Marxismo, Direito e Sociedade – Parte I

Debate entre Olavo de Carvalho e Alaor Caffé Alves – Parte I

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 19 de novembro de 2003.

Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenas uma delas, a de Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me pareceu a mais completa. Agradeço a eles e também aos autores das demais, que me serviram para corrigir a presente versão em alguns pontos, ainda que sem fazer uma revisão em regra.

Alguns pontos brevemente mencionados neste debate receberam depois uma explicação mais detalhada nos artigos “A natureza do marxismo”, ‘marxismo esotérico” e “Diferenças específicas”, publicados no Jornal da Tarde de São Paulo. – O. de C.

MEDIADOR : Estamos recebendo dois grandes nomes da intelectualidade brasileira. À minha esquerda, o prof. Alaor Caffé Alves, muito conhecido por nós estudantes por nos levar à crítica do Direito e do Estado e a olhar para dentro as relações sociais e enxergar a sua autêntica expressão. À direita, apresento o polêmico filósofo Olavo de Carvalho; tido pela crítica como um dos luminares do pensamento brasileiro, é autor de O Jardim das Aflições , entre outros livros, e traz hoje, à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humana contra a tirania da autoridade coletiva, fazendo deste espaço público, mais uma vez, um centro privilegiado de discussão acadêmica. Um marxista contra um liberal. A iniciar pelo prof. Alaor, teremos trinta minutos para cada debatedor mais quinze minutos para as réplicas; em seguida, abriremos às perguntas. Prof. Alaor e Olavo de Carvalho, neste debate da realidade econômica, política e social de nosso tempo, tomando por base o marxismo, qual função cabe ao Direito na sociedade? E no seu entendimento, quais as conseqüências de se pensar o Direito desta forma? Com a palavra, o prof. Alaor Caffé Alves.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Boa tarde a vocês todos, meus alunos, e ao prof. Olavo de Carvalho. Em meia hora evidentemente não dá para dizer quase nada a respeito do pensamento jurídico, e especialmente do pensamento jurídico calcado na perspectiva de uma metodologia singular, que é a metodologia marxista. Já digo inicialmente que não sou um marxista no sentido tradicional do termo, mas tenho meu namoro com relação a certas questões, e a certas questões metodológicas, que se exprimem ao longo da vida do pensamento teórico marxista, desde Marx até hoje. É claro que, com as idas e vindas históricas, problemas graves, inclusive de situações relacionadas com frustrações políticas extraordinariamente importantes, tudo isso nos dá um grau de perplexidade. Mas, por outro lado, nos permite ver algumas coisas importantes. Eu simplesmente tive de escolher – porque meia hora é tão pouco – alguma coisa estratégica relacionada com o Direito, a sociedade e a perspectiva marxista, que é uma perspectiva que no século XX teve um domínio muito grande, especialmente na ordem política, embora não daquela forma que desejávamos que fosse. O marxismo teve distorções profundas no esquema político e social, enveredou nações inteiras por caminhos que não são efetivamente (ou não eram efetivamente) marxistas, ou pelo menos na conclusão do ideal desse pensador que conhecemos, que é Marx. De qualquer forma, influiu muito a vida do século XX, e a nós cabe apenas uma perspectiva um pouco mais elementar, porque vamos tratar apenas de uma parte da sociedade e sob uma certa ótica, que é a jurídica. Marx nunca tratou do Direito. Na verdade, Marx foi um economista dos clássicos. Atuou de uma forma muito singular no plano do pensamento teórico da economia, estabelecendo seus princípios, enfim, aquilo que ele julgava adequado para explicar a sociedade em que ele vivia. Muitas das explicações de Marx já não valem mais, em função da historicidade dessas mesmas expli cações. Então, é claro, temos de dar o devido valor e entender que isso não significa absolutamente compreender Marx sob o ponto de vista dogmático, mas sim o que ele pode nos fornecer, nos dar, nos oferecer para entender um pouco, especificamente, o problema social; e aqui, no nosso caso, o problema jurídico.

Para colocar a questão muito rapidamente, muito estrategicamente, no ponto de possível discussão, nós temos de levar em conta as características do Direito exatamente dentro da perspectiva e da posição que postulava Marx naquela época, o século XIX, já numa dimensão estrutural social; precisamos entender o que significa a chamada estrutura social, se ela comporta ou não previsibilidade, se admite ou não as possibilidades de um conhecimento razoável do ser humano, a ponto de prever as condições objetivas de sua vida social. Nós encontramos várias ciências sob o ângulo da previsão, como a sociologia, como a própria economia, mas a questão é saber se a história pode ser prevista. Essa é uma questão importante, porque o próprio homem é considerado como ser produto da história e de sua socialidade. Se o ser humano é um produto social, a par da situação individual em que ele se apresenta também como ser biológico – ele também tem a sua individualidade singular, biológica, psicológica –, aqui também se indaga sobre a forma social que toma essa expressão biológica e psicológica. Até que ponto a socialidade determina as dimensões de vontade, os valores humanos, as crenças? Em que sentido isso ocorre?

O próprio Direito é uma expressão social, pois é um fenômeno social e, sendo um fenômeno social, tem de ser estudado desde de certos critérios que permitem caracterizar uma certa regularidade no Direito. É por isso que temos de considerar que o Direito pode ser um saber científico. Muitos não o admitem como um saber científico, e sim como um saber apenas prático; alguns levam em conta se é possível um saber prático ou se há apenas um conjunto de propostas gerais que não têm uma fundamentação científica adequada para verificação de sua validade, de sua verdade. Tudo isso é um problema complicado, pois se trata da metodologia do saber jurídico, focada na perspectiva da metodologia de Marx. Existem teóricos juristas sobre esse assunto. Por exemplo, na própria União Soviética, nós temos um grande teórico jurista, que sofreu os impactos da ditadura de Stalin: Pashukanis, um grande pensador que, atendendo às premissas, enfim, às diretrizes postuladas pela metodologia marxista, pela visão marxista do mundo, acabou dando-nos uma visão interessante, que depois ele mesmo transforma; ele mesmo altera seu ponto de vista, dá uma virada, e acaba morto em 1937 na União Soviética. É claro que outros filósofos existem: mais atualmente, temos os filósofos juristas como Ceromi [?], grande pensador italiano, ligado também à perspectiva marxista, e também Atienza, um grande pensador ligado às questões da ordem do método marxista do Direito. Também temos o namoro feito por Norberto Bobbio relacionado com a questão do Direito; mas ele é um neoliberal, mas de uma forma um tanto diferente daquelas relativas aos neoliberais do século XIX e mesmo do século XX.

Dadas essas condições gerais, o que quero mostrar a vocês é o seguinte: como é que vamos tratar o Direito dentro de uma perspectiva não positivista? Uma delas é a marxista. O conceito de direito no sentido positivista, como vocês sabem, decorre exatamente de uma posição e definição da lei como sendo aquela que deve definir as condições e as específicas diretrizes jurídicas de uma sociedade. A sociedade deve ser produzida do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista jurídico mediante as posturas legais ou legislativas. O grande problema é saber como esta referência positivada do Direito se deu. Há, claro, explicações, inclusive contrapondo o positivismo ao jusnaturalismo, que são muito interessantes – mas não vamos perder tempo agora em defini-los, porque é muito complicado e precisaríamos de mais tempo –, explicações estas que não têm normalmente, por definição, a produção do espírito humano senão mediante a confissão de reflexões filosóficas ou reflexões dentro do âmbito ideal do Direito. Por exemplo, a perspectiva idealista ou a perspectiva não-materialista corresponde ao fato de que há um espírito, espírito este que não significa o de cada um de nós, mas o conjunto dos espíritos, que na verdade são as ações culturais dos homens, particularmente, que formam o espírito que em última instância exprime aquilo que a história deve nos dar, vale dizer, o espírito na busca da liberdade. Esta postura é justamente hegeliana: a busca da liberdade produz praticamente a vida social. O Estado mesmo é uma expressão desse mesmo espírito. Essa visão é extremamente criticada pelos marxistas, que acham que a espiritualidade tem por base uma estrutura social calcada na visão da produção da vida social, na produção da vida material. Se não houver a idéia da produção da vida material da sociedade, nós não temos a idéia mais clara do próprio espírito; a espiritualidade está dinamicamente relacionada à materialidade. Claro que não existe um espírito isolado, solitário, como não caberia existir a matéria solitária. A matéria, para Karl Marx, não é jamais a matéria bruta, nem aquela matéria opaca; não é materialidade dos físicos gregos clássicos, a busca de um “ em si ”, de uma substância material no mundo. Para Karl Marx, a matéria é postulada em função da produção da vida social humana. Materialidade, portanto, é algo que é prenhe de espiritualidade, de certo modo; há uma relação dialética entre o processo de pelo qual os homens agem no mundo e transformam o mundo; e nesse processo de transformação do mundo, os homens, progressivamente, vão transformando-se a si mesmos. É isso o que acontece.

Portanto, esta visão inaugura a idéia de processualidade, exatamente o oposto da visão positivista do Direito. Vocês podem ver, por exemplo, o caso de Kelsen, que trabalha uma visão fundamentalmente estática, ou, vale dizer, muito abstrata. Para ele, o Direito é substancialmente norma e é uma estrutura de sentido. A norma como estrutura de sentido não será estudada do ponto de vista de sua gênese e nem de seus fins, porque gênese e fins da norma são questões de outras ciências e não do próprio Direito. O Direito, em sua essencialidade, se exprime pela norma abstrata, por um dever-ser postulado segundo uma estrutura de coação, que é definida pelo próprio Estado. Então, um dever-ser , para Kelsen, é fundamental, e ele separa fundamentalmente o dever-ser do ser. Evidentemente, essa postura não é aceita pela perspectiva marxista, porque o ser e o dever-ser se compõem numa relação dialética. Não é fácil compreender isto. É difícil. Na visão kelseniana, portanto na linha neokantiana, se faz diferença profunda e séria entre ser e dever-ser: o ser determina o dever-ser , isto é, ele é condição para o dever-ser. Ou seja, Kelsen aceita que a sociedade deve existir necessariamente para que exista o Direito, para que exista o dever-ser, a norma; mas o dever-ser não tem por fundamento o ser, ou seja, a relação social, a sociedade, e sim tem por fundamento um outro dever-ser, e este outro tem por fundamento um outro mais, até um dever-ser fundamental, que ele chama de norma fundamental. Portanto, para ele, a relação do dever-ser com o ser é absolutamente separada, não existe uma comunhão entre uma e outra a não ser pela condição necessária – não a condição per quam , pela qual, mas a condição necessária pela qual se deve ter uma ordem. É claro que não há Direito sem sociedade, com isto ele concorda. Kelsen era um homem extremamente ladino, profundo, grande pensador do Direito; mas tem uma visão formalizada. O Direito como estrutura de sentido organiza a vontade; o Direito, embora tendo como causa a vontade humana, porque já não pode mais ter causa divina (desde que Deus está morto, segundo Nietzsche), então não há mais essa postura de direito teologal, como também não há a idéia do direito natural, um direito que estabelecesse uma relação direta entre o ser e o dever-ser , em que o próprio ser é dever-ser. Como já não se admite isso, a única forma de se admitir o Direito é aquele imposto pelos homens. A forma de impô-lo implica uma relativização do Direito, e esta relativização do Direito imposto pelo homem (porque o homem é um ser circunstanciado, histórico, condicionado por situações singulares) evidentemente tem de ter alguma segurança a respeito do que ele faz, especialmente, no plano do Direito moderno. Para isso, Kelsen não pode aceitar senão a linguagem do discurso jurídico. É por isso que a positivação do Direito moderno é fundamental, porque é uma das formas pela qual se dá a garantia de uma certa estabilidade da forma como se diz o Direito. Diz através da lei, a lei é a positivação do Direito mediante formas escritas; por isso a codificação do sistema, porque antes não havia esta codificação tão expressiva, mas a partir do século XVII, a codificação se torna cada vez mais presente, e no século XIX é praticamente universalizada. O Direito é um direito escrito, e enquanto direito escrito, tem estrutura de sentido, é um direito que tem de ser interpretado. Vejam vocês, portanto, que a estrutura econômica se torna muito complexa, determina a necessidade de os homens registrarem o Direito necessariamente, sem o que o Direito não pode ser devidamente interpretado e aplicado adequadamente.

Mas tudo isso define uma situação de positividade que de certo modo extrai as possibilidades materiais do próprio Direito. Esquece-se Kelsen dos fundamentos sociais, das estruturas sociais; daí o problema de que no positivismo se faz uma separação entre Direito como norma positivada e justiça, moralidade e ética jurídica. Estas questões são muitos distintas. O próprio Kelsen aceita perfeitamente essa postura e diz que o Direito é isto. É claro que esta visão é formalizada, portanto, uma visão estática do Direito, melhor ainda, uma visão universal do Direito. De certo modo se diz o seguinte: a norma jurídica, como jurídica que é, que dá a essencialidade à compreensão do Direito, é igual no sistema capitalista, socialista, comunista, feudal, clássico: a norma é sempre a norma, é sempre o dever-ser . É por isso que ele, então, essencializa o Direito na norma e, de certo modo, ele segue um pouco o caminho platônico: as próprias experiências, a singularidade, a história, a factualidade, as circunstâncias, isso passa a ser como que, digamos, alguma coisa esmaecida do mundo, como que sombras da caverna. O que importa fundamentalmente para essencializar o Direito é a norma; a norma é uma estrutura de sentido, e sentido da vontade, e não a vontade é a norma. Vejam a diferença entre a postura marxista e a postura kelseniana, que é a expressão máxima, mais avançada, mais ampliada do sistema do positivismo jurídico que é dominante em todo o sistema capitalista; fora, evidentemente, os sistemas jurídicos calcados na perspectiva teológica que como nós temos ainda em vários países do mundo que a adotam, mas os países mais avançados têm esta linha muito consagrada da positividade, portanto a linha da legalidade.

Ora, isso tudo só pode ser explicado a partir da idéia da processualidade, que é uma idéia dialética. Por isso eu faço sempre uma diferenciação entre o processo e o produto. A idéia é normalmente separar o resultado do processo, então fica complicado porque ficamos apenas com o resultado. Em termos operacionais e práticos dá para usar o resultado muito bem de forma instrumental, e como dizia Habermas, a instrumentalidade racional permite que se manipule o resultado, mas esse resultado não será legitimamente compreendido e entendido cientificamente se não se atender para o processo pelo qual o resultado é resultado. Então, há uma processualidade no mundo e buscar o processo pelo qual alguma coisa é feita é melhor do que buscar a coisa feita por si mesma; buscar o processo pelo qual o homem se desenvolve é melhor para entender o próprio homem, aqui e agora. Por isso, o homem tem de ter a expressão do passado. Ele tem a expressão do passado, mas tem sua negatividade; porque o homem não é o passado, ele supera esse passado. Uma visão um tanto quanto hegeliana, mas a possibilidade de que o homem supere o passado é a afirmação do passado e, ao mesmo tempo, sua negação. Ele se afirma, tanto quanto um adulto afirma a criança que foi, mas não é a criança que foi, portanto, a nega. Você vê que esta relação dialética é complexa, e isso existe no plano do Direito.

Quando vamos examinar esta categoria da processualidade, nós temos então de projetar a sociedade nesse processo. Daí se vê o seguinte: a sociedade, como se dá? Em que termos a sociedade entra como processo? É um problema que eu sempre levo em conta: ela é uma produção puramente espiritual, é uma produção material, ou é material e espiritual ao mesmo tempo? Parece que é conjugada. Ela não é puramente espiritual, não é apenas a história do espírito humano que define o homem; também não é uma materialidade pura e simplesmente, naquela concepção mecanicista e substancialista da matéria; mas é uma relação, uma dinâmica entre espiritualidade e materialidade. Até que muitas vezes se pergunta: mas qual é o fundamental nisto? Os marxistas consideram que, em última instância, a dimensão material (naquele sentido dito por Marx, não no sentido da matéria bruta, mas no sentido da produção, ou seja, da matéria enquanto produção do homem, portanto) é claro que tem história. Se examinarmos antropologicamente, vê-se que os homens não produziram sempre aquilo que produzem hoje; produziram de forma muito diferente, produziam outras coisas, em modos diferentes de produção. As formas sociais para produção são diferentes, as relações que os homens guardam entre si são diferentes nos diversos momentos históricos. Então, você vê que, efetivamente, existe um problema que deve ser visualizado pelo teórico do Direito para saber até que ponto o próprio Direito é uma resultante deste processo.

O ponto de vista marxista tem algumas colocações interessantes. Eu vou dar um exemplo bem específico para vocês entenderem o que eu quero dizer. No sistema feudal, as relações produtivas eram muito singelas; era uma economia mais natural, mais de subsistência; o valor de uso predominava; não havia valor de troca expressivo; a moeda não corria muito; os feudos centralizavam o sistema econômico. Havia, portanto, uma atuação política, ou seja, o exercício da força, porque a politicidade também tem em seu centro a possibilidade do exercício da força; isso havia, inclusive misturado com a relação econômica. A relação econômica era a produção feita pelos homens e a relação social destes homens para a produção. Mas a relação social se compunha, ao mesmo tempo, de uma dimensão econômica, pela qual se exercia um poder para transformar o mundo; e isto implica, evidentemente, utilizar a força produtiva, a mão-de-obra e os mecanismos que existem para fazê-lo, mas existia também uma atuação política, uma força política para esse exercício. Então, sabe-se que numa época escravista, como a época feudal, as relações entre os homens para produzir não eram as mesmas das épocas modernas, da época que chamamos burguesa ou capitalista, da época mercantil. É uma época diferente porque o exercício da força sobre o trabalho é praticamente muito presente. Portanto, o econômico e o político se viam de tal maneira misturados, de tal maneira acoplados, de tal maneira feridos em sua integridade, que o agente econômico era o mesmo agente político. O senhor feudal era ao mesmo tempo agente econômico, agente cultural e agente político: ele exercia a força, ele inclusive trazia a mão-de-obra à força para o trabalho se fosse preciso. Existia também outro elemento que é a ideologia, que evitava a expressão clara desta forma de explorar os homens nesse processo. Quando isto ocorre, temos uma dimensão econômica muito própria que traduz uma forma política específica da época medieval. Quando entretanto – e aqui vem a tese marxista – há uma evolução desse processo produtivo, vale dizer, a dimensão tecnológica, a condição material da produção, vale dizer, a tecnologia (isto também é uma visão tecnológica de certo modo, que foi muito discutida e é muito discutida ainda hoje), quando a tecnologia avança pelas invenções que o homem vai desenvolvendo através do seu trabalho, da sua atuação direta com o mundo, buscando novas formas de cultivar o mundo, inventando várias coisas como o moinho de vento, a roda dentada, enfim, sistemas novos de articulação do poder, é claro que isto vai implicar uma maior quantidade de produto. A produção começa a se expandir, a se desenvolver, e há um conflito entre o desenvolvimento produtivo (a produção) e os limites do sistema feudal. Vale dizer, tudo era feito para o senhor basicamente, e depois, na expansão, era muito complicado fazer com que a venda dessas mercadorias (elas passam a ser mercadorias) se estendesse para todo conjunto de feudos, quando os próprios feudos estavam impondo certas situações de restrição dessa produção. Dizem os marxistas que aí existe um conflito singular entre uma força produtiva típica singular feudal e a força nascente, que seria exatamente essa dimensão calcada na perspectiva de uma nova classe, que é a classe dos burgueses. Abre-se, portanto, um período de crise em que forma e matéria, forma e conteúdo, entram em crise e aí vem uma nova fase: o homem começa a precisar de uma nova forma de produção. Era preciso distribuir a mercadoria; para fazê-lo, é preciso que todos ganhem dinheiro, que ganhem recursos para que possam consumir a mercadoria do mercado. Mas como seria possível fazer isso se as relações eram tipicamente ou servis ou escravistas? Impossível, porque não se podia distribuir recursos; para isso, era preciso criar novas formas, como a forma da moeda (a monetarização da economia), o salário (o assalariato se inicia neste processo). É evidente que neste momento tudo passa a ser diferente: o sistema econômico não mais é garantido em função de uma relação de imposição sobre o trabalho, mas era preciso fazer com que o trabalho passasse a ter agora uma outra dimensão, a dimensão de liberdade. Era preciso ser livre das peias do feudalismo, livre das peias do exercício sobre instrumentos de produção elementares, fazer com que a força do trabalho pudesse ela mesma ser autônoma, e portanto vendável. Então, é o momento em que aparece a venda na força do trabalho, e esta venda forma o mercado, o mercado de trabalho, onde as mercadorias passam a circular, entre as quais, a própria força do trabalho. É claro que, nesse caso, a relação entre o capital e a força do trabalho não é uma relação de imposição, como acontecia no sistema anterior. Não havia capital no sistema anterior, mas havia uma imposição sobre o trabalho, pela força do senhor feudal ou do escravizador. Agora não: ela se universaliza na sociedade de uma forma completamente diferente, é preciso que os homens estabeleçam relações entre si de forma mercantil, de troca, e a troca pressupõe, basicamente, proprietários. Todos têm que ser proprietários: os proprietários do capital (do salário) e os proprietários correspondentes. Então, esses proprietários do capital tinham o salário e, do outro lado a força de trabalho dava a capacidade de trabalho e recebia o salário; com esse salário formavam o mercado e com isso então expandia-se a produção.

Claro, daí começam o quê? Figuras interessantes, como a figura do contrato, que se universaliza nesta época. Então, é somente com o aparecimento de uma nova forma de produção que se universaliza a figura do contrato juridicamente. A figura do contrato pressupõe pessoas contratantes, logo, pessoas jurídicas. Há que haver portanto, a universalização das pessoas jurídicas. Há necessidade de que as pessoas sejam proprietários, porque elas só podem trocar coisas de que tenham posse em disponibilidade. Aqui vocês vêem, portanto, a liberdade: como é possível contratar sem liberdade? O suposto é a liberdade; o suposto é a igualdade. Vocês vêem, portanto, que as figuras jurídicas formuladas no direito civil especialmente (isso depois transcende para o direito público) acabam resultando de um processo de movimento das forças produtivas, da capacidade material dos homens, que determina formas diferentes. Não vejam, portanto, o contrato simplesmente como a figuração de algo abstrato situado no cosmos. Não: primeiro existem as relações de troca, depois elas vão para o código para ser reguladas de forma detalhada, singular, e garantidas.

Vejam vocês, nessas poucas palavras, simplesmente, o que aflora nesta estrutura de pensamento. É uma estrutura de pensamento que propõe uma dimensão muito singular, muito interessante, que deve ser objeto de exploração. Não quer dizer que ela seja a única – cuidado com isso! Ela deve ser objeto da expansão metodológica porque ela nos dá algumas bases interessantíssimas para explicar um pouco melhor os próprios institutos jurídicos. Aqui vocês vêem apenas um momento estratégico e singelo: a possibilidade de utilizar uma metodologia nova, interessante; não é nova sob o ponto de vista jurídico, não é tão universal, mas pode nos dar um conhecimento um tanto quanto mais seguro, principalmente dos processos pelos quais os institutos chegam a ser institutos jurídicos. É isto basicamente.

MEDIADOR : Neste momento passo a palavra a Olavo de Carvalho.

Parte II

Muito lógico

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 16 de novembro de 2003

A unificação das forças armadas latino-americanas é necessária, diz o ministro José Dirceu, para “a defesa do continente”. Defesa contra que? Sem um inimigo potencial, não há plano de defesa que faça sentido. No momento, a única ameaça de agressão armada que pesa sobre o continente é aquela que vem de organizações terroristas como as Farc ou o MIR chileno. Mas essas organizações estão sob a orientação política do Foro de São Paulo, entidade fundada — e dirigida por dez anos — pelo sr. Luís Inácio Lula da Silva, que decerto não gostaria de agir contra elas. Como líder do órgão coordenador da estratégia comunista na América Latina, é bem mais natural que ele use de seu prestígio e autoridade para proteger seus antigos subordinados. No tocante às Farc em particular, ele já deixou claro que, no seu entender, elas não devem ser combatidas, muito menos punidas pela morte de 30 mil colombianos, e sim premiadas com o reconhecimento de seu estatuto de partido político legítimo. Em documento assinado em dezembro de 2001, ele qualificou de “terrorismo de Estado” a luta movida pelas forças armadas colombianas contra a guerrilha. Quando, portanto, seu ministro-chefe da Casa Civil diz que a mencionada unificação militar tem entre outros objetivos o de “ajudar a Colômbia”, é óbvio que isso não se refere a ajuda contra as Farc: nosso governo jamais consentiria em ampliar para dimensões continentais o execrável “terrorismo de Estado”. Devemos ajudar a Colômbia, isto sim, a evitar uma “possível invasão norte-americana”. Eis o inimigo.

A escolha, na verdade, não parece ser muito nova. Já em 2000, Miguel Urbano Rodrigues, escrevendo no jornal Avante!, órgão do Partido Comunista Português, informava que os militares brasileiros da região amazônica estavam estudando os manuais do general Giap e de Che Guevara, com o objetivo de prerarar-se para uma eventual guerra de dissuasão contra o invasor americano. Embora o jornalista português citasse como fonte o brasileiro Márcio Moreira Alves, sendo em seguida citado por este, numa retroconfirmação circular um tanto suspeita, o fato é que pelo menos um deles não estava nada desinformado: Márcio é íntimo freqüentador dos meios militares nacionais e chegou a ser cogitado para o cargo de reitor civil da Escola Superior de Guerra.

Curiosamente, a mais profunda interferência americana nos assuntos militares da América Latina, durante a última década, foi o Plano Colômbia, do qual os esquerdistas só se queixam por pura ingratidão ou por astúcia diversionista. Pois esse Plano, proibindo o governo colombiano de tocar na guerrilha, teve por objetivo justamente transferir às Farc o patrimônio dos antigos cartéis, transformando-as naquilo que são hoje: um poder financeiro e militar temível. Vindo de um presidente americano cujas afinidades com a esquerda revolucionária internacional são notórias no seu país (embora jamais mencionadas pela mídia brasileira), isso foi de uma lógica exemplar. Também é muito lógico que a esquerda nacional, após ter feito de tudo para desmantelar as nossas Forças Armadas enquanto viam nelas algum resíduo “direitista”, pensem em fortalecê-las por meio da união continental agora que, debilitadas, desmoralizadas e aparentemente esvaziadas de suas convicções tradicionais, elas já começam talvez a gostar de seus antigos algozes, dispondo-se a colaborar com eles no vasto front do anti-americanismo internacional.

Da barbárie à decadência

Olavo de Carvalho

O Globo, 15 de novembro de 2003

Vocês já devem ter ouvido dizer que o Brasil saltou da barbárie à decadência sem ter passado pela civilização. Antigamente isso era piada, mas cada vez mais adquire toda a aparência de uma verdade passível de confirmação empírica.

Observo, por exemplo, que a vulgata marxista mais infame, desprezada como lixo burocrático pelos intelectuais de esquerda dos anos 60, é hoje aceita como alta cultura universitária, sem que ninguém mais pareça notar a diferença.

Acabo de ler, nas apostilas de um professor da Faculdade de Direito da USP, tido como um dos mais brilhantes intelectuais da instituição, que a linguagem e o pensamento estão tão profundamente interligados que “quem não fala não pensa”. Alunos do cidadão repassam-me essa enormidade com toda a inocência, sem dar-se conta de sua implicação mais óbvia: se não se pode pensar sem palavras, uma criança tem de aprender a falar para depois poder pensar, donde se conclui que a pobrezinha terá de enfrentar o aprendizado da fala sem nenhum auxílio da capacidade pensante. Crianças assim só existem no corpo docente da USP. Se as outras funcionassem como elas, não restaria alternativa senão explicar a sua aquisição da linguagem pela mera reflexologia animal, levando o materialismo pavloviano às últimas conseqüências, coisa que mesmo a velha Academia de Ciências da URSS temia fazer. A mais elementar observação dos fatos ensina que o pensamento lógico está presente já na comparação e catalogação imaginativa das propriedades sensíveis dos corpos — forma, cor, movimento –, e que sem o sistema de categorias aí subentendido seria impossível, depois, apreender as diferenças entre classes de palavras. Dos estudos clássicos de Rudolf Arnheim sobre o “pensamento visual” até as análises de Xavier Zubiri divulgadas na década de 90, ninguém mais nega a obviedade proclamada 2.400 anos atrás por Aristóteles, de que não há linguagem sem abstração, nem abstração sem um senso lógico das categorias embutido de algum modo na simples percepção sensível. Zubiri vai até além e proclama que a apreensão da “realidade” como tal, distinta da simples estimulação recebida por um corpo, é a forma propriamente humana de percepção, a diferença mais imediata e decisiva entre o homem e o animal.

Inversa e complementarmente — e a própria apostila que mencionei dá exemplo disso –, é claro que se pode “pensar” com meras palavras, formando cadeias inteiras de silogismos sem a mínima apreensão das entidades referidas, portanto sem nenhuma consciência da diferença entre as definições nominais dos termos e as qualidades objetivas dos seres e estados respectivos. O falante, aí, tão logo consiga formar uma combinação de palavras que lhe pareça razoável desde o ponto de vista gramatical e semântico, acreditará piamente estar pensando sobre coisas existentes, e nada poderá tirá-lo da ilusão de que seu universo de frases é o extremo limite do mundo real. É precisamente isso o que no Brasil de hoje se chama “pensar”, e é natural que, generalizando suas limitações pessoais, os praticantes desse vício acabem chegando à conclusão de que, para o restante da humanidade, pensar sem palavras é tão impossível quanto para eles próprios.

Toda a possibilidade de um ser humano conhecer a realidade objetiva repousa na capacidade que ele tenha de analisar criticamente sua própria linguagem com base na experiência sensível, externa e interna, percorrendo em marcha-a-ré toda a cadeia que sobe das percepções mudas — experiência pessoal direta — até os complexos semânticos e sintáticos mais elaborados. Um escritor que busca o “termo próprio”, com a obsessão de um Flaubert ou de um Eça de Queiroz, não faz senão comparar sua percepção das propriedades sensíveis com os registros convencionais da memória verbal coletiva anotados na fala popular, na tradição literária e nos dicionários. O domínio superior da expressão lingüística é impossível sem um senso agudo da distância que há entre linguagem e percepção, senso cujo exercício é justamente a base da conexão crítica entre pensamento e realidade. Especialmente aprimorado nos escritores e filósofos, esse exercício é no entanto uma capacidade elementar sem a qual os seres humanos não poderiam jamais escapar das malhas de qualquer ilusão verbal tecida por eles próprios. Um escritor de verdade é portanto um especialista em percepções, empenhado em protegê-las contra a força dissolvente do fluxo lingüístico, e assim, mallarmeanamente, em “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”. Não é necessário dizer que, nessa acepção, a maioria dos indivíduos que neste país ostentam hoje em dia o título de escritores não são escritores de maneira alguma, e sim precisamente o contrário: são profissionais da tagarelice, dedicados a sobrepô-la de tal modo ao mundo percebido que no fim já não seja possível recorrer ao testemunho da percepção para confirmar ou impugnar o que dizem. Quando adquirem nisso um certo grau de habilidade, estão maduros para declarar o primado da linguagem não só sobre o pensamento, mas sobre a realidade, transformando o psitacismo no mais alto dos deveres intelectuais. Que o façam sob pretextos desconstrucionistas elegantíssimos, nada mais natural. A linguagem dessa gente não é “bárbara”, no sentido de elementar e simplória. Ao contrário, é tanto mais sofisticada quanto mais burra, mais postiça e mais incapaz de confronto com a realidade. Que, por outro lado, os indivíduos assim formados ou deformados sintam cada vez mais atração pelo vulgar e grosseiro, até o ponto de colocar sua pena orgulhosamente a serviço de demagogias revolucionárias torpes e sangrentas, celebrando o “humanismo de Che Guevara”, a compaixão social do genocídio maoísta, os ideais justiceiros do narcotráfico ou a piedade cristã do aborto em massa, é algo que se compreende sem muita dificuldade: pois a mente que disse adeus ao mundo das percepções sente mesmo a nostalgia da realidade e tem de buscar no “popular”, como ela mesma o nomeia, um sucedâneo simbólico daquilo que perdeu para sempre. É o salto, se não da barbárie à decadência, ao menos da decadência á barbárie.