Leituras

Fé, ciência e ideologia: o fundo da questão Fedeli

Olavo de Carvalho

18 de julho de 2001

          Nos meus escritos, os termos gnosegnosticismo e heresia gnóstica designam em geral (e guardadas as exceções devidas a eventual negligência) três fenômenos distintos:

Gnose – O conhecimento espiritual em sentido genérico.

Gnosticismo – O fenômeno descrito por Eric Voegelin, que assinala uma continuidade entre as heresias gnósticas dos primeiros séculos da Era cristã e os modernos movimentos ideológicos de massa.

Heresia gnóstica – As seitas gnósticas dos primeiros séculos do cristianismo.

          Já o sr. Orlando Fedeli usa os três termos para designar um só e mesmo fenômeno. As heresias dos primeiros séculos, o hinduismo, o budismo, o judaísmo, o islamismo e as ideologias modernas – tudo, para ele, são partes ou aspectos de uma mesma entidade, braços de um mesmo monstro: a Gnose, gnosticismo ou heresia gnóstica, religião do diabo.

          Para legitimar esse uso do termo, ele usa da definição geral de gnose aceita por alguns estudiosos, mas dando-lhe uma aplicação que vai muito além do que qualquer deles jamais admitiu e que implica dar foros de verdade científica à hipótese de uma universal conspiração gnóstica contra a Igreja Católica, reunindo budistas, comunistas, muçulmanos, judeus, hinduístas, nazistas, gnósticos no sentido antigo e, evidentemente, eu.

          Nem Hans Jonas, nem H.-C. Puech, nem Hans Urs von Balthasar, nem Voegelin, nem qualquer outro estudioso, por mais ampla que fosse sua definição de gnose, jamais a usou para sustentar essa hipótese, a qual aliás nem sequer mencionam porque, mais que à história, ela pertence ao domínio da psicopatologia.

          É o sr. Fedeli que faz dela esse uso, fingindo escorar-se na autoridade desses eruditos. Mais ainda: fingindo que semelhante uso é universal, consensual e indisputado.

          A origem da doutrina fedeliana da gnose, com efeito, não está em nenhuma dessas fontes, mas numa outra, bem pouco acadêmica: está na teoria da Revolução e Contra-Revolução do dr. Plínio Corrêa de Oliveira, segundo a qual só há duas correntes históricas no mundo, a revolucionária e a católica. Esta abrange os que interpretam o catolicismo no sentido estrito da TFP; aquela, todos os demais seres humanos, descontados os inocentes úteis e inúteis. Absorvendo a teoria ao mesmo tempo que renegava o autor — com quem competira em vão pela liderança da TFP –, o sr. Fedeli simplesmente trocou o termo “revolucionário” por “gnóstico”, mas nada acrescentou de substancial à concepção de seu primeiro mestre e posterior bête noire.

          A única diferença é que o dr. Plínio, um aristocrata de temperamento, não desceria a bravatas pueris na defesa da sua teoria, por mais absurda que fosse; ao passo que o sr. Fedeli, que tudo quanto sonhava na vida era ser o dr. Plínio quando crescesse, infelizmente não cresceu.

          No conteúdo, a idéia de ambos é a mesma.

          A hipótese aí contida é tão ampla, que ela não pode ser provada nem impugnada no prazo de uma vida humana ou de infinitas vidas humanas. Cientificamente, ela é por isso mesmo inaceitável. Fatos inumeráveis não lhe darão consistência, refutações sem fim não a farão recuar. Ela é uma escolha, um ato de fé, que o sr. Fedeli, abusivamente, procura confundir e identificar com a própria fé católica, de modo a poder condenar como herético quem quer que, na sua divisão dualista do mundo, não cerre fileiras com ele — ou com o fantasma do dr. Plínio — no seu combate contra tudo o mais. Isto implica, naturalmente, estender sobre todos os “gnósticos”, no sentido amplíssimo do termo, a acusação de heresia que a Igreja fez pesar sobre os gnósticos dos primeiros séculos. Mas isto já não é teoria: é loucura.

          O sr. Fedeli tem todo o direito de defender sua idéia, mas nem mesmo a alegação de insanidade lhe dará o direito de sugerir ou insinuar que ela corresponda a alguma cláusula do dogma católico tal como definido pelos Papas e Concílios. Nenhum Papa ou Concílio subscreveu jamais essa doutrina. Nenhum jamais afirmou a identidade substancial de todas as espiritualidades não-cristãs com a heresia dos primeiros séculos, identidade que, para o sr. Fedeli, é a verdade das verdades.

          Abusando das fontes científicas que cita, abusando da fé católica em cujo nome acusa e condena, o sr. Fedeli não faz senão impingir a seus discípulos um catolicismo de sua própria invenção – dele ou do dr. Plínio Corrêa de Oliveira.        

          Não correspondendo, no conteúdo, à doutrina da Igreja, nem na forma àquilo que se entende por teoria científica, a doutrina dualista da Revolução e Contra-Revolução, seja na sua versão originária, seja na sua adaptação fedélica, não é nem religião nem ciência: é ideologia, no sentido estrito do termo.

          Daí o atrativo que exerce sobre jovens que buscam, não o conhecimento, nem a purgação de seus pecados, mas uma causa – uma causa em nome da qual possam, sem o mínimo abalo de sua boa consciência, mentir e pecar.

          Avaliado pelos critérios dessa ideologia, devo ser efetivamente um gnóstico e um herético, mas não vejo que importância possa ter isso desde o ponto de vista de uma Igreja e de uma ciência que ignoram solenemente o sr. Fedeli, o dr. Plínio e as idéias de ambos.

          Todos os esforços que Fedelis e fedelhos façam para provar a acusação que me imputam são aliás desnecessários e redundantes, visto que ela já está provada ex hypothesi nos termos mesmos que a enunciam, sendo “gnósticos” por definição todos os que, rejeitando o dualismo absoluto de Revolução e Contra-Revolução, não se alinhem resolutamente com esta última no sentido em que a entende o sr. Orlando Fedeli – coisa que, de fato, não posso fazer.

          Custei um pouco a entender isso, pois, partindo da crença espontânea na normalidade de meus interlocutores, com total boa fé, não atinei senão aos poucos com a lógica circular em que se baseava sua argumentação, irrefutável porque psicótica.

          E não pensem que com isso eu esteja proferindo um insulto. Atenho-me ao terreno científico, reconhecendo com estrita objetividade, no argumento fedélico, aquela estrutura circular, fechada e autoprobante que, segundo o clássico estudo La Fausse Conscience, de Joseph Gabel (um judeu! que horror! um gnóstico!), é a marca inconfundível e comum do discurso ideológico e do discurso psicótico.

          Assim, não vejo por que prosseguir esta discussão. Contento-me em não ser um gnóstico na acepção tradicional e voegeliniana do termo. Se o sou ou não no sentido especial que a coisa tem no mundinho fechado da seita montfortiana, é um problema com o qual o sr. Fedeli e seus meninos, que já perderam por mim tantas noites de sono, podem perder todas as que lhes restem. Isso não será jamais da minha conta.

Psicanálise e marxismo: aliança sinistra

Pedro Paulo Rocha

14 de julho de 2001

Prezado Sr. Olavo de Carvalho,

A conexão entre psicanálise e marxismo está muito presente em eventos que uns realizam, no Brasil, uns com o apoio dos outros. Submeto-lhe uma abordagem que fiz do problema:

A estupidez dos métodos psicanalíticos se reflete na orientação prescrita pelo Dr. Bruno Bettelheim, em seu livro A Fortaleza Vazia:

“Não a levávamos ao banheiro várias vezes ao dia, como fora costume em casa. Encorajamo-la a defecar a vontade, estivesse onde estivesse.” E acrescenta: “Laurie urinou quando se encontrava sentada no colo de uma terapeuta. Como aquela não se importasse e até se mostrasse satisfeita, ficou muito feliz. A partir dai urinava com freqüência no colo das conselheiras, com prazer evidente.”

Além de deseducar a paciente, ainda vai mais longe: estimula a nojenta manipulação das fezes pois, segundo ele, “certamente a defecação pode constituir um presente que a criança dá à mãe”. Relata ele que “Laurie tornou-se mais ativa e ousada na manipulação das fezes, espalhando-a pelo corpo e pelas mãos” e prossegue “Ao retirar as fezes das suas calças, adquiriu uma certa liberdade na sua manipulação.” O objetivo declarado era permitir ao paciente a distinção entre o “eu” e o “não eu”.

Esse inacreditável tratamento foi aplicado ao autista X, filha de Ana Luzia, pela psicanalista M. Eugênia, então no Instituto Santa Úrsula. O menino era estimulado a brincar com suas fezes, que espalhava pelo corpo, pelo chão e pelas paredes, numa cena tétrica, sob um fedor nauseabundo. É o que poderíamos denominar, com inteira propriedade e em todos os sentidos de “uma terapia de merda”.

 Numa outra prática terapêutica, usada em algumas instituições psiquiátricas americanas, para tratamento de criminosos sexuais, “o agressor precisa gravar uma fita narrando suas fantasias sexuais, enquanto se masturba, esfregando um líquido no pênis, de modo que o médico possa ouvir a masturbação na fita. Numa segunda gravação ele narra fantasias impróprias, depois de ter descrito as fantasias consideradas normais.” (* Matthew Stadler, O agressor Sexual.)

 Um dos mais tenebrosos fiascos da psicanálise foi a terapia da impotência sexual, um problema que atinge nove milhões de brasileiros segundo estimativa do Centro de Estudos da USP. Durante muitos anos foi impingida a idéia de que o impotente fosse vítima de frustrações e traumas, que supostamente bloqueavam emocionalmente sua libido Em 1910, em Leiden, Freud psicanalisou o compositor Gustav Mahler, que era impotente. Como sua esposa se chamava Alma, e sua mãe, Maria Alma, tinha o mesmo nome, Freud chegou a fantástica e hilariante conclusão, devido à esta coincidência de nomes, que seu problema era de fundo edipiano, resultante de uma fixação em relação a mãe.

— Tenho casos em que o paciente passa anos no divã e continua impotente, pois o problema é orgânico – afirma o prof. Faud Al Assal.

Durante um Simpósio Internacional sobre Andrologia, realizado em Palma de Mallorca, Espanha, em 1988, os especialistas concluíram que a impotência masculina afeta pelo menos 10% dos homens e tem solução em mais de 90% dos casos. Segundo trabalhos atuais, são decorrentes principalmente de diabetes, lesões cerebrais ou medulares, arteriosclerose, alterações artério-venosas que impedem a retenção do sangue efeitos colaterais de medicamentos, uso prolongado de álcool ou drogas, redução de testosterona, o hormônio masculino, ou ainda por acidentes traumáticos. A correção tem sido obtida por microcirurgia vascular, medicação hormonal, vaso dilatadora ou de estímulo à circulação e por implante de próteses. Que longo e tortuoso caminho se percorreu para se chegar ao óbvio!

 Mas e os milhares de pacientes que melhoraram, segundo estudos estatísticos apresentados? É que a corrida entre o efeito iatrogênico da psicanálise, ou seja, o agravamento do paciente pela terapia, e o tempo que se encarrega de fazê-lo esquecer ou superar os seus problemas, quando eles são puramente emocionais, freqüentemente é ganha pelo segundo. De fato, se 30% daqueles que, tendo se defrontado com problemas emocionais, melhoraram recorrendo à psicanálise, um percentual bem maior alcança resultados mais efetivos recorrendo à Psiquiatria científica ou mesmo sem qualquer tratamento. Acrescente-se o fato de que, em toda terapia existe um fator subjetivo considerável. Qualquer bom profissional sabe que, tão importante quanto a sua prescrição, é a confiança que souber inspirar ao paciente, porque é inegável que “a fé move montanhas”. Portanto, quem tem problemas apenas superficiais e acredita em psicanálise, certamente se beneficiará deste tipo de terapia. O mesmo se aplica, indistintamente, à religião, macumba, água benta, despachos, promessas, rezas, etc., como foi mostrado, de longa data, pelo Dr. Mesmer, que ficou famoso no século XVIII, com seus métodos esotéricos, descritos por Ste-phan Zweig, em seu livro Mesmer. Eu, sinceramente, diante de tantas alternativas, preferiria a macumba, que pelo menos, é mais folclórica. Pois esta é uma influência relativa e meramente subjetiva, que apenas dá “apoio” para uma recomposição emocional. Nenhum paciente se curará de uma sífilis que não recorrer a um antibiótico.

As posições extremadas, que eles assumem, no Brasil, chegaram às raias do absurdo, com a Lei Delgado. O propósito desta esdrúxula Lei é “uma política de extinção progressiva dos manicômios com a sua substituição por alternativas assistenciais”, a pretexto de “resgatar a cidadania” (a frase da moda!) dos pacientes e supondo, utopicamente, que as suas famílias pudessem suportar a pressão desestruturante de mantê-los em casa. Esta proposta, que foi antecipadamente incluído em muitas Leis Orgânicas, entre outras aberrações, determina taxativamente que: “O paciente não deverá receber nenhum tipo de tratamento sem o seu consentimento por escrito ou de pessoa de sua escolha, obtido livremente, sem ameaças e após discussão sobre a natureza da doença e sobre a natureza, objetivo e duração do tratamento.” (Art. 363 inciso VIII par. 3o. da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro.)

 Como era de se esperar, houve uma forte reação das famílias dos doentes mentais, que seriam diretamente prejudicadas pela medida, que se organizaram numa Associação Comunitária e passaram a promover manifestações e protestos através dos periódicos.

 Com o objetivo de anular estes protestos e criar a ilusão de que a sociedade ambicionava a aprovação da Lei Delgado, a máfia organizou um evento que foi designado II Conferência de Saúde Mental que, no Rio de Janeiro, teve lugar no Campus da UERJ, no segundo fim de semana de outubro de 1992. O propósito declarado era submeter ao Congresso Nacional um relatório com diretrizes neste sentido, aprovadas pela Plenária “democraticamente” eleita. Tão democrática, que as tais Diretrizes que já estavam previamente redigidas.

 Num assunto em que deveria prevalecer a sensatez, sob os delirantes aplausos de uma platéia constituída pela nata do PT, partido do autor daquele projeto de lei, assistia-se à cena surrealista de dezenas de “insensatos”, pacientes do Centro Psiquiátrico Pedro II, Pinel e Instituto de Psiquiatria, conduzidos em ônibus especiais, votarem as propostas, sob a inacreditável argumentação de “eram eles que deveriam decidir sobre o próprio destino, na defesa de suas cidadanias”. E eu, abismado com a contemplação da longa fila de loucos, alguns dos quais vociferando palavras desconexas, levados a deliberar sobre assunto tão sério, ficava na atroz dúvida de quem seria mais doido: se aqueles que haviam assim sido rotulados, ou os que patrocinavam idéias e procedimentos tão bizarros. Dentro deste espírito, de que a doença mental seria decorrente de efeitos sociogênicos, ou seja, provocados por problemas sociais, do relatório constou, expressamente: “Não existe tratamento psiquiátrico que não possa acontecer em regime ambulatorial. Mais recentemente, as contribuições das escolas sociogênicas – com Caplan, Zasz, Bateson, etc, e psico-socio-políticas – com Basaglia, Guatari e outros – … valorizaram a determinação social das doenças e dos tratamentos.” O relatório era tão radicalmente político, que incluía, repetidas vezes, expressões tais como “Fora Collor”.

 Durante os debates, no qual não admitiram que eu participasse da mesa, como representante da APARJ, uma associação de pais e amigos de crianças autistas, que eu criara e dirigia, sob a esdrúxula alegação de que eu não era doente mental.

A minha proposta de que se desse ênfase à prevenção, sob os apupos petistas, foi fragorosamente derrotada, por ser “eugênica” e “nazi-fascista”. Afinal, como alegavam os profissionais, talvez não querendo perder a clientela, “os loucos são pessoas louváveis e dignas, e seria preconceito querer que eles não existissem”.

 E diante da minha argumentação, de que era muito fácil falar em coabitar com um louco, porque não eram eles que viviam o problema, e que “pimenta nos olhos dos outros é refresco”, para dar mais ênfase a estas propostas exóticas, apelaram para a afirmação de que eu, certamente, era o tipo de pessoa que “odiava e discriminava os loucos”. O que inflamou a turba de dementes.

Que resposta devo dar à mãe do Guilherme, uma viuva já idosa, cujo filho recebeu alta do Centro Psiquiátrico Pedro II, e que é por ele espancada quase que diariamente, quando ela me pede ajuda? Ou que devo sugerir à Solange, que foi obrigada a construir praticamente uma jaula, onde seu filho adolescente e forte, tem que ser contido para não atacar a mãe e os irmãos menores? Por que a institucionalização continua a existir, para aqueles como Jesus, que pode pagar os altos valores para manter seu filho sob os cuidados de especialistas, em Tiradentes. Mas para quem não pode pagar, o que resta fazer? Recorrer à um recurso extremo, como Jorge e Olívia, que foram obrigados a autorizar a lobotomia do Marcelo, depois das repetidas agressões a familiares e vizinhos, a última das quais por pouco não resultou em morte da vítima inocente?

É verdade que o número de internos tem diminuído acentuadamente. Porém isto não se deve a estas novas diretivas, mas ao enorme arsenal de psicotrópicos que a indústria farmacêutica criou, nas últimas décadas, que se não permitem a cura, pelo menos possibilitam o controle dos surtos dos pacientes. Recursos medicamentosos que estes psicanalistas chamam com desprezo de “camisa de força química”. (os nomes citados foram, evidentemente, trocados, para preservar a privacidade dos envolvidos).

Pedro Paulo Rocha
pedroprocha@netpar.com.br

Direito Sinistro

Diógenes Coimbra

14 de julho de 2001

“O Sancta simplicitas! Em que mundo mais estranhamente simplificado e falsificado vive a humanidade! É infinito o assombro diante de tal prodígio.”

 NIETZSCHE

ALÉM DO BEM E DO MAL

     A busca pelas essências, norteada por métodos que se exigiam rigorosos, constituiu, desde o dealbar da filosofia ocidental, o cerne de todo pensamento racional.  “Uma lei constitutiva da mente humana, todavia, parece conceder ao erro  — lembra o eminente filósofo Olavo de Carvalho — o privilégio  de poder ser mais breve do que a sua retificação”. [1]

      Desse modo, o professor Roberto Lyra Filho, em seu opúsculo “O que é Direito”, consegue lançar o leitor incauto, na exígua extensão de menos de uma centena de pequenas páginas,  ora num indestrinçável emaranhado de conceitos lassos, ora num paul de sofismas sorrateiros. Fazendo-se valer dos mais avelhantados lugares-comuns do marxismo, o autor procura, nesse panfleto, menos conceituar de modo preciso o fenômeno jurídico, que reputa tarefa de fácil labor, do que desanuviar da realidade as brumas que a encobrem.

      A tese lyriana, com efeito, deixa-se cingir por reduzidas e retumbantes linhas, a saber: uma classe dominadora serve-se do Direito para manter a dominação sobre outra classe, a dos espoliados — em que desce a porrada (sic) toda vez que as leis não resolvem o caso. Esse Direito espúrio origina-se e assenta-se em leis naturais, de cunho metafísico — e, se metafísico, ideológico e falso —, a partir das quais, num estágio posterior de usurpação do poder, a burguesia irá formular leis positivas, que, contraditoriamente àquelas naturais, tenderiam a preservar o status quo da classe burguesa, a qual não dá a menor bola (sic) para os dominados. A tal classe espoliada, sem ter um estalão crítico (sic), vai tendo que engolir estes e outros sapos (sic), o que constitui, não há negar, grande sacanagem (sic), uma vez que os dominadores só os pegam com as calças arriadas (sic). Relevado o estilo simplório — afinal, de gustibus et coloribus disputandum non est —, eis a síntese do pensamento lyrista. Por fim, fechando a fenda aberta com agigantada pedra filosofal, conclui que  “o Direito não ‘é’; ele ‘vem a ser’”, afinal, de acordo com fina ontologia, “nada é, num sentido perfeito e acabado; que tudo é, sendo”.

      O leitor apressado pode querer ligar essas ralas alusões metafísicas àqueloutras do Estagirita, mas a conexão é impossível, o abismo, instranspulável. Mais provável é estarem assentes as bases da metafísica lyrica — da qual tenta a todo custo livrar-se, a fim de cumprir os ditames do catecismo marxista — no solo palúdico do chauísmo.  A origem não seria despropositada. A senhora Chauí, pessoa tão íntima do autor — di-lo, na dedicatória, sua colega, sua irmã, sua amiga — não poderia ter obtido tão veneranda admiração sem que igual influência não houvesse exercido sobre ele. Senão, veja-se a teoria ontológico-marilênica:

“O real não é constituído por coisas. Nossa experiência direta e imediata nos leva a imaginar que o real é constituído por coisas (sejam elas naturais ou humanas), isto é, de objetos físicos, psíquicos, culturais oferecidos à nossa percepção e às nossas vivências.” [2]

      Não explica a autora de que método ou sortilégio valeu-se para alterar a composição íntima da matéria, objetivo tão almejado pelos alquimistas. Na terminologia do senhor Lyra, valendo-se de uma espécie de mágica besta (dir-se-ia melhor: dialética canhestra), D. Marilena fundiu, refundiu e confundiu as categorias de substância e de paixão [3] — claras para qualquer leitor iniciante do aristotelismo. Transforma, com isso, a constituição essencial do ser em meros acidentes seus, de molde que o pau-de-segurar-a-barraca-do-circo perde por encanto sua substância de pau, uma vez que o mero acidente de ser mastro de circo, de galeão espanhol ou trave de campo de futebol modifica sua substância de paulidade. Para empregar, mais uma vez, o estilo lyrico-chauíno: chutaram o pau-da-barraca.

      Não menos místico é o tour de force que faz eqüivaler, por um lado, causa final, inteligência contemplativa e classe dominante, e, de outro lado, causa eficiente, inteligência prática e classe dominada. Transpondo os limites da argumentação lógica, conclui com esmero:

“temos, portanto, uma teoria geral para a explicação da realidade e de suas transformações que, na verdade, é a transposição involuntária para o plano das idéias de relações sociais muito determinadas. Quando o teórico elabora sua teoria, evidentemente não pensa estar realizando essa transposição, mas julga estar produzindo idéias verdadeiras que nada devem à existência histórica e social do pensador.” [4]

      Não sendo possível atingir o grau de iluminação, aparentemente próprio dos adeptos deste método engenhoso, que permite chegar ex nihilo a conclusões e mesmo a teorias gerais tão abrangentes e revestidas de alto grau explicativo e probante, fique-se com as dúvidas, bem expressas, a propósito, por Olavo de Carvalho:

“Se um homem está pensando sobre fenômenos da natureza física, como se explica que o interesse de classe, tão alheio ao assunto de seus pensamentos, se imiscua neles e acabe por determinar o seu curso, de maneira até mais decisiva do que o objeto sobre o qual discorrem? Como será que, pensando por exemplo na embriologia dos gatos ou na lei de queda dos corpos, posso produzir um discurso que, no fim das contas, nada diz sobre gatas prenhes ou bolas que caem, mas apenas afirma o direito que minha classe social tem de viver no bem-bom à custa da exploração das outras classes? Como se dá, enfim, a “transposição inconsciente”? Que processos psíquicos, lingüísticos, neurológicos, determinam que todo teórico do que quer que seja nunca saiba precisamente do que está falando, mas sempre, imaginando falar de animais, de mares, de montanhas, de pedras ou de anjos, esteja sempre falando de outra coisa, sem ter disto a menor idéia? Por quais mecanismos causais se produziu esse monstruoso fenômeno do equívoco universal, do qual veio libertar-nos D. Marilena?”

      Frise-se que tais ponderações não são absolutamente despropositadas, porquanto nada mais legítimo do que o perguntar ao teórico das bases de seu sistema. Se o autor de “O que é Direito” não no diz, busque-se algures, porque a ninguém se pede aceitar  sem mais algaravias alheias.  Não diz o autor em que fonte foi limpar-se das impurezas do mundo burguês, de modo que retorna de tão imaculada fonte com olhos límpidos, capazes de vislumbrar por entre a baça neblina das ideologias a verdadeira realidade das coisas.

      Há de bom grado supor-se que o autor conheça os membros constituintes dos conjuntos dos dominadores e dos dominados, dado que os cita a mais não poder. Ao contrário do que se espera de um escritor intelectualmente honesto, não se fica a saber, ao fim e ao cabo, quem integra aqueles conjuntos. A saber não se fica, tampouco, em que categoria incluir o egrégio professor universitário que por sextuplicados lustros lecionou tantos e tão abastados jovens, sob o amparo generoso do erário, e, ainda post mortem, viu seu nome homenageado por pupilos uspianos em publicação universitária, de novo a expensas do dizgraziatto Estado liberal-burguês. Bem de se ver que os conceitos e categorias que vestem o discurso do Doutor Lyra correm mesmo à frouxa, deles não se extraindo nenhum conhecimento da realidade nem sequer do fenômeno jurídico.

      Doutor Lyra, ademais, pressupõe a dialética de Marx, com Aufhebung de ponta-cabeça incluída, como critério científico para alcançar conclusões apodícticas, mas não lembra que tal método, ou antes, artifício sofístico, nada tem de científico nem muito apresenta conclusões verdadeiras. A esse respeito, bem observa Eric Voeglin que

“Hegel debate se a realidade empírica é apenas um fluxo ou se tem uma ordem; como filósofo, tem de discernir entre a fonte de ordem e os elementos que nela não cabem. A dialética da Ideia é a sua resposta a este problema. Mas Marx abole o problema filosófico da realidade precisamente antes de praticar a inversão; não inverte a dialéctica: recusa-se sim, a teorizar.”

      Seguindo, pois, as profecias de seu visionário guru, o Doutor Lyra emprega igualmente o mesmo estilo oblíquo, eivado de lugares-comuns, verdadeiros bondes do transporte intelectual, como diria Ortega y Gasset, valendo-se mais de maleabilidades metafóricas que de assertivas precisas, a fim de ocultar em imagens o que não ousa expor em conceitos. Destarte, ao em vez de considerar o marxismo, e o comunismo que dele deriva, como corrente ideológica sobre cujas bases se erigiram os movimentos mais sanguinários de que já se teve notícia na face da terra, prefere referir-se a tais movimentos como traição à causa, todas as vezes em que, como na Revolução Bolchevique de 1917, o poder se “deitou na cama (estatal) e dormiu sobre o colchão de instituições domesticadas, acordando assustado toda vez que algum socialista herege e contestador berrava que ali (ou na casa do vizinho) havia algo de errado”. O expediente usado é antigo, embora haja ainda quem dele se engane. Vejo meus colegas de curso sob o fetiche das dulcíssimas propostas marxistas. Nada menos estranhável, já que recém deixados o secundário, durante o qual foram exaustivamente catequizados pela cantilena dos livros marxistas. Agora, levados pelo encanto de mais elevados estudos, encontram guarida no discurso melífluo dos acólitos do Direito Alternativo. Escusado o trocadilho, cito Catão: Fistula dulce canit dum Lyra dulcisono carmine prodit aves (A flauta toca suavemente, enquanto o doce som do Lyra engana os pássaros — com a devida adequação).

      Com efeito, o que disse Voeglin de Marx, diga-se também de seu pupilo brasileiro:

Marx criou um meio específico de expressão: quando atinge um ponto crítico, apresenta metáforas que forçam as relações entre termos indefinidos como se viu no já citado passo do Prefácio, p.xvii “o ideal nada mais é que o material transformado e traduzido na cabeça do homem”. Seria uma afirmação brilhante se condensasse numa imagem o que já fôra dito de modo crítico. Mas o problema é que não existe esse contexto crítico. O que é “pôr na cabeça”? É milagre fisiológico? Actividade mental? Acto cognitivo? Processo cósmico?”

      Finalmente, não há senão concluir que a obra do professor Lyra segue à risca os mandamentos de seu outro mestre, Antonio Gramsci. De fato, intelectual orgânico par excellence, o autor do panfleto “O que é Direito” mais procura convencer pelo expediente propagandístico, valendo-se daquele princípio da economia do erro acima aludido, que pelo confronto direto de argumentos, bem ao gosto grasmsciano que exige “que toda atividade cultural e científica se reduza à mera propaganda política, mais ou menos disfarçada”, bem recorda Olavo de Carvalho. Não engenhou obra de filosofia do Direito ou de sociologia jurídica, senão que buscou convencer ad baculum et populum da necessidade de se construir uma nova sociedade que venha a comportar a vaga idéia de direito apresentada. Contra as teses lyricas já advertia Ortega y Gasset: “No vazio social não há nem pode nascer direito. Este requer como substrato uma unidade de convivência humana, da mesma forma que os usos e costumes, dos quais o direito é o irmão mais novo, porém mais enérgico”. [5]

      Diga-se uma vez mais: “O que é Direito” não é obra de filosofia do Direito nem de qualquer outra matéria que se repute científica, senão objeto de propaganda político-ideológica, posto o aspeto formal que lhe emprestam o estarem as palavras organizadas e impressas em formato de livro, e encimadas por título que o apresenta com vestes de seriedade.

NOTAS


[1] A Nova Era e a Revoulução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci, Rio, IAL & Stella Caymmi, 1994.

[2] O Que é Ideologia? (São Paulo, Brasiliense, 31a. ed., 1990).

[3] Tópicos, 103  b  20.

[4] idem, p. 10.

[5] A Rebelião das Massas, São Paulo, Martins Fontes, 1987.

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