Miséria intelectual sem fim

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 15 de agosto de 2005

Há quase meio século o mercado editorial brasileiro, e em conseqüência os debates jornalísticos e universitários, cujo alimento de base são os livros, não refletem em nada o movimento das idéias no mundo, mas apenas o apego atávico da intelectualidade local a mitos e caoetes fabricados pela militância esquerdista para seu consumo interno e satisfação gremial.

Sem a menor dificuldade posso listar mais de quinhentos livros importantes, que suscitaram discussões intensas e estudos sérios nos EUA e na Europa, e que permanecem totalmente desconhecidos do nosso público, pelo simples fato de que sua leitura arriscaria furar o balão da autolatria esquerdista e varrer para o lixo do esquecimento inumeráveis prestígios acadêmicos e literários consagrados neste país ao longo das últimas décadas.

Esses livros dividem-se em sete categorias principais:

1. Obras essenciais de filosofia e ciências humanas que oferecem alternativas à ortodoxia marxista-desconstrucionista-multiculturalista dominante (por exemplo, os livros de Eric Voegelin, Leo Strauss, Xavier Zubiri, Bernard Lonergan, Eugen Rosenstock-Huessy, Thomas Molnar, David Stove, Roger Scruton).

2. Análises críticas dessa ortodoxia (Hilton Kramer, Roger Kimball, Keith Windschuttle, John M. Ellis, Mary Lefkowitz, Judith Reisman).

3. Pesquisas históricas sobre o movimento esquerdista internacional, baseadas nos documentos dos Arquivos de Moscou e outras fontes recém-abertas, (John Lewis Gaddis, John Earl Haynes, Stephen Koch, Harvey Klehr, R. J. Rummel, Christopher Andrew, Herb Romerstein, Ronald Radosh, Arthur Herman).

4. Livros sobre o esquerdismo hoje em dia, com a descrição dos laços abrangentes que unem ao terrorismo e ao narcotráfico a esquerda chique da grande mídia, das fundações bilionárias e dos organismos dirigentes internacionais ( Unholy Alliance , de David Horowitz, Countdowmn to Terror , de Curt Weldon, Treachery , de Bill Gertz, Through the Eyes of the Enemy , de Stanislav Lunev).

5. Livros sobre a perseguição anti-religiosa no mundo e o fenômeno concomitante da expansão acelerada do cristianismo na Ásia e na África ( The Criminalization of Christianity , de Janet L. Folger, Persecution , de David Limbaugh, Megashift , de James Rutz, Jesus in Beijing , de David Aikman etc. etc.).

6. Livros sobre questões políticas em discussão aberta nos EUA, com repercussões mundiais mais que previsíveis (Men in Black , de Mark R. Levin, So Help Me God , de Roy Moore, Deliver Us From Evil , de Sean Hannity, Liberalism Is a Mental Disorder , de Michael Savage e, evidentemente, todos os livros de Ann Coulter).

7. Obras essenciais que deram novo impulso ao pensamento político conservador americano e europeu desde os anos 40, como as de Ludwig von Mises, Marcel de Corte, Willmore Kendall, Russel Kirk, Erik von Kuenhelt-Leddin, William F. Buckley Jr., M. Stanton Evans, Irving Babbit, Paul Elmer More e muitos outros. Neste ponto a ignorância dos nossos professores universitários chega a ser criminosa, como se viu na fraude coletiva do “Dicionário Crítico do Pensamento da Direita” (detalhes em www.olavodecarvalho.org/textos/naosabendo.htm).

Todos esses exemplos são de livros e autores bem conhecidos, amplamente debatidos na mídia americana e alguns na européia. Cada uma das sete classes comportaria mais de cem outros títulos igualmente importantes. Não é exagerado concluir que, se o debate nacional ignora todas essas obras, das duas uma: ou ele é tão rico que pode prescindir delas, fartando-se numa pletora de produtos locais mais substanciosos, ou está tão abaixo do nível delas que não chega nem a suspeitar que devam ser lidas ou mesmo que existam. Não é preciso perguntar qual das duas hipóteses é verdadeira. Qualquer estudante universitário afirmará resolutamente que se trata de autores desconhecidos no meio acadêmico brasileiro, portanto irrelevantes para quem já encheu seu pé-de-meia cultural com a moeda forte de Eduardo Galeano, Rigoberta Menchú e Emir Sader (sem contar, é claro, a ração diária de Foucaults e Derridas, invariável há cinqüenta anos).

Resta ainda o fenômeno, mórbido em último grau, da polêmica de mão única. Sua fórmula é a seguinte: uma discussão qualquer aparece na mídia americana, conservadores e esquerdistas produzem dezenas de livros a respeito e a parte esquerdista é publicada no Brasil sem suas respostas conservadoras, simulando consenso universal em questões que, no mínimo, permanecem em disputa. O establishment cultural brasileiro materializa assim o koan budista de bater palmas com uma mão só. Isso é a norma, sobretudo, nas polêmicas anticristãs. Uma fajutice barata como O Papa de Hitler , de John Cornwell, teve várias edições e toda a atenção da mídia. Os muitos livros sérios que desmantelaram a farsa (sobretudo o do rabino David Dalin, The Myth of the Hitler Pope , e o do eminente filósofo Ralph McInnerny, The Defamation of Pius XII ) continuam inacessíveis e não foram nem mesmo mencionados na mídia soi-disant cultural. Ninguém sequer noticiou que o próprio Cornwell, surpreendido de calças na mão, retirou muitas das acusações que fizera a Pio XII. No Brasil elas ainda são repetidas como verdades provadas. Do mesmo modo, os filmes Farenhype 9/11 (www.fahrenhype911.com) e Michael Moore Hates America (www.michaelmoorehatesamerica.com), respostas devastadoras à empulhação fabricada por Michael Moore em Farenheit 9/11 , permanecem fora do alcance do público e não mereceram nem uma notinha nos jornais. Resultado: o mais notório charlatão cinematográfico de todos os tempos, que nos EUA tem fama apenas de mentiroso criativo, é citado como fonte respeitável até nas universidades. É patético. Também cada nova intrujice anti-americana ou anti-israelense de Noam Chomsky é recebida como mensagem dos céus, mas ninguém pensa em publicar a coletânea The Anti-Chomsky Reader , de Peter Collier e David Horowitz, porque é impossível lê-la sem concluir que nem mesmo o Chomsky lingüista, anterior à sua transfiguração em pop star da esquerda, era digno de crédito.

Como esse estado anormal de privação de alimentos intelectuais essenciais vem se prolongando por mais de uma geração, o resultado aparece não só na degradação completa da produção cultural, hoje reduzida a show business e propaganda comunista, mas também nos indivíduos, notavelmente mais embotados e burros a cada ano que passa, quaisquer que fossem antes seus talentos e aptidões. Não hesito em declarar que, pela minha experiência pessoal, qualquer menino educado pela via do home schooling nos EUA está intelectualmente mais equipado do que a maioria dos “formadores de opinião” no Brasil, incluindo os luminares da grande mídia, os acadêmicos e os escritores de maior vendagem no mercado (imagino um debate entre qualquer deles e Kyle Williams, menino gordinho de quinze anos que, sem jamais ter freqüentado escola, faz sucesso como colunista político desde os doze – seria um massacre).

Não é preciso dizer que a essas mesmas criaturas, aliás, incumbe a culpa pelo presente estado de coisas. A instrumentalização – ou prostituição – completa da cultura no leito da “revolução cultural” gramsciana não poderia ter outro resultado, exatamente como anunciei no meu livro de 1993, A Nova Era e a Revolução Cultural.

Por orgulho, vaidade, ressentimento, desonestidade, covardia, sem contar a inépcia pura e simples e a ambição insana de poder absoluto sobre a mente popular, a liderança intelectual esquerdista fechou o Brasil num isolamento provinciano e incapacitante, sem o qual jamais teria sido possível esse paroxismo de inconsciência, essa apoteose da credulidade beócia, sem precedentes em toda a história universal, que foi a aposta maciça do eleitorado brasileiro na idoneidade do PT e na sabedoria infusa de um semi-analfabeto presunçoso.

Mas a consciência, ao contrário do dinheiro, parece fazer tanto menos falta quanto mais escasseia. Convocados quase que simultaneamente pelos dois house organs do esquerdismo brasileiro, que são os cadernos Mais! da Folha de S. Paulo e Prosa & Verso do Globo , para analisar o fenômeno do descalabro petista, os representantes mais badalados daquela liderança, os mesmos que há trinta anos dominam o palco dos debates públicos no país, lançam as culpas em tudo, exceto, é claro, na hegemonia esquerdista e no seu próprio trabalho incansável de carcereiros da inteligência.

No Mais! , César Benjamin tem ao menos o mérito de reconhecer que a corrupção petista não vem de hoje, não é súbito desvio de uma linha de conduta honesta e sim um mal antigo, de raízes profundas. Mas, na hora de explicar suas causas, apela, sem notar que se contradiz, ao subterfúgio usual de acusar a estratégia de acomodação com o “neoliberalismo”, supostamente adotada pelo governo Lula.

Reinaldo Gonçalves, economista da UFRJ, acha que o PT estaria melhor sem Lula, José Dirceu et caterva — intriga de família que, sinceramente, não é da nossa conta.

Paul Singer só se preocupa em recordar os bons tempos e tentar salvar a fé socialista. Sempre tive aliás a impressão de que os socialistas saem direto do pediatra para o geriatra.

O Prosa & Verso não se contenta em ouvir os gurus de sempre. Anuncia mais um ciclo de conferências da série “O Olhar”, “Os Sentidos da Pauxão” etc. – organizado pelo indefectível Adauto Novaes – no qual esses campeões de tagarelice comentarão, desta vez, “O Silêncio dos Intelectuais”, sugerindo que o Brasil está mal porque eles têm falado muito pouco.

Francisco de Oliveira explicita esse pensamento ao proclamar que a esquerda vem errando porque não trata com suficiente deferência os seus intelectuais – ele próprio, suponho, em primeiro lugar –, usando-os apenas como ornamentos em vez de se curvar às suas sábias lições.

O poeta Antônio Cícero divaga pelo passado histórico, exibindo sua incapacidade de discernir entre a Idade Média e o Renascimento e, quando vai chegando perto do assunto proposto, já acabou o artigo.

Sérgio Paulo Rouanet apela ao dever de “universalidade” dos intelectuais, que ele define como “pensar e agir em nome de todos”, como se a universalidade da verdade dependesse do apoio unânime das multidões e como se aquele dever não consistisse, com freqüência, em defender aquilo que todos rejeitam.

Renato Janine Ribeiro medita um pouquinho sobre “O que é ser intelectual de esquerda?” – decerto a mais interessante das perguntas para uma classe cuja principal tarefa é a contemplação extática do próprio umbigo.

Querem mais? Essas amostras bastam. A vacuidade, a falta de garra para apreender a substância dos fatos, a obscenidade espontânea e quase inocente com que esses sujeitos lambem em público o próprio ego grupal — tudo isso ilustra, ao mesmo tempo, a causa remota e o seu efeito presente: a total irresponsabilidade intelectual de ativistas ambiciosos desembocou, a longo prazo, numa degradação tamanha, que eles próprios, mergulhados nela, já não conseguem lembrar que a produziram fazendo exatamente o que estão fazendo agora.

Da ignorância à maldade

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de agosto de 2005

WASHINGTON, DC – Quando você olha um objeto qualquer – um gato, uma cadeira, uma nuvem, um palito de fósforo –, não percebe nele somente o traço essencial que o define pelo nome. Percebe também um conjunto de aspectos secundários que o individualizam e o distinguem de outros entes da mesma espécie. Percebe, por exemplo, que é um gato rajado e não preto, que é grande e gordo em vez de pequeno e magro, que está deitado e imóvel em vez de correr e saltar, que está no sofá da sala e não em cima da mesa da cozinha etc., etc. É esse conjunto de aspectos secundários que diferencia a percepção concreta da mera idéia abstrata de “gato”, a qual idéia é sempre a mesma para todos os gatos de todos os tamanhos e cores, percebidos em todos os lugares, posições e atitudes possíveis.

Aristóteles denominava “categorias” esses vários aspectos sob os quais um ente ou coisa é percebido instantaneamente. Perceber com realismo é apreender um objeto, fato ou situação sob as várias categorias, captando com exatidão as diferenças que ele exibe em cada uma delas e articulando-as num todo concreto. É claro que nem sempre essa articulação é intuitiva e instantânea. Às vezes surge uma incongruência qualquer entre os aspectos percebidos, e o todo não se completa intuitivamente. Aí você recorre à conjeturação lógica para tentar completá-lo mentalmente, mas o melhor que a lógica vai produzir então é uma hipótese mais plausível. A verificação da hipótese só pode ser obtida por um segundo exame do objeto. Por exemplo, se a forma externa que ele mostra sugere que é um gato, mas o tamanho parece excessivo para um gato, você pode conjeturar que é uma onça ou tigre, mas só tirará a dúvida se olhar para o bicho de novo, ao menos pela fração de segundo necessária para concluir que está na hora de sair correndo. Em todos os casos e circunstâncias, nada substitui a percepção intuitiva adequada e completa.

Tanto é assim que, mesmo naquelas formas de conhecimento mais elevadas e complexas a que chamamos “ciências”, o teste da verdade vem sempre, em última análise, da experiência, isto é, do acesso intuitivo a algum dado de realidade presente. A experiência sistemática é, na esfera das ciências, o equivalente da percepção intuitiva na cognição vulgar ou pré-científica. Os conceitos descritivos e explicativos de qualquer ciência, por sua vez, não são senão aplicações mais especializadas das dez categorias descobertas por Aristóteles (substância, qualidade, quantidade, relação, ação praticada, ação sofrida, lugar, tempo, posição e atitude). O conhecimento da realidade é sempre uma questão de percepção, e percepção é articulação intuitiva de traços percebidos sob as várias categorias. A conclusão inevitável é que a aplicação eficaz dos conceitos científicos depende de uma boa percepção vulgar prévia. A tentativa de aplicar conceitos científicos a realidades mal percebidas resulta apenas em delírio pedante, em histórias da carochinha adornadas com uma aparência de linguagem intelectualmente sofisticada. Na imagem resultante, os traços percebidos são deformados por categorias impróprias e a confusão pode chegar a tal ponto que o trabalho mental de gerações inteiras se torna esforço perdido.

Na percepção de fatos mais complexos do que um gato dormindo, a possibilidade de incorrer nesse erro é enorme, sobretudo quando são fatos públicos sujeitos a deformações operadas por toda sorte de “especialistas”, palpiteiros, ativistas fanáticos e partes interessadas. Maior ainda a possibilidade do desastre quando a comunidade que participa do debate não tem prática do assunto e arrisca, por automatismo, e às vezes com fartura de termos científicos, jurídicos, sociológicos, etc., toda sorte de interpretações deslocadas, adaptadas de experiências vagamente parecidas, tornando ainda mais inacessível a realidade do objeto.

No caso do Mensalão, por exemplo, a incapacidade geral de atinar com a diferença específica do que está acontecendo é produzida pelo seguinte fator: uma década e meia de denúncias, fomentadas astuciosamente pelo partido que num choque de retorno veio a tornar-se depois o principal suspeito delas, criou o hábito de encarar o dinheiro do Estado como o bem mais valioso, superior mesmo ao próprio Estado, e de não conceber os crimes contra o Estado senão sob a categoria do roubo e da corrupção. Isso tornava impossível imaginar a possibilidade de delitos mais vastos e ambiciosos, que assim podiam ser cometidos sem medo ante milhões de olhos cegos.

Ora, o partido que infundiu esse hábito na mente do povo fez isso justamente porque sabia que o calcanhar-de-Aquiles dos adversários a quem desejava destruir estava na sua ânsia de enriquecimento pessoal, coextensiva à sua vacuidade ideológica, à sua completa falta de objetivos político-estratégicos maiores. Ele, por sua vez, tinha um objetivo político-estratégico maior: a destruição da ordem democrática, a deglutição do Estado no ventre da onipotência partidária, a criação de um regime socialista nos moldes delineados pelo Foro de São Paulo, o alinhamento do Brasil no eixo comuno-terrorista. Tinha esse objetivo e sabia não apenas que ele era ilegal em si mas que sua realização exigiria o uso de meios criminosos de envergadura jamais ambicionada por seus miúdos adversários. Não se tratava de enriquecer o sr. fulano ou de garantir o futuro do sr. beltrano, corrompendo, para esse fim, meia dúzia de parlamentares e uns quantos funcionários burocráticos. Tratava-se de elevar um partido acima do poder do Estado – e para isso era preciso corromper o maior número de políticos, a classe política inteira se possível, sobretudo e de preferência os virtuais adversários do partido, para que, em caso de perigo, corressem em socorro dele ou pelo menos se abstivessem de dizer o que sabiam contra ele. Tratava-se de comprar tudo e todos, organizadamente, sistematicamente, para que ninguém pudesse denunciar nada sem denunciar-se a si próprio.

Foi para isso, precisamente, que esse partido desencadeou mil e uma campanhas de “ética”, fomentando a indústria do denuncismo que ao longo de uma década e meia manteve a nação num permanente estado de sobressalto, sempre à espera de novos e novos escândalos que minavam a confiança do povo nas instituições e o induziam a apostar suas últimas esperanças na idoneidade do denunciante, sem imaginar que ele não produzia denúncias senão como elemento de um plano criminoso infinitamente mais vasto e ambicioso do que todos aqueles delitos isolados contra os quais ele incitava a revolta popular. Desviar contra os corruptos vulgares o potencial explosivo dessa revolta, amortecendo ao mesmo tempo o impacto de crimes incomparavelmente mais graves como o respaldo dado pelo Foro de São Paulo aos narcotraficantes das Farc e aos seqüestradores do MIR – mesmo quando atuavam no território nacional, matando brasileiros, treinando quadrilhas de bandidos nos morros, envenenando crianças com cocaína nas escolas –, foi a tática usada numa longa operação de amortecimento da inteligência pública, de modo a torná-la incapaz de perceber os fatos com suas devidas proporções. A recém-descoberta corrupção petista não é a negação dos velhos slogans “éticos” do partido: é a continuação natural deles, já que não foram inventados senão para prepará-la por meio da camuflagem, do diversionismo e da imbecilização planejada.

Os corruptos à moda antiga apropriavam-se do dinheiro do Estado para seus próprios fins particulares. O PT apropriou-se do Estado, usando o dinheiro dele para suas próprias finalidades estratégicas. Os primeiros deixavam o Estado intacto porque viviam dele, alimentando-se das suas sobras. O PT usou o Estado inteiro como alimento, assimilando-o no sentido estritamente fisiológico do termo, isto é, eliminando-o como entidade independente e recriando-o como elemento da sua própria estrutura.

Hoje está claro que a estratégia seguida para isso ao longo das últimas décadas comportava, antecipadamente, planos alternativos:

PLANO A
Dominar psicologicamente a sociedade por meio da tática dos sobressaltos e da chantagem moralista, e em seguida tomar o Estado quando já não houvesse mais resistência exceto suicida.

PLANO B
Se isso falhasse, entregar à execração pública alguns bodes expiatórios e tentar salvar a aura mágica do símbolo Lula para poder recomeçar tudo de novo.

PLANO C
Se isso também falhasse, salvar ao menos a reputação do esquerdismo como tal, apresentando a corrupção petista não como a implementação lógica de uma estratégia de conjunto e sim como uma “traição” aos belos ideais da esquerda, e transferindo para algum partido secundário – escolhido dentre os muitos do Foro de São Paulo — o encargo de posar como nova encarnação da moral e dos bons sentimentos.

O plano A falhou porque Roberto Jefferson aceitou o suicídio como meio de resistência. O plano B está falhando. O plano C está em plena realização. A nova encarnação da moralidade é a sra. Heloísa Helena com o seu PSOL. Até militares patriotas estão caindo no engodo, sem perceber que esse partido é tão sujo quanto o PT, já que tem entre seus mentores nada menos que um terrorista, Achille Lollo, condenado na Itália pelo assassinato de duas crianças, escondido durante décadas por padrinhos poderosos e por fim acolhido no Brasil pelo governo petista – um belíssimo curriculum vitae, que em nada perde para o do agente cubano José Dirceu.

Não por coincidência, escrevi com um ano e meio de antecedência que isso ia acontecer (Jornal da Tarde, 12 fev. 2004), e tudo está acontecendo exatamente como descrevi. O Brasil é de uma obviedade acachapante.

No entanto, tão arraigado é o vício mental infundido na população pela propaganda “ética” petista, que ninguém, hoje, parece perceber a diferença entre casos corriqueiros de corrupção e o crime incomparavelmente maior que o PT praticou e está praticando. O que o PT fez não foi desviar dinheiro daqui e dali para constuir piscinas ou alimentar amantes de deputados. Foi criar um macro-sistema de corrupção destinado a neutralizar oposições, a debilitar a capacidade investigativa do Estado e a confundir a população inteira para fazer dela e da própria máquina estatal instrumentos dóceis a serviço da instauração lenta e anestésica de uma ditadura informal sob o nome de democracia.

Isso não é corrupção. É golpe. É conspiração. É alta traição. Para quem se meteu em empreendimento tão ambicioso, tão perverso, tão maligno, ser acusado de mera corrupção é um alívio. Sempre resta a esperança de que seus crimes sejam nivelados assim aos de um P. C. Farias qualquer, sem manchar a reputação dos “ideais” que os inspiraram e sem estrangular a esperança de que o esquema desmantelado possa ser reconstruído em seguida com outros agentes e outro rótulo partidário.

Intoxicada por meio século de “revolução cultural” que tornou a cosmovisão da esquerda a única referência moral vigente, atordoada pela tagarelice “ética” de duas décadas, a nação parece empenhada em tomar os anéis da elite golpista com todo o cuidado para não lhe machucar os dedos. Dissolvendo a percepção da realidade concreta numa sopa de classificações abstratas inapropriadas à situação, ela colabora para que o criminoso, na mais ousada das hipóteses, seja condenado por um crime menor e saia ileso para tentar de novo o golpe maior.

Um sábio que conheci dizia que o pecado tem três etapas: a ignorância, a fraqueza, a maldade. A presente fraqueza moral brasileira é fruto de décadas de ignorância planejada. Só falta um pouco para que a nação passe à última etapa, aderindo a uma ética de Josés Dirceus e celebrando o maquiavelismo petista como a manifestação suprema e única do bem e das virtudes.

Distância imensurável

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 7 de agosto de 2005

O movimento de idéias no mundo acadêmico americano é tão rico, tão intenso, tão variado, que torna inviável qualquer comparação, mesmo atenuada, com as universidades brasileiras. É a distância intelectual entre Platão e um sagüi. Um jornalista do Rio me conta que, no ano passado, os EUA registraram 50 mil novas patentes de inventos; o Brasil, 270, e, destas, somente doze geradas nas universidades. Inscrito na reunião anual da American Political Science Association (uma só entre milhares de instituições eruditas), leio o programa e noto que em meio século o conjunto do establishment universitário brasileiro não produziu nada que chegue aos pés daquilo, seja em quantidade, seja em importância. A diferença é monstruosa, desproporcional e, vista desde o Brasil, inimaginável.

Cinqüenta anos atrás ainda era possível falar de Brasil e EUA como espécies do mesmo gênero, levadas em direções diferentes pelas circunstâncias históricas. O escritor gaúcho Vianna Moog tentou isso. Reler seu Bandeirantes e Pioneiros, hoje, é ver que as diferenças produzidas nas últimas cinco décadas transcendem infinitamente as que se acumularam desde Cabral até a publicação do livro (1954). Desistam. O abismo que se abriu entre o Brasil e os EUA jamais será transposto. E a culpa disso incumbe diretamente à classe dos professores universitários, que, com as inevitáveis exceções honrosas, abdicaram em massa de seu dever para dedicar-se em tempo integral à produção (financiada com dinheiro público) de desculpas esfarrapadas para os vexames hediondos do seu querido socialismo.

É verdade que nos EUA também muita gente se ocupa disso. Mas há tantos fazendo outras coisas que essa turma desaparece no conjunto. Em todo o programa da APSA, as lágrimas das viúvas de Stalin não ocupam senão um espaço irrisório. E, nos setores onde essas criaturas ainda têm algum prestígio – por exemplo entre os historiadores –, sua estatura diminui dia a dia, esmagada sob toneladas de documentos desmoralizantes que seus críticos não cessam de descobrir. O mais importante desses documentos foi, na década passada, o Código Venona – decifração das mensagens de rádio e telex entre Moscou e a embaixada soviética em Washington. Depois da publicação desses papéis, nenhum historiador profissional pode ter a cara de pau de choramingar contra a “perseguição macartista” dos anos 50. McCarthy jamais acusou um inocente. Ele disse que havia 57 agentes soviéticos no governo americano. Hoje sabe-se que eram mais de trezentos. No Brasil, dizer isso ainda causa escândalo. Claro. O país ficou totalmente à margem de toda uma década de descobertas e debates sobre o assunto. E sobre mil outros assuntos. Por isso, na terra de Macunaíma, quem cite a bibliografia atualizada é acusado de basear-se em “autores desconhecidos”. A obrigação número 1 de um professor universitário brasileiro é jamais humilhar os seus pares sabendo o que eles não sabem. A obrigação número 2 é empinar o narizinho ante quem sabe. Sim, a máxima prova de erudição no Brasil é um nariz-de-cheirar-peido empoleirado num barril de ignorância.

Também é verdade que nem todos, entre os professores universitários brasileiros mais falantes, se declaram abertamente comunistas. Muitos apresentam-se como ex-comunistas, ex-esquerdistas, às vezes como socialdemocratas, e isso lhes dá autoridade bastante para posar de neutros e superiores. Mas a principal manifestação do seu ex-esquerdismo consiste em dar respaldo ao comunismo em todos os fronts culturais – a começar pelo ateismo militante – e em reprimir severamente qualquer veleidade de anticomunismo. Seu “ex-comunismo” é sobretudo uma arma de guerra contra o anticomunismo. São o tipo de ex-militantes que qualquer partido comunista implorou ao diabo.

É por causa dessa gente que o Brasil saiu da história intelectual do mundo, já não servindo senão para abrilhantar com sambinhas estúpidos as festas de franceses bêbados e chamar isso de “cultura”.