de salvo da miséria pela ascensão política. Gasta seu dinheiro com a satisfação de vaidades tolas, mas não com auto-educação. Usa ternos elegantes e fuma charutos caros, mas não contrata um fonoaudiólogo para corrigir aquele medonho ceceio na sua pronúncia, que ele prefere continuar ostentando como uma grife.

Eu próprio vim de família pobre, mal tinha dinheiro para comprar livros, e além de pobre era doente. Só soube o que era saúde aos vinte e oito anos, e comprei meu primeiro e único carro (usado e esculhambado) aos quarenta e tantos. Isso não me impediu de adquirir conhecimentos bem superiores aos de várias dúzias de Lulas somados a uns quantos Rubens Alves. Mas me impediu de aviltar minha pobreza utilizando-a como desculpa para meus defeitos ou, mais ainda, de alegar esses defeitos como qualidades excelsas, cavando votos mediante a ostentação deles. Vocês podem avaliar quanto o embelezamento eleitoral da incultura luliana me soa incongruente e insultuoso. Insultuoso não só a mim: num país cuja cultura superior é quase toda ela obra de pobretões esforçados, a beatificação da incultura de um ex-pobre é de um cinismo quase macabro.

Se a biografia de Lula ilustra a perfeita compatibilidade da indolência intelectual com a ambição avassaladora de subir na vida, a argumentação do professor Alves demonstra a total harmonia entre o estatuto de intelectual acadêmico e uma mentalidade mesquinha de cabo eleitoral. Um insulta os pobres estudiosos, o outro ostenta com orgulho o emblema da prostituição intelectual. E é essa gente que pretende julgar e corrigir o país.

E o mais espantoso na argumentação é justamente a sua segunda parte, na qual, ironizando como se fosse uma estupidez sem mais tamanho o temor de que a política agrária de Lula venha a produzir uma convulsão social, o professor esquece que a de Lincoln produziu não apenas isso, mas uma guerra civil que foi o maior conflito armado registrado na História até então. Essa guerra, fruto da pura prepotência burocrática, teve como efeito colateral, é certo, a libertação dos escravos, mas esse mesmo efeito poderia ter sido obtido por outros meios, sem tanto derramamento de sangue e sem consolidar o ódio racial cujas conseqüências ainda são visíveis na sociedade americana. Meninos de escola não têm o direito de ignorar isso. Mas o professor Alves acha que tem.

Seu argumento pró-Lula, na verdade, funciona às avessas: se mesmo o grande Lincoln, com toda a sua cultura, sua sabedoria, sua humildade, não foi capaz de impor sua política rural sem uma dose extraordinária de violência, por que haveremos de esperar coisa melhor de um tolo arrogante que exibe sua incultura como um direito e um mérito?