Relendo Nietzsche

Olavo de Carvalho

O Globo, 15 de fevereiro de 2003

Do fenômeno que denomino paralaxe conceitual — o deslocamento entre o eixo da concepção teórica e o da perspectiva existencial concreta do pensador –, os exemplos são tantos, nos últimos séculos, que não me parece exagerado ver nele o traço mais geral e permanente do pensamento moderno. As idéias tornam-se aí a racionalização ficcional com que um intelectual se esforça para camuflar, legitimar ou mesmo impor como lei universal sua inaptidão de se conhecer, de arcar com suas responsabilidades morais, de se posicionar como homem perante a vida.

Nas culturas européias ou mesmo nos EUA, esse impacto alienante é amortecido pela barreira residual da tradição cristã e clássica. Mas, num país como o Brasil, psicologicamente indefeso entre os muros de geléia de uma cultura verbosa e superficial, qualquer autor que faça algum barulho no mundo adquire as dimensões de uma potência demiúrgica, cultuada com temor reverencial. Suas mais gritantes fragilidades passam despercebidas, e qualquer tentativa de apontá-las é condenada como pretensão megalômana ou insolência blasfema.

Um caso particularmente desesperador é Friedrich Nietzsche, a quem tantos neste país veneram, talvez porque nele encontrem algo como um monumento à sua própria alienação.

Outro dia, conversando com uma amiga antropóloga, ela me lembrou que em certa época recente, na USP, ninguém no seu departamento era aceito como gente grande se não soubesse classificar na ponta da língua os fenômenos culturais em apolíneos e dionisíacos — uma distinção nietzscheana a que o livro de Ruth Benedict, “Padrões de Cultura”, dera foros de critério científico.

Vamos ver quanto vale essa distinção?

Em “A Origem da Tragédia”, Apolo, deus da luz e da ordem cósmica, é o senhor das aparências, do universo visível. Dionísio, caos e turvação, é causa e origem, é a realidade tenebrosa e fecunda por baixo do véu apolíneo. Assim diz Nietzsche, mas no mundo real as coisas às vezes são assim, às vezes não. Às vezes, é a aparência caótica dos fenômenos que oculta uma ordem profunda, a qual escapa ao comum dos mortais mas se revela aos olhos claros daqueles que Schiller denominava “filhos de Júpiter”. De fato, o contraste Apolo-Dionísio expressa, no mito grego, a tensão dinâmica entre os polos do caos e da ordem, da aparência e da realidade, em contínua rotação e intercâmbio no quadro do mundo. A compreensão de todo simbolismo mitológico ou religioso depende de um certo senso das inversões. Um símbolo, por definição, não tem sentido unívoco, podendo sempre transfigurar-se em seu contrário, conforme a esfera de ser a que se aplique num contexto dado. Por isto e só por isto tem força evocativa e geradora, não cabendo aprisionar na moldura de um conceito fixo aquilo que é antes, na feliz expressão de Susanne K. Langer, uma “matriz de intelecções possíveis”. Ao identificar de maneira estática a ordem com superfície, o caos com profundidade, Nietzsche eliminou artificialmente a tensão, congelando os opostos em papéis imutáveis. Degradou o símbolo em estereótipo. Transmutou o ouro em chumbo.

O pior é que ele cai nessa justamente no momento em que está protestando contra o racionalismo e clamando pela volta dos mitos como força renovadora da civilização. Neutralizar as inversões tensionais, prendendo os pares de opostos na grade fixa de uma correspondência biunívoca, é o suprassumo do racionalismo esterilizante. No caso, totalmente involuntário. Nietzsche simplesmente não entendia o que estava fazendo.

Abominando a dialética, preferindo à busca das sínteses a ostentação espalhafatosa das oposições estáticas, mas ao mesmo tempo querendo cavar efeitos de linguagem no vocabulário da simbólica tradicional, no qual nada pode opor-se definitivamente a nada porque tudo aí são aparências em incessante metamorfose, o que ele fez foi uma metafísica grosseiramente linear camuflada sob um manto de símbolos falsificados. E nestes o leitor então projeta as mais lindas sutilezas dialéticas que, é claro, não estão lá. Confunde o Apolo e o Dionísio do mito grego com os de Nietzsche, o símbolo com o estereótipo, e vê neste as profundidades daquele. Melhor para Nietzsche, pior para o leitor.

Mas a substancialização fetichista dos opostos é somente um dos vários cacoetes mentais que, no autor de “Zaratustra”, buscam suprir a falta de autêntica intuição filosófica. Pior é este: ele confunde a reiteração enfática de um acidente com a definição de uma essência, e então sai disparando deduções daí obtidas pela via de um conseqüencialismo furiosamente mecânico. Assim ele transforma os problemas mais banais em dilemas insolúveis que lhe parecem tragédias, sem perceber que uma tragédia fabricada na base do hiperbolismo verbal não é tragédia, é farsa.

Em “A Gaia Ciência”, após mostrar que em muito do que o homem faz está presente o instinto de sobrevivência, ele conclui que esse instinto é “a essência” (sic) do bicho homem, e então reduz todas as demais qualidades humanas a disfarces do instinto de sobrevivência. Mas esse instinto, sendo comum a todas as espécies animais, não pode ser essência de nenhuma delas em particular. Se o fosse, nas demais teria de ser mera propriedade ou acidente, o que resultaria em afirmar que só uma espécie sobrevive por instinto, as outras apenas por hábito, por acaso ou talvez por frescura. Não é preciso dizer que elas não concordam com essa tese de maneira alguma.

O melhor em Nietzche são as notas de psicologia pejorativa, que ele extrai da observação de si mesmo mas em seguida projeta, com autoconfiança adolescente, em Sócrates, em Jesus Cristo, na humanidade inteira. O ressentimento do doente contra as pessoas saudáveis é uma delas. Mas por que esse diagnóstico deveria aplicar-se antes a Sócrates, velho soldado robusto, do que ao próprio Nietzsche, paciente crônico que mal se levantava da cama?

Malícia demais é ingenuidade

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde
, 14 de fevereiro de 2002

Os líderes da esquerda brasileira já ultrapassaram, em malícia, hipocrisia e mendacidade, tudo o que se pode tolerar em cidadãos que se pretendam dignos de respeito.

Diante de certos casos de homicídio e seqüestro, puseram-se a trombetear aos quatro ventos que se tratava de crimes políticos “da direita”, embora não se conheça neste país nenhuma organização direitista armada e embora a própria direita desarmada não exista politicamente, estando diluída, enfraquecida e inibida ao ponto de não ser sequer capaz de se defender verbalmente quando acusada das piores coisas.

Uma bela cama-de-gato já vinha sendo montada no Ministério da Justiça contra a isolada e inerme TFP (Tradição, Família e Propriedade), sob a alegação grotesca de que os guardas profissionais contratados por alguns fazendeiros, membros dessa entidade, para a proteção de suas terras contra invasores do MST, eram na verdade guerrilheiros direitistas, prontos para uma investida fatal contra as instituições democráticas.

Ao mesmo tempo, os serviços de inteligência militar, ao manter sob observação discreta brasileiros ligados de algum modo à narcoguerrilha colombiana, foram denunciados na imprensa por espionagem ilegal, sem que os denunciantes sequer reparassem que, ao alardear uma coisa dessas, confessavam automaticamente seu próprio crime de espionagem ilegal cometido contra as Forças Armadas. Novamente, a tal “direita”, débil e amedrontada, preferiu suportar calada a pecha de criminosa atirada em seu rosto por aqueles que no mesmo ato delinqüiam contra ela. Provou, com isto, que nada se lhe pode imputar de criminoso, exceto a criminosíssima omissão dos que se deixam matar por medo de apanhar.

Os assassinatos dos prefeitos de Campinas e Santo André, embora não envolvessem nem de longe o nome de qualquer direitista conhecido, desconhecido ou inventado, mas só os de amigos e correligionários desses políticos, foram também, contra toda evidência, explicados como atentados políticos “da direita”.

Sob as desculpas mais esfarrapadas e pueris que algum cara-de-pau já ousou conceber, tudo estava enfim preparado para uma caça às bruxas da inexistente direita armada, quando, repentinamente, a expressão “crime político” se tornou perigosa para a própria esquerda e foi banida às pressas do vocabulário decente.

Ao revelar-se que Maurício Hernandez, seqüestrador de Washington Olivetto, era um dos chefes da “Frente Patriótica Manuel Rodriguez”, braço armado do Partido Comunista Chileno, a esquerda nacional em peso, da senadora Heloísa Helena ao ministro da Justiça, e incluindo no côro o próprio seqüestrado, que preferiria perder a vida a dizer uma só palavra prejudicial ao esquerdismo, se ergueu para proclamar a uma só voz: “Não é crime político! Não é crime político!”

Propalada como certeza absoluta e apriorística, essa assertiva vinha com a finalidade mais que evidente de reprimir como conspiração direitista qualquer veleidade de investigar mais em detalhe as notórias ligações do sr. Hernandez com o QG cubano da revolução continental (v. a excelente matéria de Cláudio Camargo na revista “Isto É” de 13 de fevereiro, pp. 32-33). Alguns, para dar-lhe mais credibilidade, chegaram a apregoar seu desprezo a um cidadão que seqüestrava e torturava por dinheiro em vez de fazê-lo, como é próprio dos homens de bem, por ódio político e desejo de poder.

Mais torpemente ainda: contrastando com o benefício que um dia se concedeu aos seqüestradores de Abílio Diniz por exigência unânime do “beautiful people” esquerdista, a recusa do Ministério da Justiça de extraditar o criminoso é exibida como prova de rigor justiceiro e superior imparcialidade, sem que uma única alma falante se lembre de observar que, em 1989, a extradição era vantajosa para os acusados, que em seus países seriam logo postos em liberdade, como de fato o foram, ao passo que o sr. Hernandez, com uma condenação transitada em julgado no Chile, tem tudo para desejar permanecer no Brasil e certamente agradece, comovido, a afetação de intransigência do nosso ministro da Justiça.

Todo o falatório esquerdista das últimas semanas é tão obviamente maldoso, tão obviamente fingido, tão obviamente posado, que até eu, que não morro de amores pela esquerda, estou surpreso com essas manifestações infladas e hipertróficas de hipocrisia maquiavélica. Pois até a mais refinada malícia, quando passa de certos limites, se torna uma forma de ingenuidade patológica.

A felicidade geral da nação

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 9 de fevereiro de 2003

Dias antes da eleição do senhor Luiz Inácio para a presidência, escrevi que, no cargo, ele não poderia combater o narcotráfico sem desagradar a seus amigos das Farc, nem deixar de combatê-lo sem desagradar ao Brasil inteiro.

Santa ingenuidade! Naqueles dias já circulava entre os intelectuais de esquerda a solução do dilema, só invisível aos tacanhos reacionários como eu.

Tratava-se, simplesmente, de liberar o uso de drogas. O tráfico passaria a ser um comércio legal, decente, benéfico aos cofres públicos, seja por efetuar-se sob o comando do próprio Estado, seja pelos impostos, naturalmente altíssimos, que o empresariado viesse a pagar pelo requintado privilégio de drogar a nação.

Pó e baseados entrariam com guia de importação, em embalagens douradas com mensagem social em letras azuis e uma grave advertência do Ministério da Saúde: “Isto endoida.”

Sob as penas da lei, o distribuidor estaria obrigado a pagar em dia seus fornecedores, e o miserável dinheirinho que hoje rola por baixo do pano para as Farc seria multiplicado por dez ou cem, saindo em plena luz do dia em malotes do Banco do Brasil, sob a vigilância severa da Receita Federal. O doutor Palocci, que na sua cidade natal viu frustradas suas tentativas de ser o Papai Noel das Farc em escala municipal, teria uma revanche de proporções federais.

Uma parte substantiva dos lucros seria destinada ao Fome Zero, podendo os beneficiados gastá-la de volta, se o desejassem, em maconha e coca, que eliminando alguns esfomeados ajudariam a eliminar a fome.

Legalizado, o comércio da insanidade em pó ou em folhas conquistaria novas fatias do mercado, atualmente inibidas pelos riscos de subir o Morro Dona Marta de táxi, às três da madrugada, cruzando a cada esquina com um segurança de 12 anos armado de metralhadora Uzi.

A rede de distribuidores ilegais teria se tornado inútil e, da noite para o dia, suas organizações criminosas desabariam como castelos de cartas. Os Fernandinhos que hoje aterrorizam o país seriam trancafiados e obrigados a tricotar roupinhas para as crianças pobres, enquanto suas vagas na hierarquia do narcotráfico seriam ocupadas por burocratas inofensivos, selecionados em concurso público. As autoridades, triunfantes, proclamariam na TV: “Conosco é na dureza. Lugar de bandido é na cadeia.” Findo o programa, iriam comemorar a vitória contra o crime dando uma cafungadinha no posto de distribuição mais próximo.

As únicas drogas proibidas que restariam para o comércio ilícito seriam Viagra falsificado, xarope para tosse e cola de sapateiro. Sem o dinheiro da Colômbia para repartir, os poucos remanescentes das gangues extintas não trocariam mais tiros em disputas territoriais e voltariam a ocupações razoáveis, como assaltos à mão armada, seqüestros de banqueiros e prostituição de menores.

À noite, o silêncio nas ruas anunciaria que a paz da província voltara a reinar sobre as capitais. E o senhor Luiz Inácio seria celebrado como o mais sábio estadista brasileiro de todos os tempos. Bastaria, para isso, que consentisse em tornar-se o maior narcotraficante do universo. Não é lindo?