Uma lei e suas conseqüências

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 29 de dezembro de 2002

A notícia de que a Assembléia gaúcha aprovou uma lei contra “o preconceito e a discriminação” dos homossexuais merece algum exame.

A Constituição e o Código Penal já contêm garantias suficientes contra qualquer tipo de discriminação que venha a ser sofrida por cidadão brasileiro. Especificar essas garantias para uma classe em especial ou é uma redundância, ou tem uma intenção embutida que vai além da mera salvaguarda de direitos óbvios. Neste último caso, ela confere a determinado grupo um privilégio que os outros não têm. A conseqüência é óbvia: o homossexual, protegido de críticas à sua conduta erótica, está livre para criticar à vontade o religioso cujas escrituras sagradas condenem explicitamente essa conduta. A especificação nada acrescenta à proteção do homossexual, mas legitima a discriminação do religioso. É claro que isso não estava na intenção dos deputados gaúchos. Eles simplesmente seguiram a moda e a mídia, sem examinar as fontes intelectuais da idéia que absorveram e, portanto, as conseqüências de mais vasto alcance que serão geradas pela sua conversão em lei.

Os pretensos “direitos dos gays” são parte de um vasto front cultural aberto por intelectuais ativistas numa nova estratégia de combate inspirada na Escola de Frankfurt, no filósofo marxista húngaro Gyorgy Lukacs e em Antonio Gramsci. O fundamento da estratégia é a máxima de Lukacs de que a destruição da democracia capitalista requer, antes, a demolição das bases morais e intelectuais da civilização ocidental. A principal dessas bases é a ética judaico-cristã, bombardeada de todos os lados e sob uma impressionante variedade de pretextos, de modo que a opinião pública, cada vez mais alerta para pequenos arranhões no orgulho gay, lésbico, feminista, etc., está completamente dessensibilizada para o fato brutal das perseguições religiosas, hoje mais intensas do que nunca. Michael Horowitz, historiador judeu, o mais informado pesquisador na área, informa que pelo menos 150.000 cristãos são assassinados anualmente pelas ditaduras comunistas e muçulmanas — enquanto, indiferente a isso, o Ocidente se ocupa de dar força de lei a caprichos e pretensões grupais concebidos para criar hostilidade à religião e anestesiar a sensibilidade do público ante a gravidade do genocídio continuado.

A bibliografia existente sobre o assunto é vasta, mas permanece fora do alcance do nosso público. Vale consultar, no mínimo, Judith Reisman (Kinsey: Crimes and Consequences), E. Michael Jones (Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control) e Daniel Flynn (Why The Left Hates America), bem como o número especial da revista Whistleblower dedicado a “The Gay Rights’ Secret Agenda”.

A estratégia é implementada por uma tática, também bastante conhecida.

Primeiro: Algum subintelectual a serviço de partido, grupo de interesse ou ONG levanta uma hipótese pseudo-científica rebuscada e caluniosa que, mal termina de ser formulada, já se alardeia na mídia como verdade provada e moralmente obrigatória.

Segundo: Qualquer tentativa de discuti-la é recebida com tamanhas manifestações de escândalo que o possível contestador perde o embalo de continuar pensando no assunto, por medo de ser chamado nazista, racista, homofóbico, etc.

Terceiro: Com base na hipótese, tiram-se conclusões e aplicações para vários domínios do conhecimento e da ação, começando pelo estabelecimento de novos critérios para o julgamento de questões morais, históricas, políticas, etc., e terminando pela promulgação de novos códigos que dão a esses critérios o estatuto de obrigações legais.

Quarto: Você mal acabou de tomar conhecimento do assunto e pensa em dizer algo a respeito, quando de repente percebe que ao fazê-lo não estará enfrentando um debate acadêmico ou jornalístico, e sim uma queixa policial.

A fórmula é: escamotear o debate. Não dar tempo para ninguém pensar. Esmagar os contestadores, não com argumentos, mas com insultos, com reações histéricas de indignação e, se possível, com processos judiciais. Saltar direto da expressão de uma vontade à ação que a impõe como fato consumado. A tática é denunciada com impiedoso realismo por uma líder feminista, lésbica, apenas sincera demais para ser cúmplice de tanta perfídia: leiam The New Thought Police, da linda e corajosa Tammy Bruce.

Tal é, em essência, o sentido da “ação afirmativa”. Você não encontrará essa definição em nenhum panfleto gay, neo-racista, lésbico, indigenista ou ecológico. Dirão apenas que se trata de políticas piedosas destinadas a compensar os danos que a sociedade infligiu a grupos minoritários ou à pobre Mãe Natureza. Mas, em boa lógica, a definição que descreve uma política tão-somente pelos seus elevados objetivos professos, fazendo abstração do modo de agir concreto destinado a atingi-los, não é definição: é propaganda. Substantivamente, a ação afirmativa é esquema de transformação social adaptado da tática de “ação direta” preconizada por Georges Sorel, teórico da violência no socialismo e no fascismo. Seus inventores bem sabem disso, mas a massa dos militantes contenta-se com a definição eufemística, condenando como odiosa manobra reacionária qualquer tentativa de exame das ações concretas. O apelo à camuflagem, a recusa de submeter-se a critérios objetivos de veracidade e moralidade, já comprovam que os altos propósitos alegados por esses movimentos são mentirosos até à raiz.

No fundo, o que está em jogo não é a proteção dos negros, nem dos gays, nem das mulheres, nem da Mãe-Terra nem de quem quer que seja. Tudo isso é apenas pretexto de ocasião para promover o anti-americanismo, o ódio à civilização judaico-cristã e o embelezamento de regimes ditatoriais e genocidas.

A prova mais eloqüente da total insinceridade desses movimentos é a pressa indecente com que abdicam de suas metas e aderem às políticas contrárias sempre que isso convenha à estratégia maior do esquerdismo internacional. O movimento gay norte-americano, que vive ciscando casos reais e imaginários de discriminação em toda parte, fez o diabo para proibir a exibição de filmes sobre a perseguição anti-gay em Cuba, país onde a repressão oficial aos homossexuais chega a requintes que nem Stálin teria imaginado. Com igual descaramento, na passeata anti-EUA e anti-Israel de 20 de abril de 2002 em Nova York, líderes feministas enragées manifestaram seu apoio irrestrito às ditaduras muçulmanas, os regimes mais machistas que já existiram no universo.

Tudo isso sugere uma pergunta dolorida: Terá valido a pena o Rio Grande livrar-se do governo petista, se for para ceder tão docilmente, por inocência intelectual, ante as exigências mais gerais da ideologia que o inspirava?

Mais paralaxe

Olavo de Carvalho

O Globo, 28 de dezembro de 2002

Alguns leitores pedem-me mais explicações sobre a tal “paralaxe conceitual” que mencionei outro dia. Vou tentar.

Toda afirmação filosófica sobre a realidade em geral, a humanidade em geral ou o conhecimento em geral inclui necessariamente, entre os objetos a que se aplica, a pessoa real do emissor e a situação de discurso na qual a afirmação é feita.

O que quer que um homem diga sobre esses assuntos ele diz também sobre si mesmo. Ninguém tem o direito de constituir-se, sem mais nem menos, em exceção a uma teoria que pretenda versar sobre o gênero ou espécie a que ele próprio pertence.

Essa elementar precaução metodológica foi negligenciada por praticamente todos os filósofos mais importantes do ciclo dito “moderno”, assim como por muitas das escolas de pensamento que dominam o universo intelectual contemporâneo.

Em resultado, temos uma imponente galeria de doutrinas que nada nos dizem sobre o mundo em que foram produzidas, nem muito menos sobre as pessoas reais que as criaram, mas tudo sobre um mundo inventado que não as inclui e que elas se limitam a observar desde fora, desde um imaginário posto de observação privilegiado. Esse posto de observação corresponde, estrutural e funcionalmente, ao do “narrador onisciente” nas obras de ficção, o qual não é afetado pelo curso dos acontecimentos narrados. Construídas com uma técnica ficcional, mas totalmente inconscientes do expediente que empregam, essas filosofias são obras de ficção que não ousam se apresentar como tais.

Alguns exemplos:

1) Descartes diz que vai examinar seriamente os seus próprios pensamentos, e começa a fazê-lo sob forma de introspecção autobiográfica. No meio do caminho, perde o fio do seu eu pessoal e concreto, do seu eu biográfico, e começa a falar de um eu genérico e abstrato, o “eu filosófico”. Ele nem se dá conta do salto, e acredita continuar fazendo autobiografia quando está fazendo apenas construção lógica. Ele acaba acreditando que é realmente esse eu filosófico, sob cuja sombra o eu real desaparece por completo. Resultado: sua auto-observação cai nos erros mais grosseiros, como por exemplo o de esquecer que a continuidade temporal do eu é um pressuposto do cogito e não uma conclusão obtida dele.

2) David Hume diz que nossas idéias gerais não têm valor cognitivo nenhum, porque são apenas aglomerados fortuitos de sensações corporais. Em nenhum instante ele se dá conta de que a filosofia de David Hume, compondo-se ela própria de idéias gerais assim formadas, também não pode valer grande coisa. O estado de alienação do filósofo ao criar sua filosofia não poderia ser mais completo.

3) Maquiavel ensina que o Príncipe deve conquistar o poder absoluto e em seguida livrar-se dos que o ajudaram a subir. Ora, quem pode ter ajudado mais ao Príncipe do que o filósofo que lhe ensinou a fórmula da conquista do poder absoluto? Se o Príncipe o levasse a sério, ele próprio, Nicolau Maquiavel, seria o primeiro a ser jogado no lixo junto com o seu livro, prova do crime. Contrariando o louvor geral que consagra Maquiavel como o primeiro observador “realista” da política, o Príncipe é um modelo idealizado que só pode ser descrito em literatura precisamente na medida em que nenhum contemporâneo logre encarná-lo na realidade. A alienação chega ao cúmulo quando Maquiavel diz que todos os males do Estado vêm dos intelectuais contemplativos que, não podendo atuar na política, teorizam sobre ela — o que é precisamente o que ele está fazendo. Aliás, Otto Maria Carpeaux já havia assinalado que a visão que Maquiavel tem da política não é política: é estética.

4) Karl Marx assegura que só o proletariado, por ser a última e extrema vítima da alienação, pode apreender realisticamente o curso inteiro do processo alienante e, por isso, libertar-se dele. Só o proletariado, em suma, tem adequada consciência histórica. Mas não é mesmo uma coisa extraordinária que o primeiro, logo o primeiro a personificar essa consciência proletária seja um burguês? Não digo que isso seja impossível, mas, à luz da teoria marxista, é uma exceção notabilíssima e improvável. Karl Marx passa sobre ela com a maior inocência, sem nem de longe notar um desvio de foco, uma paralaxe entre o personagem que representa e o conteúdo das suas falas. No mundo de Karl Marx, não existe Karl Marx.

E por aí vai. Ao exame meticuloso desses e de muitos outros casos similares tenho dedicado meus cursos desde há alguns anos. O lado mais interessante é a crítica ficcional da filosofia ficcional. De fato, os melhores observadores críticos da alienação filosófica foram os escritores de ficção, principalmente Dostoiévski, Kafka, Pirandello, Ionesco e Camus. Os Demônios, O Processo, Henrique IV, O Rinoceronte e O Estrangeiro são peças de um imenso requisitório literário contra as pretensões da filosofia moderna. Vale aí o contraste delineado por Saul Bellow entre o “intelectual” e o “escritor”: de um lado, o construtor de alienações elegantes; de outro, o porta-voz das “impressões autênticas”, verdades às vezes simplórias que estouram o balão intelectual. Já viram, né? Quando eu crescer, quero ser “escritor”.

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Falando em alienação: nosso presidente eleito parece não ter idéia da encrenca em que se meteu ao adotar uma linha de ação que subentende a conciliação do inconciliável: de um lado, a aliança Lula-Bush; de outro, Lula-Chávez. Talvez ele esteja feliz demais com sua ascensão social para poder pensar nessas coisas horríveis.

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Quando Constantine C. Menges previu a iminente criação de uma aliança Lula-Chávez, a mídia tupiniquim em peso se reuniu para fazer-lhe a caveira. Bem, agora a aliança está aí. Foi feita mediante ostensiva tomada de partido do futuro governo brasileiro numa disputa interna venezuelana, e os jornalistas que participaram da campanha anti-Menges não têm sequer a hombridade de reconhecer: “Erramos.”

Sobre a Prece de Natal 2002

Por Wadson Muniz

26 de dezembro de 2002

Pouco conhecimento faz com que as criaturas se sintam orgulhosas. Muito conhecimento, que se sintam humildes. É assim que as espigas sem grãos erguem desdenhosamente a cabeça para o céu, enquanto as cheias a baixam para a terra, sua mãe. (Leonardo da Vinci)

Dentre as muitas coisas que já se disseram acerca de Olavo de Carvalho, consta: “Olavo de Carvalho não existe.”

Dada a materializante indigência em que mergulhou a vida, de fato, é difícil acreditar na existência de alguém que:

1) em busca de orientação, foi buscá-la nos ensinamentos de gerações passadas, em vez de ouvir as modernas, pretensamente mais cultas;

2) entendeu, plenamente, o que disseram tais homens;

3) firmado no que aprendeu, enfrenta sozinho a maior parte dos intelectuais brasileiros, que então se vêem sem armas para enfrentá-lo e, como argumento final, acusam-no de não existir;

4) se lança a esse enfrentamento para evitar a propagação de idéias tão falsas quanto perigosas, nas quais ele próprio já acreditou e as quais provocaram nele a desilusão que acabou por levá-lo ao encontro daqueles ensinamentos;

5) insiste em falar da verdade transcendente e da necessidade de orientar a vida para essa mesma verdade, orientação que ele encontrou, precisamente, no mesmo ponto e da mesma forma que o fizeram aqueles homens que ele foi ouvir.

Os que não o conhecem concordarão com seus detratores, que também convencem os que não o entendem. Aos que o conhecemos e com ele aprendemos, no entanto, resta avisar aos outros que Olavo de Carvalho existe, sim, e não é uma ficção diabólica, nem um produto comercial, nem um fóssil humano medievo. O que é ele, então?

É, simplesmente, alguém a quem anos e anos de estudo fizeram muito bem; alguém a quem a falsidade e a mentira já não podem enganar, pois ele aprendeu a identificá-las de longe e num relance. É, sobretudo, alguém que quer dividir tudo o que viu com tantos quantos queiram verdadeira orientação.

Olavo de Carvalho fala ao mais íntimo do ser humano, fala àquele núcleo luminoso, que nos distingue de todo o restante da criação. É precisamente lá que está tudo o que nos é necessário para a travessia desta vida e que a mentira quer tirar de nosso campo de visão.

É próprio da época do Natal a maior abertura das almas às coisas do alto. O diabo ainda não nos tirou isso, pelo menos não totalmente. Se algo eu posso recomendar a alguém, recomendo que por essa fresta deixe passar a mensagem centralizadora e orientadora de Olavo de Carvalho, a qual surge claríssima em Prece de Natal 2002, por exemplo (texto publicado em O Globo e também disponível em www.olavodecarvalho.org).

A Olavo de Carvalho, o meu mais sincero agradecimento pelo reencontro espiritual a que seus ensinamentos me levaram. Ao Altíssimo, um pedido: deixe entre nós, ainda por muitos e muitos anos, esse mestre, para que continue a nos iluminar a marcha.

Waldson Muniz (wal.muniz@uol.com.br)