Leituras

Mensagem do sr. Fedeli, através de um seu menino-de-recados

Olavo de Carvalho

12 de julho de 2001

Esse menino, Felipe Coelho, andou freqüentando meus cursos e ali cumpriu seu papel de alcoviteiro a serviço de seu guru Orlando Fedeli, acreditando que com isto alcançaria a salvação da alma. Por isto julguei conveniente publicar aqui mais esta sua fofoca eletrônica, distribuída em 15 de julho de 2001 a seus ex-colegas doSeminário de Filosofia. Não imagine o leitor que o signatário entre na peleja como alguém que, tendo-a observado de longe e com neutralidade, finalmente toma partido. Se fosse isso, sua opinião poderia até valer alguma coisa, e essa é a impressão que ele talvez procure dar aqui, mas desde o início este garoto foi o principal instrumento de ação do sr. Fedeli, tendo na sua folha de serviços alguns notáveis feitos de difamação bem conhecidos de seus ex-colegas. Sem grave imprecisão ele poderia até declarar: “Orlando Fedeli, c’est moi.” Esta mensagem, de fato, não é a primeira. É apenas a seqüência do renitente assédio de e-mailscom que os agentes do sr. Fedeli cercam meus alunos, a mando dele, no intuito declarado de tirá-los do Seminário de Filosofia e levá-los àquilo que ele imagina ser o céu. O empreendimento não obteve grande êxito, pois só foram para os braços do sr. Fedeli os dois ou três que tinham vindo de lá. Durante um tempo representaram o papel de meus alunos só para depois poderem encenar uma “ruptura” escandalosa. No ambiente de cursos livres, em São Paulo, “operações” desse tipo são coisa endêmica, mas, por mais que as veja repetir-se desde a década de 70, não me acostumo com elas, e sempre me pegam desprevenido. Segue, pois, a amostra, com alguns comentários meus em vermelho. – O. de C.

Carta aberta de um ex-aluno a Olavo de Carvalho, sobre sua gnose

Felipe Coelho

Enquanto meu professor, Orlando Fedeli, não comenta o último protesto do Sr. Olavo de Carvalho contra a denúncia de sua gnose, eu, Felipe Coelho, Católico, ex-aluno deste último, comentarei brevemente alguns pontos de sua tentativa de resposta, entitulada “Mais um golpe de teatro do charlatão Orlando Fedeli”.

O texto do Prof. Orlando Fedeli, como o próprio título indica, não trata apenas do Sr. Olavo de Carvalho, mas também de René Guénon, de modo que o Sr. Olavo não deveria ter ficado tão lisonjeado com sua extensão. O que o Prof. Fedeli de fato fez foi aproveitar a deixa para dar uma mini-aula de gnose, a partir dos “quatro itens da gnose” do “Aviso 2” do Sr. Olavo, com o objetivo principal de esclarecimento dos alunos deste que porventura sejam ou possam vir a ser Católicos.

A incapacidade de distinguir sentido reto e oblíquo é característica do leitor enlouquecido pelo ódio e pelo medo. A lisonja a que me referi foi dita cum grano salis, mas a sutileza escapou tanto a Fedeli quanto ao fedelho.

Acrescente-se ainda uma citação do próprio Sr. Olavo de Carvalho corroborando este procedimento: “Não discuti com eles em meu livro nem vou fazê-lo agora, porque vigarice (intelectual ou qualquer outra) é coisa que não se discute: vigarice se denuncia, e pronto” (Olavo de Carvalho, “Por uma Esquerda Melhorzinha”, inO Imbecil Coletivo, 2ª ed., Rio de Janeiro, Faculdade da Cidade, p. 390). Foi o que fez o Prof. Fedeli: desafiado, denunciou e provou a gnose de Guénon e Carvalho.

Chegamos assim ao cerne da questão: afinal, do que o Sr. Olavo de Carvalho está sendo acusado? É óbvio que não é de ser um seguidor das doutrinas de Valentino, Basílides, do gnosticismo dos primeiros séculos.

Há aí duas definições da Gnose. Uma, a do gnosticismo dos primeiros séculos, corresponde a um fenômeno histórico definido e a uma heresia condenada pela Igreja. A outra, a de uma Gnose em sentido amplíssimo que abrange praticamente todas as expressões espirituais e religiosas não cristãs (e mesmo as cristãs que apresentem algum parentesco mesmo remoto com elas), é um conceito interpretativo possível, mas a Igreja nem subscreve esse conceito nem emitiu jamais qualquer decreto que condenasse como herética a entidade hipotética aí definida. Logo, sou acusado de que?

(Um terceiro conceito possível de gnose é o de Voegelin. O gnosticismo ou gnose, aí, corresponde a um fenômeno histórico contínuo, especificamente ocidental, cuja evolução se estende desde o gnosticismo dos primeiros séculos até as ideologias totalitárias do século XX. Este conceito, que me parece o único razoável, obviamente exclui do âmbito da gnose-heresia as tradições orientais que o sr. Fedeli nela inclui.)

O próprio estudo do Prof. Fedeli mostra a gnose presente no sufismo, na cabala, no hinduísmo, e em vários autores de diversas origens apontados pelo Sr. Olavo como grandes homens espirituais, ficando claro portanto que a acusação não é de pregar a heresia cristã dos primeiros séculos.

Sempre a confusão entre a “presença” de elementos soltos e a identidade da forma total.

A insistência do Sr. Olavo neste ponto tão evidente é no mínimo estranha. É óbvio também que não se trata de “gnose” como mero sinônimo de “conhecimento”, pois neste caso não haveria razão para se utilizar o primeiro termo em vez do segundo.

Falsificação do sentido de minhas palavras. Uso em geral gnosepara designar o conhecimento especificamente espiritual e não como sinônimo de conhecimento em geral; e gnosticismo para designar o fenômeno apontado na definição de Voegelin. Quando quero me referir ao gnosticismo dos primeiros séculos, uso mais freqüentemente “heresia gnóstica”. Se o sr. Fedeli e seu fiel escudeiro consentissem em interpretar meus termos no sentido que estes têm nos meus textos, e não naqueles que sua própria imaginação projeta sobre eles, tudo ficaria mais claro. Mas isso não serve para quem só pretenda jogar lama na água e tirar proveito da confusão.

A gnose de que o Sr. Olavo de Carvalho é acusado é uma modalidade de conhecimento específica: trata-se da doutrina herética do conhecimento direto e unitivo de Deus pelo homem – ou melhor, por aquilo que haveria de divino no interior do homem -, realizado por meio de uma intuição que eliminaria a distinção entre sujeito cognoscente e objeto conhecido – entre o homem, o mundo e Deus -, pois no fundo só Deus existe, e tudo que há de individual é ilusório.

É absurdo o Sr. Olavo querer dizer que Santa Teresa tinha este tipo de conhecimento de Deus quando lhe aparecia Nosso Senhor. É claro que, ao vê-Lo, ela permanecia Teresa, e Ele, Jesus.

Ora, se citei o exemplo da visão de Sta. Teresa é porque é precisamente esse tipo de conhecimento que tenho em vista ao falar de gnose, e não algum outro tipo de “conhecimento unitivo” hiperbólico e, a rigor, autocontraditório, que não sei onde esse moleque pode ter encontrado nos meus escritos (a não ser que ele confunda o tipo de conhecimento a que me refiro em meus estudos de gnoseologia — como por exemplo “Ser e Conhecer” — com o conhecimento de Deus! Mas isto já seria loucura demais.) Na verdade, essa noção hipertrófica de conhecimento unitivo não se encontra nem mesmo na linha mestra do sufismo, a de Mohieddin Ibn Arabi, metafísico “da unidade absoluta” que, no entanto, proclama claramente que no ápice de todo conhecimento unitivo subsiste a dualidade do fiel e de seu Senhor, unidos tão somente pelo vínculo do amor. Exatamente como na visão de Sta. Teresa. Se essa visão é chamada “unitiva”, é no preciso sentido em que aqueles que se unem pelo amor são um só embora permaneçam existencialmente distintos. Tal é o motivo pelo qual, aliás, Teresa nesse instante diz a Jesus (não lembro se são precisamente as palavras textuais): “Tu és Aquele que é – eu sou aquela que não é” – declaração que afirma, ao mesmo tempo e inseparavalmente (“dialeticamente”, para horror do sr. Fedeli), a dualidade de criatura e Criador e a nulidade da criatura ante o Criador. Não há rigorosamente diferença nenhuma entre essa perspectiva e a de Ibn ‘Arabi, embora haja muita entre ambas e uma perspectiva gnóstico-herética (real ou suposta) na qual a “unidade” fosse interpretada como “identidade”.  

Mas, como o Coelhinho só conhece do sufismo o que lhe diz o sr. Fedeli, é possível que ele imagine que o sufismo é outra coisa.

(Num outro documento, o sr. Fedeli, querendo por toda lei lançar a pecha de herético sobre o esoterismo islâmico, reduz este ao ismaelismo, que é apenas uma seita dentro de uma seita (isto é, do shi’ismo) e nada tem a ver com as ordens sufis tradicionais, que o condenam explicitamente. Mas isto é assunto para outra ocasião.)

Quanto ao demônio, conhece apenas a existência de Deus, não suaessência, e como se viu acima é justamente a essência de Deus que os gnósticos pretendem conhecer.

Curioso. Então por que no sufismo o hadith do Profeta, “Meditai as qualidades, jamais a essência”, é considerado uma regra áurea da prática espiritual? (Por “qualidades”, entendem-se os 99 nomes de atributos de Allah que constam no Corão.)

Quanto à salvação, o Sr. Olavo de Carvalho disse recentemente: “Isso não quer dizer que o Papa esteja errado ao afirmar que o cristianismo é a única via de salvação. Como poderia estar errado, se o conceito mesmo de ‘via de salvação’ não se aplica ao Islã ou ao judaísmo?” (Olavo de Carvalho, “Mensagem de Natal”, O Globo, 23.12.2001). Das duas uma: ou o Sr. Olavo aqui admite que, não sendo vias de salvação, o maometismo e o judaísmo levam ao inferno, e neste caso seria Católico; ou então, como é evidente, o Sr. Olavo adere a uma escatologia não-Católica e gnóstica, e defende também a doutrina de que nem todos precisam ser salvos, que a salvação não exige uma fé determinada e certa, pois bastaria o conhecimento. E isso é gnose.

Non sequitur: “se” não são vias de salvação, “portanto” levam ao inferno. Esse menino é mesmo um traslado fiel da lógica fedélica.

Aliás, Frithjof Schuon, que até muito recentemente o Sr. Olavo de Carvalho considerava “homem espiritual de primeiro plano e formulador do único método válido já concebido para a comparação e aproximação das religiões” (in O Jardim das Aflições, 2ª ed., É Realizações, São Paulo, 2000, p. 308),

(considero ainda, mas, ao contrário de Fedelis e Felipes, compreendo a distinção entre respeitar um homem espiritual e ser seu discípulo)

trata a fé exatamente como o Sr. Olavo, como caminho para a gnose: “A Fé não poderá opor-se ao Conhecimento [de Deus, ou seja, a gnose] da qual é, ao contrário, como vimos, um modo iniciático…” (Frithjof Schuon, Da Unidade Transcendente das Religiões, Trad. Fernando Guedes Galvão, Livraria Martins Editora S.A., São Paulo, 1953, p. 184).

Completa distorção do sentido do texto de Schuon: “modo iniciático” não quer de maneira alguma dizer “caminho para a Gnose”, no sentido em que o caminho deve ser abandonado uma vez atingida a meta.

E, sobre a natureza do conhecimento gnóstico, o mesmo autor afirma: “Acrescentamos que no ponto de vista iniciático esta visão [a Visão Beatífica] pode, e deve até, obter-se ainda nesta vida…” (ibid., p. 179). E ainda: “…até existem métodos para obter esta graça que equivale, em suma, a uma ‘concretização’ da ‘visão beatífica’.” (ibid., p. 157). (O Sr. Olavo deve lembrar-se de ter lido isto, pois, no parágrafo anterior a este último trecho citado, encontra-se detalhada por Schuon a comparação blasfema entre a Virgem Maria e Maomé que o Sr. Olavo resumiu em seu artigo “Mensagem de Natal”, O Globo, 23.12.2000). Registre-se ainda que, como tudo isso é condenado pela Igreja Católica, Schuon refere-se a Ela com total desprezo: “A Igreja latina, com seu idealismo sentimental e irrealista…” (Frithjof Schuon, O Esoterismo como Princípio e como Caminho, Ed. Pensamento, p. 189).

Reconhecer na Igreja o seu elemento de idealismo sentimental e irrealista não é de maneira alguma “referir-se a Ela com total desprezo.” Páginas e páginas de apologia da Igreja escritas por Schuon são aí suprimidas pela tesoura deixada nas mãos de um moleque.

Continuando, é notável que o Sr. Olavo de Carvalho confesse aqui não renegar nada do que escreveu antes de 1995, com exceção de seu artigo sobre a “gnose de Princeton”. Isto significa que não renega o artigo citado pelo Prof. Fedeli em que apóia as doutrinas defendidas por Guénon em O Demiurgo (Cf. Olavo de Carvalho, “O Homem e sua lanterna. René Guénon o Mestre da Tradição contra o Reino da Deturpação”, in Revista Planeta, nº 107, agosto de 1981, p. 17), doutrinas estas que se enquadram até naqueles seus quatro itens da gnose, feitos para mascarar a sua própria gnose.

Afinal, o Sr. Olavo de Carvalho confessa mais uma vez que é gnóstico. Abaixo vai o texto do Prof. Fedeli, seguido da mais atual confissão do Sr. Olavo de Carvalho, ao comentá-lo (o sublinhado é meu):

“Até hoje, ele afirma que há algo superior à fé e às crenças de todas as religiões – a ‘Tradição’ primordial – núcleo comum a todas elas. Esse núcleo ele mesmo o chamou de Gnose. E é esse suposto núcleo que permite a ele dizer-se, ao mesmo tempo, católico-judeu-islâmico.”

Até aqui o Prof. Orlando Fedeli. A seguir, a nova confissão de gnose de Olavo de Carvalho:

“A existência desse núcleo não é uma doutrina: é um simples fato empírico, facílimo de comprovar (cf. Whitall N. Perry, A Treasury of Traditional Wisdom, Pates Manor, Bedfont, Perennial Books, várias edições). Chamá-lo gnose, tradição, sabedoria perene, filosofia perene ou qualquer outra coisa é absolutamente indiferente. Todo homem que, além de conhecer esse fato, admita a veracidade intrínseca e essencial do referido núcleo de princípios é um “gnóstico”, no sentido lato em que porventura caiba chamar-me assim, e por isto mesmo não pode ser um gnóstico no sentido específico em que o sr. Fedeli me acusa de sê-lo, de vez que a heresia gnóstica, por seu dualismo e sua revolta prometéica contra a ordem divina, nega frontalmente esses mesmos princípios.”

Como já se viu, é precisamente da gnose que o Sr. Olavo reconhece defender, e não da heresia dos primeiros séculos, que o Prof. Orlando Fedeli o acusa. Ademais, já foi demonstrado pelo Prof.  Fedeli que todos os especialistas no assunto consideram o gnosticismo (a heresia dos primeiros séculos) uma espécie do gênero gnose (substrato ou núcleo de várias heresias). O argumento do Sr. Olavo para negar este fato e defender a “boa gnose”, por meio da alegação de que o gnosticismo seja um “falso conhecimento”, é semelhante ao argumento dos comunistas — que o Sr. Olavo de Carvalho tanto condena, e faz bem de condenar — ao afirmarem que o “verdadeiro comunismo” permanece bom após as experiências genocidas de Stálin, Lênin, Mao e cia., pois estas seriam “falso comunismo”…

A comparação é simplesmente calhorda. O “bom comunismo” é apenas uma promessa jamais cumprida, ao passo que uma gnose sem qualquer comprometimento com a heresia existe há milênios. Nenhum historiador sério aceitou jamais a tese do sr. Fedeli, que identifica hinduismo, budismo, islamismo, judaísmo etc. como o tronco geral de onde sai a espécie de gnosticismo conhecida nos primeiros séculos da era cristã. O sr. Fedeli é que, partindo da definição geral que os historiadores dão, a manipula e a aplica indevidamente a todas essas religiões, criando um elo hipotético entre elas e a gnose-heresia. Ao apelar à autoridade desses historiadores, o sr. Fedeli nada mais faz do que falsificar o sentido do que eles dizem, como falsifica o sentido dos meus textos.

O Sr. Olavo de Carvalho citou recentemente Hans Jonas como “o mais famoso historiador da gnose”, numa breve nota na qual fala em “o rótulo de gnose (no sentido estrito de Hans Jonas)” (Olavo de Carvalho, nota a “A face oculta do mundialismo verde”, de Pascal Bernardin, in<http://www.olavodecarvalho.org/convidados/bernardin2.htm>). Logo, o Sr. Olavo aceita que Hans Jonas usa gnose no sentido estrito, sentido que é condenado pela Doutrina Católica. Veja-se então o que diz Hans Jonas: “Na verdade, houve apenas alguns grupos cujos membros se denominaram expressamente ‘gnósticos’, ‘os que conhecem’; mas já Sto. Irineu, no título de sua obra, usou o nome ‘gnose’ (com o acréscimo de ‘falsamente chamada assim’) para abranger todas as seitas que compartilhavam com eles esta ênfase [no conhecimento como meio de obter a salvação ou ele mesmo como forma de salvação] e certas outras características.

1) Quem usa o termo gnose nesse sentido – que Sto. Irineu considera falso – é o sr. Fedeli, não eu. Sinceramente: essa manipulação de significados já passou de todos os limites do tolerável.

2) Que eu reconheça ser Jonas “o mais famoso historiador da gnose” não implica que eu use os termos no sentido que ele lhes dá.

3) De novo: onde foi que defendi o “conhecimento como meio de obter a salvação”?

Se, de um lado, não sou acusado de pregar a heresia dos primeiros séculos e, de outro, nunca preguei o “conhecimento como meio de obter a salvação”, então, pergunto de novo: de que raio de coisa afinal me acusam?

Neste sentido podemos falar de escolas, seitas e cultos gnósticos, de escritos e ensinamentos gnósticos, de mitos e especulações gnósticas, e mesmo de uma religião gnóstica em geral. Seguindo o exemplo dos autores antigos que primeiro extenderam o nome [gnose] para além da autocomposição de alguns grupos, não somos obrigados a parar onde parou seu conhecimento ou interesse polêmico, e podemos tratar o termo como um conceito classificatório, que se aplica onde quer que as propriedades definidoras estejam presentes.” (Hans Jonas, The Gnostic Religion, 2nd edition, Beacon Press, Boston, 1991, p. 32, sublinhados meus).

Sim, mas uma propriedade definidora essencial – a tal “salvação pelo conhecimento” – está completamente ausente das minhas supostas “confissões”. Quantas vezes será preciso pedir a esses tenazes difamadores que provem esse ponto, que eles mesmos dizem essencial e de cuja demonstração vêm fugindo há mais de 160 páginas?

Não só os especialistas, mas também o já citado Frithjof Schuon, que faz a mesma distinção entre gnose e gnosticismo, admite que o gnosticismo pode ser chamado validamente de gnose — e da gnose que defende! — conforme cita-o o Prof. Fedeli em seu trabalho: “Se nós não ‘reduzimos’ o sentido da palavra [Gnose] a este sincretismo, nós admitimos entretanto que, de toda evidência e por razões históricas, que se chamem de ‘gnósticos’ também os hereges designados convencionalmente por esse termo” (F. Schuon, Comprendre l‘Islam, Ed. du Seuil, Paris, 1976, p. 137, nota 1; apud Orlando Fedeli, A Gnose “Tradicionalista” de René Guénon e Olavo de Carvalhoin<http://www.montfort.org.br/cadernos/guenon.html>).

Manipulação de frases, de novo. Se Schuon admite que se use o termo gnóstico também para designar a heresia dos primeiros séculos cristãos, é óbvio que ele dá ao termo, em geral, outro sentido.

Ao mesmo tempo em que agora tenta se desvencilhar de Schuon, o Sr. Olavo de Carvalho aponta a obra principal de Whittal N. Perry como probante da doutrina herética do núcleo comum das religiões, que seria a “boa gnose”. Justo este livro de Perry que o editor da revista guénoniana Symbolos, ao resenhá-lo, diz ser nada menos que “una especie de biblia schuoniana”! (Cf. Federico González, in <http://personal5.iddeo.es/jmrio/libfg26.htm>). E ainda acrescenta: “Este libro es tomado como una enciclopedia casi sagrada de sabiduría por los estudiantes schuonianos de habla inglesa. (…) Sin entrar en la vida privada de nadie diremos que el mismo M. Koslow señala a Perry como el colaborador directo de Schuon y a su esposa como íntimamente allegada a su familia, con quien todo lo comparten; por lo que deben ser considerados como sus portavoces autorizados o los asociados más íntimos del suizo; incluso viven en casas vecinas.” Aí está: Perry é porta-voz de Schuon, e o trabalho citado pelo Sr. Olavo como evidência para seu “ecumenismo radical” é nada menos que uma “bíblia schuônica”. Além disso, o próprio nome da editora do livro de Perry, Perennial Books, é significativo e mostra sua ligação com a seita “perenialista” de Schuon. Acrescente-se ainda que o mesmo Perry afirma que este seu livro foi inspirado no desejo de Ananda Coomaraswamy, amigo de Guénon, de um dia ter uma suma do pensamento gnóstico, obviamente para se contrapor à Suma Teológica, de S. Tomás, pilar da Igreja Católica.

Característica aplicação do método fedélico: mil e tantas páginas de fatos concordantes reunidos no livro de Perry são impugnadas, num estalar de dedos, por meio de fofoquinhas sobre as ligações de família do autor! Mais ainda, o menino aí se revela um bom aprendiz do fabricante de “confissões” que lhe serve de guru. No texto referido, Perry não diz nada do que Felipe Coelho o faz dizer. Ele nem fala em “suma do pensamento gnóstico” nem manifesta qualquer intenção, muito menos uma intenção “óbvia”, de “se contrapor à Suma Teológica de S. Tomás”, da qual, bem ao contrário, vários textos são incluídos na coletânea.

Finalmente, o Sr. Olavo cita dois pretensos erros do Prof. Fedeli, que supostamente trocaria o sujeito de suas frases. Vejamos. No primeiro caso, Olavo afirma: “Digo, por exemplo, que com tal ou qual argumento ele ‘cortou seu próprio pescoço’ – e ele entende que eu estou ameaçando cortar o seu pescoço”. Ora, em seu “Aviso 1” Olavo dissera: “Por enquanto, não há mal em que o sr. Fedeli vá curtindo sua ilusão de ser um novo S. Jerônimo, de ter cortado a língua a um infiel (sic). Logo ele verá que cortou mais é seu próprio pescoço”. E isso não é uma ameaça? Se eu digo a alguém: “Você, ao me acusar, assinou sua própria sentença de morte”, não o estou ameaçando? Por favor.

Nova manipulação, agora do sentido de uma figura de linguagem. O fato é que escrevo para pessoas que têm sensibilidade para as nuances de estilo, mas sempre me arrisco a ser lido por um Felipe Coelho qualquer, cuja cultura literária é a de quem escreve “entitular” em vez de “intitular” e “extenderam” em vez de “estenderam”.  Duas metáforas em contraponto, sobretudo se compostas de termos que designam um mesmo tipo de objetos e reforçadas por uma alusão literária, são obviamente complementares e têm de ser compreendidas uma em função da outra. À expressão de Léon Bloy, “cortar a língua”, fazem pendant, quase na mesma linha, as minhas palavras “cortar o pescoço”. É evidente que, se a primeira dessas expressões não promete nenhum dano físico, mas apenas desprover o adversário de sua força de agressão retórica, no mesmo sentido, mutatis mutandis, deve ser interpretada a segunda. Mais enfaticamente ainda, a expressão não anuncia que eu vá cortar o pescoço do sr. Fedeli, mas que este vai cortar seu próprio pescoço, o que, no contexto, quer dizer obviamente que vai fazer um suicídio argumentativo. Que se trata de uma alusão literária é coisa que se torna mais patente ainda pelo fato de que as mesmas palavras de Bloy já foram citadas como epígrafe de meu livro O Imbecil Coletivo. Para interpretar isso como ameaça de agressão física, mediante uma comparação descabida com uma sentença imaginária, é preciso uma dose extraordinária de má-fé, aliada à ignorância presunçosa e ao fanatismo cego – ou seja, tudo aquilo que esse menino aprendeu na escolinha do sr. Fedeli.

Nesses detalhes de interpretação é que se revela melhor o tipo de olhar – malicioso, perverso e delirante – com que essa gente lê os meus escritos.

Em contrapartida (veja-se o depoimento anexo de Amilcar Nadu), como haverá o garotinho de interpretar a ameaça fedélica de me “dar um pau”, proferida oralmente e sem nenhuma alusão literária possível? Alegará que ela é “apenas um modo de dizer”, enquanto um elaborado jogo de metáforas deve ser interpretado segundo um literalismo grosso, malicioso e redutor?

E veja-se que o Sr. Olavo, em seu “Aviso 2”, diz ainda que a denúncia do Prof. Fedeli “não habilita o sr. Fedeli a receber outra resposta senão uma que o Código Penal me proíbe: um tapa na cara”. Para piorar, o segundo “erro” consegue ser ainda mais tolo, pois o Sr. Olavo afirma: “Digo que seus alunos estão assustados e perplexos – e ele entende que o estou acusando, a ele, de assustar os meus alunos”. Reparem bem que foi exatamente isso que o Sr. Olavo disse em seu “Aviso 3” (os negritos e o sublinhado são meus): “Respondi às suas acusações, de fato, não por mérito delas ou de seu autor, mas apenas em atenção a dois ou três garotos que, sendo alunos dele, também são meus, e que enquanto o forem terão o direito de obter de mim, na medida em que eu possa dá-las, as explicações necessárias a tirá-los do estado de perplexidade e confusão em que tipos como o sr. Fedeli os jogam para dominá-los.”

Novamente, distorção do sentido das minhas palavras, para produzir uma contradição que não existe. Não foi enquanto meusalunos que esses meninos puderam ser assustados pelo sr. Fedeli, e sim, obviamente, enquanto alunos dele. Aliás o próprio Felipe – o mais perplexo e assustadinho de todos, tão cioso de salvar sua alminha que por ela não hesita em jogar ao lixo as mais patentes verdades – já nem era mais meu aluno, mas, por polidez, fiz questão de tratá-lo como se ainda o fosse.

De qualquer forma, isto é uma questão de pouca importância; fundamental é que ficou provado que o Sr. Olavo de Carvalho não é Católico, nem judeu, nem muçulmano. É gnóstico.

Diante da qualidade de seus argumentos, não surpreende que o Sr. Olavo encha sua “defesa” de “adjetivos” ao Prof. Orlando Fedeli. A mim, quanto mais o Sr. Olavo de Carvalho desce o nível da discussão, mais lamento ter sido um dia seu aluno.

       In Iesu et Maria,

       Felipe Coelho.

       12.07.2001

A mentira proferida em nome de Jesus e Maria, com fé e obstinação, é o caminho que o sr. Fedeli ensinou esse menino a trilhar.

Dois estudos sobre Aldous Huxley

Olavo de Carvalho

10 de julho de 2001

Prefácios a Admirável Mundo Novo e A Ilha, escritos para a reedição dessas obras pela Editora Globo, São Paulo, 2001.

1. Admirável Mundo Novo

         Se houve no século XX um escritor que nunca cedeu ao cansaço e ao tédio, que conservou até o fim um apaixonado interesse pela vida e pelo conhecimento, que não cessou de se elevar a patamares cada vez mais altos de compreensão, até chegar, em seus últimos dias, às portas de uma autêntica sabedoria espiritual, esse foi Aldous Huxley.

         Como artista, é cheio de imperfeições. Nenhuma de suas obras dá a medida integral da riqueza da sua personalidade ou da solidez de seus recursos intelectuais. Ao contrário, cada uma delas, se tem o brilho de um achado literário premiado por um êxito retumbante, desperta em seguida a suspeita de ter sido apenas um golpe de sorte. Por isto Huxley, amado pelo público, foi com freqüencia visto com certo desdém pelos críticos eruditos (o nosso Otto Maria Carpeaux, por exemplo). Mas a crítica erudita julga livros e não almas. O homem Aldous Huxley, visto na perspectiva integral de sua vida e de suas obras, é bem melhor do que a crítica deste ou daquele livro em particular pode revelar. Nessa escala, o público o enxergou melhor que os críticos. Poucos homens de letras souberam honrar tão bem, pela seriedade de sua luta pelo conhecimento, o amor que o público lhes devotou.

         Símbolo e resumo de sua trajetória vital é a luta de décadas que ele empreendeu contra a cegueira. A doença que aos 17 anos reduziu sua visáo a aproximadamente um décimo do normal não foi para ele, como provavelmente o seria para muitos outros escritores numa era de egocentrismo e autopiedade, ocasião de especulações vãs sobre a maldade do destino. Foi a oportunidade de um mergulho nas fontes corporais e espirituais da percepção, mergulho que acabou por fazer dele o autor de reflexões epistemológicas bem mais interessantes do que muitas obras de filósofos acadêmicos sobre o assunto.   Algumas dessas reflexões surgiram ao longo de sua experiência com os exercícios do Dr. Bates, um despretensioso oftalmologista norte-americano cujo sucesso na cura de Huxley veio a tornar célebre. O Dr. Bates era um inimigo dos óculos. Achava que todo olho doente tem momentos de sanidade que são estrangulados pela camisa-de-força de uma lente de grau fixo. Muito de sua técnica consistia apenas em restaurar no paciente a curiosidade visual  e o amor à luz. Talvez ele nunca tenha atinado com a formidável importância filosófica de sua técnica. Mas Huxley, à medida que recuperava a visão graças aos exercícios de Bates, ia fazendo duas descobertas filosóficas fundamentais.        A primeira delas estava sendo elaborada simultaneamente, sem que Huxleu o soubesse, pelo filósofo basco Xavier Zubiri, uma das mais poderosas mentes filosóficas deste e de muitos séculos. Segundo Zubiri, não existe aquela coisa kantiana de dados sensíveis brutos, caóticos, colhidos pelo corpo e sintetizados na mente segundo padrões a priori. A percepção humana é, inerentemente, percepção intelectiva ou, na fórmula zubiriana, “inteligência senciente”. Isto tapava, de um só golpe, o abismo que três século de idealismo filosófico haviam cavado entre conhecimento e realidade. “Realidade”, diz Zubiri, é o aspecto formal que o ser oferece à percepção humana. Não há uma “coisa em si” a ser apreendida para além da percepção, porque, precisamente, o que o ser oferece à nossa percepção é o seu “em si” e nada mais, ou, como diria Zubiri, aquilo que ele é “de suyo”, de seu, de próprio, de real.

         Huxley, que nunca ouviu falar de Zubiri (as obras do filósofo só vieram a difundir-se no mundo a partir da década de 70, após a morte de romancista), chegou, pela experiência pessoal da luta pela visão, a conclusões similares. A “arte de ver” (The Art of Seeing, 1943) não consistia no esforço interrogativo que, segundo Kant, equiparava o buscador do conhecimento ao juiz de instrução que inquire ativamente a testemunha em vez de deixá-la falar o que quer. Bem ao contrário, consiste numa aceitação passiva e gentil daquilo que as coisas, “de suyo”, queiram nos mostrar. A redução da libido dominandi intelectual às suas justas proporções fazia do ato de ver uma devoção contemplativa ante a realidade do mundo.

         A segunda descoberta filosófica de Huxley, no curso de seus exercícios ópticos, filia-o a uma tradiçao ainda mal conhecida no Ocidente de hoje, e praticamente desconhecida no mundo acadêmico do seu tempo. A natureza do mundo objetivo, nas suas experiências, revelava-se essencialmente como luz — luz no sentido físico, sustentada, porém, desde o íntimo, pela luz espiritual. A ativação desta última, no sujeito cognoscente, despertava a sua contrapartida objetiva sob a forma da luz inteligível que se revelava nas coisas vistas, simultaneamente à sua revelação pela luz física. A meditação deste ponto remonta à “filosofia iluminativa” de  Shihaboddin Sohrawardi (1155-91) filósofo persa cujas descobertas só encontraram, no Ocidente, um eco acidental e longínquo em observações casuais de Robert de Grosseteste (c. 1170-1253). Huxley soube algo de Sorawardi, anos depois, pois menciona-o de passagem em algum ensaio. Mas, na época em que fazia as experiências relatadas em The Art of Seeing, já estava mergulhado, sem saber, numa atmosfera inconfundivelmene sohrawardiana.

         Esses pontos já bastam para mostrar a intensidade filosófica do mundo interior de Aldous Huxley, o que o coloca num patamar intelectual bem superior ao da média dos romancistas do seu tempo.

         Mas a especulação vivenciada dos mistérios da percepção levou-o a algumas interessantes experiências no campo da técnica ficcional. Em “Contraponto” (1923), ele esboça a reconstituição da unidade de uma atmosfera emocional pela justaposição de detalhes aparentemente separados. Isso poderia fazer pensar, à primeira vista, na síntese kantiana. Mas, lida com mais atenção, cada cena do romance já traz em si, como em miniatura, o tônus emocional do conjunto. Não se trata, pois, da unificação intelectual de um significado a partir de detalhes insignificantes, mas sim de uma mesma realidade vista em dois planos: de perto e de longe. Mais que “dados” atomísticos kantiano, os episódios de “Contraponto” são mônadas de Leibniz, cada uma refletindo, desde o seu ângulo próprio, a forma do conjunto.

         Algo dessa técnica repete-se nas primeiras páginas do “Admirável Mundo Novo”. Flashes da produção de bebês in vitro, do doutrinamento de crianças para a cidadania padronizada, das diversões programadas como parte da disciplina civil, vão recompondo, aos poucos, a imagem global  de um mundo do qual a liberdade de escolha foi excluída e onde as criaturas repousam confortavelmente na submissão hipnótica à ordem estatal perfeita. A sociedade futura aí descrita, que o autor situa no século VII d. F. (“depois de Ford”, ou às vezes “depois de Freud”) é aparentemente uma utopia, no sentido definido por Goethe: “Uma série de idéias, pensamentos, sugestões e intenções, reunidos para formar uma imagem de realidade, embora no curso ordinário das coisas dificilmente venham a se encontrar juntos.” Um universo assim construído teria uma constituição nitidamente kantiana: síntese mental de dados que, na realidade, se encontram dispersos. Mas essa não é, definitivamente, a estrutura do romance de Huxley. Nenhum dos elementos da Nova Ordem Mundial que ele nos apresenta pode ser concebido separadamente. Não se pode controlar administrativamente as emoções humanas sem a ajuda química (as pastilhas de soma), nem habituar as multidões à satisfação bovina de uma auto-hipnose permanente sem controle laboratorial de suas predisposições genéticas; nem, muito menos, fazer tudo isto ao mesmo tempo na escala limitada de um Estado nacional, sem o controle simultâneo de todo o globo terrestre. Mundialismo, controle genético, adestramento comportamental e intoxicação coletiva não são dados soltos para a mente construir com eles uma utopia: são órgãos solidários e inseparáveis de um mesmo e único sistema. Onde quer que apareça um deles, os outros o seguirão, mais cedo ou mais tarde. A lógica deste romance imita e condensa a lógica da História.

         Por isso mesmo o “Admirável Mundo Novo” é menos uma utopia, uma especulação sobre um futuro possível, do que a percepção imediata do nexo interna por trás de uma pluralidade de modas e escolas de pensamento que floresciam na época em que o romance foi escrito, e que constituem a matriz unificada, não somente do mundo possível no século VII d. F., mas do mundo em que vivemos hoje. Huxley, com efeito, nada inventou. Tudo o que fez foi perceber  a unidade subjacente às idéias dominantes do seu tempo, que geraram nosso modo de existir atual. A atmosfera em que vivemos foi, de fato, determinada pelas concepções de Lenin e Ford, Margareth Mead e H. G. Wells, Malinowski e Pavlov. As referências, sutis ou abertas, a estes e a muitos outros “maîtres à penser” da década de 20 abundam nas páginas deste livro, que portanto pode ser lido menos como uma utopia no sentido goetheano do que como um diagnóstico da unidade de sentido por trás de tendências de pensamento que se ignoravam umas às outras no instante mesmo em que, às cegas, concorriam para erguer as paredes de um mesmo edifício: o edifício da Nova Ordem Mundial.

         O Sr. Wells, um autor menor que acabou por ser quase esquecido, é mencionado de passagem neste livro como um dos principais construtores da Nova Ordem. Passados oitenta anos, poucos observadores da realidade de hoje se dão conta de quanto ele contribuiu para formá-la, coisa que no entanto já estava óbvia para Aldous Huxley em 1931. O Sr. Wells, no livro “A Revolução Invisível” (1928), foi o primeiro a apresentar o projeto integral de uma Nova Ordem, que parece ter inspirado de algum modo os Srs. Clinton e Blair. Que feito de tão magna importância fosse obra de um autor que representa mais do que ninguém a mediocridade satisfeita do progressismo moderno, é coisa que não deve nos estranhar, pois a Nova Ordem, com seus clones, seus tribunais mundiais e seu controle da internet, não é outra coisa senão a mediocridade materializada em escala global — o mundo onde o Sr. Wells se sentiria tão à vontade quanto Bouvard e Pécuchet.

         As contribuições menores não devem porém ser desprezadas. Nossas concepções atuais sobre o prazer sexual ilimitado como um direito a que o Estado deve assegurar o acesso igualitário das massas não teriam sido possíveis sem o relativismo antropológico de Margaret Mead. Se enquanto cientista ela foi tão precária quanto é minguado o talento literário do Sr. Wells, nada mais justo: somente a pseudociência e a pseudoliteratura podem gerar mundos. Sua função, como já dizia Karl Marx, não é a de compreender o real, mas a de mudá-lo. Mas as idéias não precisam ser inteiramente falsas para esse fim. Basta que sejam infladas para além de seus limites razoáveis. Pavlov, por exemplo, descreveu com acerto a psicologia dos cães. O homem não pode ser compreendido integralmente à luz da psicologia canina, mas pode ser integralmente manipulado desde a parte canina do seu ser, transformando-se em algo praticamente indiscernível de um cão, o que dará à psicologia de Pavlov, na prática, um alcance que ela jamais poderia ter em teoria. De modo análogo, todos podemos ser levados a comportar-nos como pacientes psicanalíticos, militantes proletários ou peças de uma linha de produção, dando uma espécie de “segunda realidade”, como diria Robert Musil, às ideologias de Freud, Marx e Henry Ford. Depois disso, contestar essas teorias se tornaria tão difícil quanto tentar provar o valor da vida a um suicida que, tendo saltado do décimo andar, já se encontrasse à altura do sexto ou quinto. A dificuldade que os personagens deste livro encontram para perceber a irrealidade do mundo social que as rodeia é dessa mesma índole: elas constroem essa irrealidade a cada instante, com suas próprias vidas, e se aprisionam nela no ato mesmo de tentar contestá-la em pensamento.

         A unidade maciça do pesadelo descrito neste livro não é um produto da mente, construido com indícios esparsos, um vulgar “silogismo imaginativo” eisensteiniano em que, dadas duas imagens reais, o espectador contrói uma terceira, fictícia, e nela crê. É antes a visão real da unidade da atmosfera cultural dos anos vinte e trinta condensada em imagens e projetada — erroneamente — num século futuro. Erroneamente, digo eu, porque o próprio Aldous Huxley, em 1959, confessava seu erro de datas: “As profecias feitas em 1931 estão para realizar-se muito mais depressa do que eu calculava”, afirmou ele em Brave New World Revisited, uma atemorizante coletânea de ensaios sobre lavagem cerebral, persuasão química, hipnopédia, influência subliminar e outras técnicas de manipulação comportamental que,  previstas para o século VII d. F., já estavam prontas para o uso na segunda metade do século XX. Passado mais meio século, porém, já transcendemos a época das descobertas técnicas e entramos, em cheio, na da sua aplicação rotineira em escala mundial. Uma boa descrição parcial desse estado de coisas encontra-se no livro de Pascal Bernardin, Machiavel Pedagoge ou le Ministère de la Réforme Psychologique (Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1998), que analisa as técnicas educacionais hoje padronizadas em todo o mundo sob os auspícios de governos e de prestigiosos organismos internacionais. As conclusões do seu exame são duas. Primeira, a educação das crianças no mundo de hoje despreza a sua formação intelectual e se dedica quase que inteiramente ao adestramento comportamental dos perfeitos cidadãozinhos da Nova Ordem Mundial. Segunda: as técnicas usadas para esse fim pouco têm a ver com o que que se denominava tradicionalmente “pedagogia”, mas se constituem essencialmente de manipulação pavloviana. Que isso ocorra simultaneamente a experimentos de clonagem humana, à formulação de uma ética padronizada para abolir todas as diferenças culturais e religiosas, à instauração de um poder médico global incumbido de receitar e vetar condutas a pretexto de higiene e saúde, à criação de tribunais mundiais para impor à toda a humanidade o direito penal de Wells, Bouvard e Pécuchet — nada disso é coincidência, nada disso é síntese mental de dados esparsos. É a unidade de um sistema de erros, cujas sementes Aldous Huxley identificou em 1931 e cujo crescimento ultrapassou, em velocidade, os seus mais sombrios diagnósticos.

         No entanto, o mundo em que vivemos ainda não se parece, no seu todo, com o Admirável Mundo Novo. A diferença principal é que neste os “selvagens”, isto é, as pessoas que rejeitavam a existência antisséptica na sociedade perfeita e continuavam presas de hábitos bárbaros como ler a Bíblia, rezar e educar seus próprios filhos em vez de entregá-los ao Estado, se encontravam isoladas geograficamente, vivendo em reservas a milhares de quilômetros dos centros civilizados. No mundo de hoje, elas vivem soltas nas grandes cidades, misturadas aos seres humanos normais que só acreditam nos noticiários da TV e que entregam não só seus filhos como também seus pais à guarda do Estado. Por isto a vida moderna não tem a uniformidade tediosa das cidades de Huxley.

         Mas isso não quer dizer que, no domínio da estrutura social, ao contrário do que acontece no da tecnologia, o cumprimento da profecia esteja atrasado. Nas últimas quatro décadas, a elite bem-pensante inventou meios tão eficazes de isolar psicologicamente, culturalmente e socialmente os indesejáveis, que separá-los geograficamente tornou-se uma despesa desnecessária. A presença de um crente nas altas cátedras universitárias ou nos cargos de destaque do jornalismo, por exemplo, tornou-se tão inconcebível, que todos os selvagens que poderiam ambicionar esses postos recuam espontaneamente para os bas-fonds da vida social, deixando o palco inteiramente à disposição dos bons cidadãos. A secretária de Estado Madeleine Albright foi até explícita: qualquer americano que contribuísse regularmente para uma igreja e se preparasse ativamente para o Juízo Final se tornariam um virtual candidato a ter sua vida vasculhada pelo FBI. As reservas de “selvagens” não estão nos confins da Terra como no romance. Elas estão entre nós.

         Nas suas últimas décadas de vida, Aldous Huxley adotou decididamente uma escala de valores “selvagem”. Mergulhou no estudo das literaturas sapienciais e místicas, adquirindo uma antevisão daquilo que Fritjof Shuonn viria a chamar “unidade transcendente das religiões”, tão diferente do ecumenismo burocrático de hoje quanto  as visões de Sta. Teresa ou Jacob Boehme diferiam da leitura de uma circular da CNBB. Com isso, tornou-se estranho e incompreensível, simultaneamente, aos materialistas da linha Wells e aos paladinos de ortodoxias exclusivistas. Aventurou-se mesmo numa tentativa — falhada — de descobrir nas drogas alucinógenas a rota de fuga para fora da percepção padronizada. Mas a experiência fracassada não foi estéril. Se não abriu para quem quer que fosse “as portas da percepção”, despertou Aldous Huxley para a temível realidade da manipulação química do comportamento, que ele denuncia corajosamente em Brave New World Revisited, e para os aspectos falazes e ilusórios da democracia, que ele caricatura impiedosamente em seu último romance, A Ilha, espécie de contrapartida dialética do Admirável Mundo Novo.

         Da observação microscópica do mecanismo da percepção até a intuição global dos rumos da história humana, o olhar de Huxley jamais perdeu de vista a unidade do real e, em conseqüência, o senso da integridade humana, que tantos romancistas, seus contemporâneos, cedendo à suprema tentação, não fizeram senão dispersar numa poeira de estilhaços.

         Nenhum de seus livros dá conta integral da riqueza de sua experiência do mundo. Mas em nenhum deles está ausente a tensão entre o apelo unificante do alto e as brutais forças centrífugas que tentam dissolver a unidade da consciência para mais facilmente amoldá-la à mera uniformidade exterior de um mundo forjado. Voltar a si, reconquistar perenemente o senso da verdadeira unidade e, com isto, redescobrir a luz do espírito em seus reflexos no mundo exterior — eis o sentido da vida e da literatura de Aldous Huxley. Poucos escritores, no século XX, souberam colocar a ocupação literária a serviço de finalidade tão alta e tão nobre. Por isto a obra de Aldous Huxley, malgrado seu múltiplos defeitos, sobreviverá. Ela tem o interesse permanente de tudo aquilo que se volta para “a única coisa necessária”.

26/3/01    

2. A Ilha

         Os críticos acusaram freqüentemente os personagens de Huxley de não ser propriamente seres humanos, mas apenas símbolos de idéias.

         Contra essa censura posso levantar de imediato três objeções:

         1) Mesmo que ela fosse certa, não bastaria para arrasar de vez a reputação de Huxley como ficcionista, de vez que crítica semelhante já se fez a Swift e Voltaire.

         2) Ela não é propriamente uma censura, mas a definição mesma do gênero “sátira”, no qual se incluem, de algum modo (já veremos qual), as principais obras de Huxley. Não é possível satirizar os seres humanos naquilo que têm de pessoal e autêntico, mas só no que têm de exterior, de típico, de copiado e de mecânico.

         3) Mas as histórias de Huxley escapam mesmo às limitações intrínsecas do gênero satírico. É verdade que Lenina Crowne ou Bernard Trotsky, em O Admirável Mundo Novo, assim como Will Farnaby, Robert MacPhail ou o embaixador Bahu, em A Ilha, não são realmente pessoas de carne e osso: são encarnações das utopias, sonhos e ilusões da intelectualidade ocidental. Mas se malgrado essa sua origem puramente intelectual seus destinos nos interessam e nos comovem como os de gente de verdade, é pelo fato de que, no século XX, o poder enormemente ampliado da mídia cultural fez com que as idéias passassem a ter uma influência formadora mais direta e decisiva sobre os corações humanos. Símbolos, frases-feitas, emoções e trejeitos mentais criados pelos intelectuais fincaram raízes tão profundas no subconsciente das pessoas, que se tornaram, em muitos casos, indiscerníveis das reações pessoais autênticas. É olhar e ver: muitas personalidades em torno de nós são realmente, literalmente, traslados de modas intelectuais. Esses tipos só são cômicos e artificiais quando vistos do exterior, e nossa reação perante eles é ambígua: não conseguimos nem compartilhar de seus sentimentos ao ponto de sofrer por eles, nem desidentificar-nos deles o bastante para torná-los definitivamente cômicos. Pois todos nós, uns mais, outros menos, macaqueamos as modas culturais, e este é um destino inescapável do homem moderno: nem possuímos mais aquele fundo comum de valores e símbolos que permitia ao camponês da Idade Média ser ele mesmo justamente porque era igual a todos, nem nos tornamos tão prodigiosamente individualizados que possamos inventar nossa própria linguagem. A única autenticidade possível ao homem moderno é um arranjo mais ou menos pessoal de modelos mais ou menos copiados.

         É nessa zona indistinta entre o discurso coletivo e a emoção autêntica, entre a macaquice intelectual e a vida pessoal efetiva que Huxley colhe seus personagens. Daí sua maior originalidade como ficcionista – sua capacidade de fazer o leitor vivenciar o jogo das idéias estereotipadas como se fosse um drama humano de verdade. Por isso suas obras não podem rotular-se categoricamente como sátiras, já que participam, a um tempo, da sátira e do drama: sátira das idéias, drama dos erros e sofrimentos humanos que essas idéias geraram ao transformar-se em ações. É precisamente essa visão intermediária entre a sátira e o drama que o habilita a sondar com olhar profético o futuro que se gera no ventre das idéias. Cada um de seus romances é como aquele fantasma do poema de Heine que acordava um homem de madrugada e, de espada em punho, o ameaçava: “Eu sou a ação dos teus pensamentos.”

         Muito do que Aldous Huxley escreveu é a dramatização satírica das idéias que se tornaram vida pessoal e tragédia pessoal entre os intelectuais midiáticos, aqueles seres meio cultos, meio ignorantes, que desfrutam do privilégio maior da mediocridade — falar a linguagem média — e que por isto dão o tom dos debates públicos, encarnando a personalidade das épocas. Essas criaturas são as testemunhas principais que o historiador das idéias interroga. Por exemplo, quem queira conhecer a mentalidade do século XVIII não irá sondar as profundezas abissais da ciência de Leibniz, mas deslizar sobre as superfícies brilhantes de Voltaire e Diderot. Os grandes espíritos não pertencem propriamente à sua época: uma parte do seu ser está mergulhada num passado imemorial, a outra projeta-se num futuro inalcançável, e só uma parcela ou recorte deles é visível a seus contemporâneos. Mas a mente do intelectual médio é o ponto de intersecção dos horizontes de consciência da sua época: o que aparece na sua tela interior é aquilo que todos vêem ao mesmo tempo, a coincidência de todos os recortes, a interconfirmação de todas as percepções e de todas as cegueiras. Por isto seu discurso é tão bem recebido por seus contemporâneos, e por isto é tão fácil, das suas palavras, deduzir o que “o público” pensava.

         O intelectual médio é ao mesmo tempo o porta-voz e o eco das modas culturais. Mesmo quando as critica, não vai além delas, limitando-se a opor uma moda a outra moda, como aqueles que, hoje em dia, opõem ao socialismo a utopia neoliberal, ou vice-versa, sem ter a mínima idéia do parentesco que os une.

         Huxley era um ouvido especialmente atento às conversações dos intelectuais médios, das quais ele não apenas captava com facilidade o “espírito da época”, mas inferia as mais espantosas e acertadas conclusões sobre o rumo que as coisas iriam tomar se aquelas idéias, em vez de esgotar-se como puras futilidades de salão, fossem levadas à prática como modelos do mundo futuro. O Admirável Mundo Novo é o mundo que teria resultado – e que de certo modo resultou – da aplicação das modas intelectuais da década de 30. A Ilha é o mundo criado pelas utopias psicoterapêuticas e orientalistas dos anos 50-60.

         Aldous Huxley morreu antes de que essas idéias tomassem corpo na cultura da “New Age” e, partindo das esperanças utópicas de um novo mundo de sanidade e autoconhecimento, desembocasse na tragédia mundial das drogas, das seitas escravizadoras, das experiências psíquicas autodestrutivas. Não obstante, ele captou antecipadamente a loucura por trás de tudo isso, e é precisamente essa antevisão que dá o tema deste romance.

         Publicado em 1963, este livro foi lido como uma espécie de antítese do Admirável Mundo Novo. Enquanto o romance de 1932 trazia o retrato de uma sociedade opressiva e mecanizada, da qual toda espontaneidade humana tinha sido extirpada em benefício da ordem e da produtividade, a ilha de Pala era como que a materialização dos sonhos de liberdade da geração flower power: amor livre, religiosidade sem dogmas, respeito às diferenças individuais, incentivo à expressão das emoções, tudo num ambiente ecológico de reverência pela natureza.

         Sublinhava essa interpretação o fato de que a utopia fosse, no capítulo final, brutalmente destruída pelos tanques da vizinha ilha de Rendang-Lobo, encarnação de tudo o que a juventude dos anos 60 mais odiava: industrialismo, militarismo, religião tradicional, lei e ordem.

         Compreendido assim, A Ilha não era senão a tradução ficcional de lugares-comuns da retórica esquerdista da época, mista de “New Age” e “New Left”. Daí o imenso sucesso do livro. Ele parecia dizer tudo o que a geração mais pretensiosa de todos os tempos queria ouvir. Mesmo a derrota da utopia, em vez de ter um efeito deprimente, parecia exaltá-la até às nuvens: Pala fôra destruída por ser boa demais para este mundo, como Che Guevara, derrotado pelo mais pífio exército sul-americano, transcendia no mesmo ato os julgamentos humanos e subia aos céus como um Ersatz comunista de Jesus Cristo.

         Êxitos de livraria baseados em equívocos de interpretação não são raros na história da literatura. Na verdade, A Ilha é o mais temível inquérito sobre o auto-engano da geração que o aplaudiu. No ambiente de entusiasmo utópico da época, seria impossível que os leitores o compreendessem. Isso teria exigido deles um realismo cruel, que mesmo à distância de quatro décadas ainda parece difícil de suportar, tão contaminados das ilusões e mentiras dos anos 60 permanecemos hoje. Daí que, deslizando sobre a superfície da narrativa, quase todos os leitores deixassem escapar os detalhes mais importantes, nos quais se esconde o sentido mesmo da última lição de um sábio.

         Em primeiro lugar, a destruição de Pala não vem do exterior. É o próprio príncipe herdeiro, Murugan, quem atrai os estrangeiros para ajudá-lo no golpe militar destinado a romper o equilíbrio do paraíso agrícola e colocar o país, pela força, na modernidade industrial. Os ideais da “geração Woodstock”, com efeito, apenas usavam a linguagem do primitivismo agrícola como veículos de expressão de seu ódio à sociedade industrial, mas essa revolta era, ela própria, um fenômeno da intelectualidade urbana e universitária, e supunha uma dose de liberdade de expressão e meios de comunicação que seriam inconcebíveis em qualquer sociedade agrícola. Quando Murugan acusa os governantes de Pala de “conservadores e reacionários”, ele põe o dedo na ferida: os ideais que produziram Pala jamais poderiam ter surgido numa economia como a de Pala. A utopia não é destruída do exterior, mas explodida desde dentro, pela sua autocontradição congênita.

         Em segundo lugar, os golpistas, tão parecidos com os militares do Terceiro Mundo nos seus métodos de modernização autoritária, nada têm de conservadores e tradicionalistas na sua ideologia. Murugan, bisneto do Velho Rajá, o fundador de Pala e autor do livro sapiencial em que se inspira o regime da ilha, acaba se voltando contra as tradições locais por influência de sua mãe, a rani Fátima, a qual durante sua formação cultural na Europa recebera a influência dos ensinamentos teosóficos de Helena Blavatsky, tornando-se devota dos “Mestres do Astral”, especialmente um tal Koot-Hoomi — figura inconfundivelmente diabólica segundo todos os cânones da religião tradicional — , em cima de cujas concepções se forma a aliança entre a família real de Pala e os militares de Rendang-Lobo. Ora, teosofismo e mensagens de Koot-Hoomi são elementos inconfundíveis da própria ideologia “New Age”. Embora já um tanto velhos na época, foram reaproveitados na onda geral de orientalismo pop com que o movimento dos jovens atacava e corroía as bases cristãs da sociedade Ocidental.

         Os militares de Rendang-Lobo também não são, de maneira alguma, “a direita”. Estão ansiosos para fazer negócios com a Standard Oil só para poder comprar armas do bloco soviético e dar prosseguimento ao seu sonho macabro de “revolução permanente”. Seu chefe, o Cel. Dipa, é uma espécie de Chavez avant la lettre. Seu modernismo revolucionário representa a outra face da ideologia “jovem” dos anos 60: o lado brutal e sanguinário personificado pelos Black Panthers, por Ho-Chi-Minh e Fidel Castro. Pala não é destruída por seus inimigos, mas pela contradição interna da mais mentirosa ideologia de todos os tempos, a ideologia da esquerda norte-americana dos anos 60, que pretendia encarnar o espírito de “paz e amor” ao mesmo tempo que espalhava no mundo “um, dois, três, muitos Vietnãs”.

         Ainda mais significativo é que a origem das concepções utópicas do regime de Pala remontasse à fusão de vagos remanescentes do budismo tântrico com as idéias de evolucionismo biológico trazidas, no século passado, por um médico escocês, meio sábio, meio charlatão, que adquirira prestígio na ilha curando uma misteriosa doença de seu governante por meio do “magnetismo animal”. Essa mistura de budismo heterodoxo, evolucionismo e magnetismo compõe a fórmula inconfundível do teosofismo de Madame Blavatsky. Assim, a raiz do utopismo anárquico de Pala e do modernismo autoritário de seu príncipe golpista é, rigorosamente, a mesma.

         Para tornar as coisas ainda mais estranhas, o teosofismo de Blavatsky foi, notoriamente, um instrumento usado pelo imperialismo inglês para corroer as tradições religiosas autênticas das nações orientais e torná-las mais vulneráveis à dominação cultural estrangeira por meio de um entorpecente pseudo-espiritual fabricado em Londres por uma vigarista russa. [1]

         Pelo lado da ideologia palanesa, portanto, o lixo ancestral não é menos fedorento que o teosofismo explícito de Rendang-Lobo. Já no segundo capítulo do livro, o náufrago Will Farnaby, traumatizado pelo perigo recente, é curado de seus males pelo método freudiano da ab-reação no curso de uma psicoterapia improvisada… por uma garota de nove anos. Mary Sarojini MacPhail, a garota, neta do atual guru médico da ilha, resume na sua pessoinha os princípios de educação e ética ali vigentes: são os princípios do sincerismo, do “botar para fora”, que os “grupos de encontro” e as técnicas psicoterápicas de “sensibilização” e “liberação” disseminaram no mundo a partir de Esalen, Califórnia, e que marcaram inconfundivelmente a atmosfera dos anos 60. O festival de experimentos psíquicos e “liberações” desembocou no império mundial dos traficantes de drogas e na transformação da delinqüência juvenil (e infantil) numa catástrofe global de proporções incontroláveis. Na época, porém, prometia um novo mundo de espontaneidade e sanidade. Todas as crianças de Pala são versadas em “auto-expressão”, aquela confissão simplória e cínica dos próprios maus sentimentos que, teoricamente, os tornaria inofensivos. O fato é que a “auto-expressão”, ensinada em grupos-de-encontro por psiquiatras e psicoterapeutas “libertadores” nos conventos católicos, suscitou entre as monjas uma epidemia de lesbianismo e de casos amorosos com seus terapeutas, levando praticamente à destruição de várias ordens religiosas. De braços dados com o pseudo-orientalismo, a “libertação” psicoterápica abriu caminho para que milhões de jovens abandonassem o cristianismo e se entregassem às mais tirânicas manipulações psíquicas nas mãos de seitas delinqüenciais como “Love Family”, que, em nome da expressão espontânea das emoções, obrigava crianças de quatro anos de idade a submeter-se, junto com seus pais, à prática de sexo grupal. A imensidão dos danos psicológicos trazidos a essa geração jamais poderá ser medida exatamente. As tristezas e as vergonhas acumuladas são demasiado profundas para vir à tona. Documentos aterrorizantes acumulam-se, em pilhas, nos milhares de clínicas especializadas em tratamentos de egressos de seitas, sobretudo ao longo da Costa Oeste americana — o lugar onde nasceria, segundo a promessa da época, a nova civilização de sanidade, paz e amor. [2]

         Os efeitos terrificantes, porém, não nasceram do mero acaso. Fruto e raiz têm sua continuidade lógica. Os “grupos-de-encontro” nasceram da pesquisa militar sobre guerra psicológica e controle comportamental. Um de seus pioneiros, Kurt Lewin, já na década de 40 havia chegado à conclusão de que a pressão sutil e disfarçada do grupo era o meio mais efetivo de produzir mudanças de comportamento. A lição foi bem aprendida por Carl Rogers, Fritz Perls, Abraham Maslow e outros criadores dos “grupos-de-encontro” da década de 60. A “liberação”, em suma, não passava de “engenharia do consentimento”. Lewin e seus sucessores haviam descoberto um tipo de controle comportamental infinitamente mais eficiente e irresistível do que todas as técnicas descritas no Admirável Mundo Novo. Como admitiu um dos praticantes do método, Robert Blake, ex-aluno de Lewin no Tavistock Institute de Londres (a principal academia inglesa de guerra psicológica), “não importa quanto o orientador desses grupos tente ser não-diretivo, ele será ainda sutilmente ditatorial e até mais ditatorial (por causa da sua sutileza) do que o mais rígido adestrador, porque todo o controle está escondido”. [3] Por uma coincidência que neste contexto adquire as dimensões de um símbolo, Blake dirigiu um desses grupos justamente na Standard Oil – a empresa com a qual o príncipe herdeiro Murugan está louco para fazer negócios.

         Após presenciar uma sessão de “educação para o amor” das crianças de Pala, Will Farnaby, o visitante trazido pelo naufrágio, protesta: “Isto é puro Pavlov!”. O instrutor, com aquele ar beatífico de tantos lavadores de cérebros da década de 60, responde: “Pavlov usado exclusivamente com bom propósito. Pavlov para a amizade, para a confiança, para a compaixão.”

         Tanto pelas suas origens blavatskianas quanto pelos métodos de dirigismo sutil, a ideologia palanesa é irmã gêmea do autoritarismo de Rendang-Lobo. A Ilha não é a tragédia de um paraíso de liberdade destruído pela invasão de militares malvados: é a tragédia da autodestruição de uma utopia intrinsecamente má e mentirosa envolta em belas palavras.

         No momento culminante da narrativa, Will Farnaby, finalmente rendido aos encantos da “religião sem dogmas” dos palaneses, resolve experimentar a moksha, a erva alucinógena ritual que, em vez de precipitar somente o consumidor num estado de apatetado bem-estar como o soma do Admirável Mundo Novo, lhe abriria as portas do conhecimento transcendental. Nos primeiros instantes, Will “vê a luz”, ou pelo menos pensa que vê. Mergulha num estado de beatitude indescritível e supõe ter conhecido o próprio Deus. De repente, a visão se transfigura. Abrem-se as portas do inferno: vermes horrendos aparecem misturados à figura de Adolf Hitler que gesticula e berra. A visão de Will mostra a verdadeira natureza da religião palanesa: uma religião de “experiências psíquicas”, incapaz de transcender a dualidade cósmica e elevar-se ao reino da eternidade. É a religião dos “grupos-de-encontro”, o substitutivo postiço que uma estratégia política oportunista quis substituir ao cristianismo. Tão logo Will emerge do transe, ele ouve os primeiros tiros do exército invasor: é a mentira essencial de Pala que se desfaz ao mesmo tempo que a falsa visão espiritual.

         Poucos livros foram tão fundo na compreensão do auto-engano congênito da cultura contemporânea. Perto da pedagogia palanesa da ilusão, as técnicas de controle social do Admirável Mundo Novo parecem ingênuas e rudimentares, assim como perto da engenharia comportamental dos anos 60 o totalitarismo explícito da década de 30 parece coisa de orangotangos. O diagnóstico impiedoso do neototalitarismo mental dos anos 60 não pôde ser compreendido por seus contemporâneos. Eles estavam embriagados na mentira nascente, e a antevisão de Huxley passou léguas acima de suas cabeças. Mas, hoje, vivemos no mundo criado por aqueles malditos “jovens idealistas” dos anos 60. As técnicas de controle social e engenharia do consentimento já não são experiências limitadas, efetuadas na privacidade de grupos-de-encontro: são o dia a dia das escolas públicas, onde nossos filhos se encontram à mercê daquilo que Pascal Bernardin chamou “ministério da reforma psicológica”. [4] Tal como Mary Sarojini MacPhail, cada criança, submetida à pressão sutil do grupo, aí adota alegremente as condutas desejadas, sem ter a mínima idéia de possíveis alternativas. Nos EUA, os resultados da adoção maciça dessas técnicas no ensino já são patentes: os índices assustadores de consumo de drogas e a criminalidade infantil nas escolas públicas levam muitos pais a preferir educar seus filhos em casa, enquanto a Prefeitura de Nova York, admitindo-se incapaz de controlar a violência das crianças, privatiza suas escolas como quem entrega um fardo superior às suas forças. No Brasil, esse processo ainda está no começo, mas basta ler os “Parâmetros Curriculares Nacionais” do Ministério da Educação para perceber que a engenharia de comportamento aí predomina amplamente sobre a formação intelectual e a instrução moral honesta. O espírito dos “grupos de encontro” dos anos 60 tomou conta da pedagogia universal, firmemente decidido a “libertar” as crianças do legado da civilização cristã. Quando a “libertação” mostrar sua outra face, quando Pala revelar sua identidade com Rendang-Lobo, haverá choro e ranger de dentes. Mas, como aconteceu com a geração de 60, nenhum dos autores da tragédia reconhecerá suas culpas: cada um deles se proclamará um idealista traído pelos rumos imprevisíveis da História e, revigorado pelo sentimento de inocência, tirará da cartola um novo projeto de “mundo melhor”.

         Aldous Huxley escreveu este livro para nos advertir da culpa monstruosa que se oculta por trás da inocência dos idealistas.

22/4/01


[1] V. Peter Washington, O Babuíno de Madame Blavatski, trad. Antônio Machado, Rio, Record, 2000, assim como René Guénon, Le Théosophisme. Histoire d’une Pseudo-Réligion, Paris, Éditions Traditionnelles, 1929 (reed. 1978).

[2] Um documentário impressionante da devastação psíquica resultante dos experimentos psíquicos da década de 60 encontra-se em Flo Conway e Jim Siegelman, Snapping. America’s Epidemic of Sudden Personality Changes. New York, Lippincott, 1980.

[3] Cit. em E. Michael Jones, Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control, South Bend, St. Augustine’s Press, 1999.

[4] V. Pascal Bernardin, Machiavel Pédagogue ou le Ministère de la Réforme Psychologique, Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1995.

 

O método de aliciamento do sr. Orlando Fedeli

por Amilcar Nadu

5 de julho de 2001

A única vez que chamei algum aluno do sr. Fedeli para vir falar comigo foi com a finalidade declarada e pública de que levasse a seu guru a gravação de minha aula, em razão de minha falta de tempo para lhe dar uma resposta por escrito. Já o sr. Fedeli, no seu esforço de salvar da minha nefasta influência as almas de meus alunos, desenvolve intenso trabalho subterrâneo de aliciamento, do qual às vezes, por acaso ou por falha da segurança, umas amostras chegam ao meu conhecimento. Meu aluno Amilcar Nadu, por exemplo, foi convocado pelo sr. Fedeli a vir de Curitiba ouvi-lo explicar as razões pelas quais, no entender do guru montfortiano, ele deveria abandonar meu curso imediatamente e filiar-se às hostes fedélicas. Infelizmente, o tiro saiu pela culatra: de volta à sua terra, Amilcar julgou que tinha o dever de me informar da conversa. O título é de minha responsabilidade. assim como os comentários – em vermelho – que a entremeiam.

Já pelo contraste entre os altos pretextos alegados e os métodos sórdidos de alcoviteiro, o sr. Fedeli dá, com seu exemplo pessoal, a mais fiel ilustração daquilo que dizia Simone Weil: “Estar no inferno é acreditar, por engano, que se está no céu”. – O. de C.

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Prezado Prof. Olavo de Carvalho,

Em abril, forneci ao senhor alguns dos dados que obtive sobre o Sr. Orlando Fedeli. Tive, antes, o cuidado de, num período de quatro meses, ouvir ao menos 3 testemunhas diretas que me confirmassem os depoimentos umas das outras. Com base nisso, pude apurar que o Sr. Fedeli se auto-atribuiu a missão de salvar a alma das pessoas mediante o guiamento de suas inteligências. No cumprimento de sua missão, Fedeli diz, a sério, que ir ao seu Seminário é mais grave que matar uma pessoa.

Se isso não configura intenção de difamar e prejudicar, o Código Penal está errado.

Basta, para demonstrar o grau de alarmismo criado por esse senhor, o fato de ter um certo ex-aluno do Seminário chegado ao ponto de me ligar em Curitiba, onde resido, dispondo-se a fornecer-me hospedagem para que eu pudesse ter com OF [1] .

Durante a investigação que realizei, eu já havia tentado apurar com os hoje freqüentadores da Associação Montfort, quais as divergências que Fedeli teria com o senhor e a que livros eu deveria recorrer para inteirar-me delas. Nenhum dos freqüentadores da Associação Montfort foi, porém, capaz de me expor com a mais mínima precisão o pensamento fedeliano. Limitaram-se a assinalar que Fedeli conhecia extremamente bem a sua filosofia e a gnose, e que provara as íntimas ligações entre uma e outra, bem como a falsidade do “maometismo”. Espantou-me a mudança veloz de posição daquelas pessoas.

Na verdade, essas pessoas jamais “mudaram de posição”. Já chegaram falando da Associação Montfort (que então eu desconhecia) e oferecendo-se gentilmente para gravar as minhas aulas. Depois, desapareceram repentinamente, levando as gravações, e começaram a fazer contatos com os demais alunos meus para levá-los à Associação Montfort. Que é que posso supor diante disso, senão que vieram desde o início como agentes do sr. Fedeli e não como alunos?

De minha parte, procuro seguir sempre a Teoria dos Quatro Discursos, que tenho testado inúmeras vezes, e que, nesses casos, funciona como uma armadura espiritual que permite ao estudante enfrentar as mais temíveis controvérsias sem fragmentação da consciência e sem crises desnecessárias [2] . E, à luz dela, sempre tive claro que, antes de me posicionar sobre o que quer que fosse, deveria eu inteirar-me dos termos do debate. Assim, jamais receei encontrar o Sr. Fedeli. Tive mesmo, antes de confirmar o que ele havia dito sobre freqüentar o Seminário, alguma curiosidade a respeito de sua obra. Quando, porém, vieram as provas sobre o contexto em que aquela invectiva fora feita, restou-me apenas a obrigação intelectual de não negar ouvidos a quem pretenda revelar dados que eu supostamente desconheça. Ao ser informado no sábado (não cheguei a comentar isso com o senhor) que o Sr. Fedeli estava “à minha disposição” e ao sentir que uma eventual negativa minha poderia, e seria, interpretada como a fuga de um medroso que se furta à responsabilidade de encarar a verdade, fui sinceramente disposto a ouvi-lo e a anotar tudo quanto pudesse. Relatarei resumidamente, nas linhas seguintes, e tentando preservar ao máximo a ordem cronológica, como transcorreu a nossa conversa, que se deu na presença de mais duas testemunhas. Antes, porém, esclareço que o relato abaixo foi feito em tópicos não por uma decisão arbitrária ou por preguiça, mas por ser a forma escrita que melhor retrata o tipo de argumentação do Sr. Fedeli: não há transição entre os temas. Interrompe-se a discussão bruscamente e muda-se rapidamente de assunto. Não há partes compondo um todo. Há uma coleção fragmentária de “provas”, expostas com extrema velocidade e em tom sentencial.

  1. Fedeli nos busca no metrô e nos leva numa mini van à Associação Montfort. A caminho de lá, quer saber o que houve na aula recém finda (aula do mês de abril) . É informado da fita, que lhe será exibida na Quarta feira próxima. Registra que o seu silêncio público é uma proposta tácita de acordo. Diz que não vai parar enquanto não desmascará-lo e que o senhor vai “levar um pau”.

Tenho o direito de interpretar isso ao modo de Fedelis e Felipes, como ameaça de agressão física? Ou, ao contrário, as palavras chãs da conversação oral do sr. Fedeli devem ser ouvidas com a sensibilidade literária que ele recusa conceder à leitura das minhas figuras de estilo? Sou eu que, quando uso uma metáfora inspirada em Léon Bloy, faço ameaça bruta em vez de figura de linguagem, ou é o sr. Fedeli que, quando vocifera ameaças diante de testemunhas, faz literatura e deve ser interpretado com distanciamento estético?

Pergunta a mim e a meu amigo, (o terceiro aluno já frequentava a associação Montfort) sobre o tempo que freqüentamos o Seminário e como havíamos conhecido o senhor. Depois de saber sobre como o conhecemos, alega, ironicamente, que estamos recebendo doutrina gnóstica disfarçada de combate ao comunismo e dá algumas boas risadas. Ao saber que meu amigo freqüenta o seminário há apenas 2 meses, diz: “que bom! A sua cabeça ele ainda não teve tempo de envenenar”. Menciona, ainda, a existência de um padre a quem o senhor, desorientado, teria pedido conselhos sobre como lidar com a ameaça fedeliana. Tal padre teria “mandado” – e Fedeli, para assinalar a existência de uma organização (tema ao qual retornarei adiante) à qual o senhor se subordinaria, usava ainda a expressão “eles mandaram” – o senhor ignorá-lo.

Aqui o sr. Fedeli entra na área da difamação simples e direta. Não pertenço a organização nenhuma, esotérica ou exotérica, política ou religiosa. Não pedi orientação a padre nenhum, embora saiba quem é o sacerdote ao qual o sr. Fedeli se refere.

Ao chegar à Associação minha primeira e quase que instintiva atitude é a de olhar os trajes das mulheres: estão todas de saia.

1) Fedeli nos leva a uma sala reservada e nos mostra o livro sobre a vida de René Guénon que havia citado de Segunda mão. Mostra fotos de René Guénon, Titus Burckhart e um terceiro, o único cuja obra desconheço, e os chama repetidas vezes de palhaços, pois “se vestem de árabes” sem sê-lo. “Palhaçada”, repete Fedeli enquanto exibe várias fotos do livro.

Essa brutalidade configura nitidamente o crime de ultraje a culto (Art. 208 do Código Penal) e já basta para mostrar quem é esse sr. Fedeli. Talvez, para melhor esclarecimento, convém lembrar que só 8 por cento dos muçulmanos são árabes e que no entanto o uso do traje árabe nos ritos, sem ser estritamente obrigatório, é considerado um dever de polidez a que poucos homens religiosos se furtam voluntariamente. Pela lógica do sr. Fedeli, se eu, num rito judaico, metesse na cabeça um solidéu, parecendo portanto judeu sem sê-lo, me tornaria automaticamente um “palhaço”.

Palhaço, para mim, é aquele que, sem ser Jesus Cristo (resguardada a hipótese de engano da minha parte, é claro), proclama “salvar almas”. Mais que palhaço: charlatão.

2) O.F diz que Guénon era toxicômano, pois os de sua seita usavam regularmente e prescreviam haxixe e ópio. Faz ainda outros ataques a R.G.

Esse sujeito não mede realmente o que diz. Seu comportamento é nitidamente o de um furioso alucinado, cego de ódio e despeito.

3) Fedeli tenta rebater a sua alegação de que teria ele citado o livro em questão sem ler. Diz que “agora o está lendo” e que foi o senhor quem não leu o livro. Como prova desta afirmação, relembra que o senhor houvera dito que a autora da obra não sabia que Martin Lings e Sidi Abu-Bakr eram a mesma pessoa e que atribuíra a M. Lings episódios que haviam se passado com Burckhardt e vice-versa. Exibe-me, então, o índice onomástico do livro. Mostra-me que o nome de Martin Lings é ali citado numa única página e que, portanto, seria impossível existir troca de episódios.

Surpreendo-me vivamente. Respondo ao senhor Fedeli que o índice onomástico só poderia ser tomado como prova do número de vezes em que a pessoa de Martin Lings aparecesse no livro se não tivesse havido a confusão mencionada pelo senhor. (Deveria ser evidente que, se a autora atribuiu a outros os episódios ocorridos a Lings e que se, para ela, Lings e Abu-Bakr eram pessoas diferentes, o índice onomástico não poderia saber mais que a escritora e, por por algum processo miraculoso – apontar, no nome Martin Lings, as páginas referentes a Abu Bakr. Não poderia o índice, também, registrar, no nome Martin Lings as páginas dos episódios que com ele se passaram e que a autora tenha creditado a Burckhardt) O Sr. Fedeli brande o livro em suas mãos, replicando algo como: Você não está vendo? Que episódios trocados que nada! Quem não leu o livro foi ele! Como poderia haver troca de episódios se o Martin Lings só é citado uma vez no livro? Você não está vendo aqui? E conclui (reproduzo com exatidão): “Esse Olavo é um chutador!” Fico boquiaberto.

Ora, meu saco, se Lings foi trocado por outro personagem, é o nome deste que aparece, e não o dele. (V. nesta homepage minha “Nota sobre o livro de Marie-France James). A falta não somente de lógica no próprio raciocínio, mas de simples compreensão da lógica imediata daquilo que ouve, revela o estado em que se encontra esse homem.

4) Surge a questão sobre a gnose e o gnosticismo. Fedeli confirma o que um de seus alunos me havia dito: não há diferença entre eles. Segundo Fedeli, a aparente diferença foi inventada por René Guénon, que havia sido denunciado por sua amiga (Noema?) como membro da renovação hinduísta da antiga gnose, e visava a inocentá-lo. Fedeli recorre, para demonstrar a identidade de gnose e gnosticismo, à origem etmológica dos termos. Para ele, o fato de gnose e gnosticismo serem termos oriundos de um mesmo tronco já demonstra cabalmente que são um único só e mesmo fenômeno. (Percebo, de imediato, a extravagância de um raciocínio que pretende tomar a origem etimológica dos termos como prova evidente da origem e da identidade do conteúdo das doutrinas que eles designam. Sinto-me tentado a dizer que, se assim fosse, poder-se-ia, a partir da premissa da identidade etmológica das palavras “vírus” e “veneno”, concluir que o vírus da AIDS e o arsênico seriam idênticos em sua origem e semelhantes em sua composição. Contenho-me. Minha presença ali se devia ao meu desejo de conhecer, e não à minha vontade de argumentar, e eu já havia – impensadamente – polemizado com o senhor Fedeli minutos antes, conforme descrito no tópico anterior. Não era minha intenção fazer o papel de “Felipe Coelho”, que, segundo pude apurar, decidiu, após ter lido René Guénon, conhecer o Sr. Fedeli para “dar-lhe um cacete” (reproduzo o que me disse um amigo dele) e acabou “convertido”. Acalmei-me pensando que, longe de ocupar, no sistema fedeliano, o lugar de prova central, o estudo etimológico que me fora revelado teria ali um papel secundário, coadunando-se com outros elementos de muito maior valor probante. Devia eu, portanto, ouvi-lo em silêncio.)

5) Fedeli assinala que gnosticismo, gnose e metafísica guénoniana são uma só e mesma coisa. Esta coisa, para O.F, é, também, a sua metafísica que, segundo ele, o senhor define como sendo o “conhecimento da natureza”. Contenho-me novamente.

Bravo Amilcar. Haja paciência para ouvir tanta tolice!

6) Após enunciar a definição de metafísica que ele imputa ao senhor, Fedeli apresenta o que, para ele, em conjunto com tal definição, seria a prova inequívoca do seu gnosticismo: o seu conceito de filosofia. Diz Fedeli que tal conceito jamais existiu e que é uma “invenção sua” e sua apenas, sem qualquer relação, portanto, com a Filosofia propriamente dita. Esta invenção seria, à evidência, gnóstica. Fedeli exemplifica: pretender fazer do homem e do conhecimento uma unidade é o mesmo que dizer que o homem e as coisas conhecidas são, também, uma unidade. E isto porque ambos possuiriam uma “fagulha” do intelecto divino, que deveria ser acessada. Para Fedeli, portanto, toda a sua filosofia, e a sua “interpretação” das filosofias anteriores, seria um esforço para explicar, justificar e promover esta “unidade” gnóstica, entre sujeito, objeto e “Deus”, realizada pela intuição. Para Fedeli, só Deus pode conhecer “o todo” e sua proposta de unidade seria, exatamente a de dar ao homem este conhecimento e, portanto, indentificá-lo com Deus. E seria essa a sua gnose.]

Porca miséria. O sr. Fedeli aí prova sua total inaptidão para ser até mesmo aluno do meu curso. Qualquer aluno que compreendesse dessa maneira minhas explicações sobre teoria do conhecimento seria convidado a retornar ao curso primário.

Peço a palavra. Mentalmente, estou “vendo” a sua entrevista ao embaixador Caius Tragomir. Reproduzo, abaixo, o excerto em que me baseei para dialogar com o Sr. Fedeli:

“(..)Isso ligava-se de perto a uma segunda questão: a inteligência é por natureza sistêmica, unificante, orgânica. Ela repele o inorgânico, o disperso, o fragmentário, que é morto. Logo, ERA PRECISO BUSCAR A UNIDADE DO CONHECIMENTO NA UNIDADE DA CONSCIÊNCIA, E VICE-VERSA. ISTO COLOCAVA ENFIM A QUESTÃO DO CONHECIMENTO COMO SISTEMA ORGÂNICO, OU DA UNIDADE DO CONHECIMENTO. QUANDO DIGO QUE ESSA UNIDADE DEVE SER DE TIPO SISTÊMICO – E NÃO APENAS “SISTEMÁTICO” –, SUBENTENDO QUE NÃO PODE TOMAR A FORMA DE UM SISTEMA DEDUTIVO, COMO NO RACIONALISMO CLÁSSICO, MAS SIM A DE UMA UNIDADE VIVENTE QUE SE IDENTIFICA, EM ÚLTIMA ANÁLISE, COM A UNIDADE DE UM ENTE VIVO E CONSCIENTE: O INDIVÍDUO HUMANO REAL, UNIDADE PSICOFÍSICA E ESPIRITUAL, É O PADRÃO DA UNIDADE DO CONHECIMENTO. O homem, o indivíduo humano, é o portador do conhecimento efetivo. O conhecimento enquanto bem social é apenas conhecimento potencial, é coleção de registros e convenções que, para tornar-se conhecimento efetivo, deve ser efetivado, atualizado na consciência do indivíduo vivente” [3]

À luz desse trecho, que eu verdadeiramente “via” em minha frente, procurei fazer ver ao senhor Fedeli que: (a) a sua (a de O de C) explicação de unidade estava disponível na internet; (b) a sua concepção de unidade era bastante diferente da que ele lhe atribuía: Fedeli empregava “unidade” como sinônimo de “identidade” [4] e atribuía isso ao senhor, que empregava “unidade” em outro sentido (o “estrato lógico do conceito”, ou, na terminologia de Mortimer Adler, os “termos” eram diferentes, muito embora a palavra fosse a mesma). Se, por exemplo, digo – como o senhor faz na entrevista ao embaixador – que o organismo humano é uma unidade, não estou dizendo que o coração e o pulmão são uma só e mesma coisa. E era, neste sentido, como deixa claro o excerto acima (e a aula de maio), que o senhor empregava o vocábulo. Porém, Fedeli se sentia no direito de dizer que a sua unidade significava que o conhecedor e o conhecido eram uma só e mesma coisa (as partículas divinas, que se “uniam”).

Fedeli toma a palavra. (Noto que ele – que, segundo me informaram, conhecia extremamente bem a sua filosofia – desconhecia a objeção por mim levantada). Em resposta, diz-me que tem vários livros que comprovam o que ele antes me afirmara. Diz-me, ainda, que o senhor “inventa essas coisas para nos enganar e que, como eu não entendo nada de filosofia, fica muito fácil me enganar”. Olha nos meus olhos e diz: “Filho, eu não estou mentindo para você. Eu não minto para os meus alunos. Eu não sou o Olavo de Carvalho. Eu prefiro morrer a mentir para um dos meus alunos.” E, prossegue: “Como você pode acreditar num homem que diz que está na direita e que já avisa que pode voltar para a esquerda? (Esta indagação só serve, naquele momento, para me provar que Fedeli desconhece o seu conceito de direita e esquerda, disponível, aliás, no Imbecil Coletivo II. Para O.F, quando o senhor diz que pode voltar a apoiara esquerda, está dizendo que pode voltar a apoiar o marxismo). Simplesmente não consigo responder a tão grosseira confusão.

Como é que esse idiota não entende que, por exemplo, diante da ameaça de uma ditadura de extrema-direita, seria moralmente obrigatório, mesmo a contragosto, apoiar a esquerda, caso esta reforçasse o lado democrático? Fazer do anti-esquerdismo um princípio metafísico absoluto e imutável em vez de uma simples atitude prudencial e contintente é mais que fanatismo: é doença. E dizer que há uns fulanos que me consideram um extremista de direita! Nunca viram um, na verdade.

9) Fedeli expõe novas “provas” do seu gnosticismo. Alega que o senhor diz que o homem conhece e que a pedra conhece porque ambos possuem “centelhas divinas” que se “encontram” no ato de conhecimento.

“Centelha divina”, para encurtar a história, é a vovòzinha. O entendimento que esse sujeito tem (ou finge ter) da minha filosofia é puro delírio projetivo.

Peço a palavra. Digo ao senhor Fedeli que ele esquece-se que, na sua (a de O de C) terminologia, conhecer é simplesmente receber informação e ser conhecido é transmitir informação e que existe, além disso, o inteligir, que é apreender a verdade. A pedra “conhece”, mas só o homem intelige. Assim, não poderia ele realizar aquela equiparação, com vistas a dizer que a pedra, no ato de conhecimento, “inteligiria” a fagulha divina do homem, e vice-versa. Cito o já famoso exemplo da pedra, que recebe informações sobre a lei da gravidade, mas não trasmite informações para si própria (o que, aliás, na sua terminologia, chama-se consciência). Descabida, portanto, a alegação do senhor Fedeli, que supõe presentes, no homem e na pedra, capacidades idênticas (pois idênticas as fagulhas divinas) de conhecimento, inteligência e consciência, necessárias à, por assim dizer, “unificação” no sentido fedeliano.

Fedeli toma a palavra e diz que conhecer e inteligir são uma só e mesma coisa (noto, pela sua entonação, que ele até então desconhecia ou não havia meditado sobre distinções terminológicas supramencionadas) e que essas distinções o senhor as inventara para nos enganar e, como eu não entendia nada de filosofia, ficava muito fácil me enganar.

Paciência tem limites. Minha gnoseologia, então, não é minha gnoseologia. É um disfarce que inventei para não confessar que sou gnóstico! Valha-me Deus!

Uma das testemunhas, (que até então estavam em absoluto silêncio), vem em socorro de Fedeli e diz que a pedra não “conhece” a lei da gravidade, mas sim a “padece”. Fedeli concorda. (Percebo, de imediato, o equívoco, exatamente oposto ao anterior. Se, antes, à palavra unidade era dado um significado diferente do que ela possui no seu conceito de filosofia, agora, em relação à palavra “conhecer”, fazia-se o contrário: trazia-se à colação uma outra palavra (padecer) cujo significado (estrato lógico), naquele contexto, era idêntico ao do vocábulo utilizado pelo senhor (conhecer). E com isso – com um sinônimo – se pretendia provar um “equívoco” seu.) Não verbalizo o raciocínio entre parênteses, por receio de magoar a testemunha que se manifestara. Limito-me a coçar a cabeça.

O entendimento que essa gente tem das minhas explicações é fantástico. Não é realmente possível que alguém com mais de 12 de QI confunda a ação da gravidade, que a pedra padece de fora, com a informação mineralógica que está na própria pedra e da qual, portanto, a pedra é registro e portadora. Nem é possível que, lendo meus textos de gnoseologia, alguém confunda o sentido ativo do conhecer humano com o sentido passivo em que as pedras e plantas são registros de conhecimentos potenciais. Muito menos possível é que, após fazer essa confusão, o cretino a atribua… a mim!

Uma vez que eu houvera dito que, na sua terminologia, inteligir era apreender a verdade, Fedeli, em tom desafiador, pergunta “E o que é a Verdade?”. (Tal frase fora dita no calor da discussão, e nem Fedeli nem eu reparamos na semelhança, que só agora percebo, com a passagem bíblica.)

Respondo: verdade é o fundamento cognitivo universal e permanente de validade dos juízos.

Fedeli assusta-se e, reagindo como se tivesse ouvido uma frase em grego, exclama e interroga: “Hein?!”

Repito lentamente a frase, e fica evidente aos presentes que Fedeli nunca antes ouvira a sua definição de verdade. Aqui já não se pode dizer que Fedeli tenha lido, mas não tenha meditado. Não. Por sua reação, ele jamais antes tivera conhecimento daquela definição.

De chofre, Fedeli nega a veracidade do seu conceito, dizendo que trata-se de uma invenção sua, com a função de nos enganar e que, como eu não entendia nada de filosofia, ficava muito fácil me enganar. Fedeli sustenta que a verdade é a adequação do juízo ao objeto, e diz que sempre foi assim. Respondo-lhe que isso, na sua terminologia, chama-se “veridicidade”, mas sou ignorado.

Está aí: o “conhecedor profundo” da minha filosofia ignora por completo os conceitos lógicos de verdade e veridicidade, que são pontos de partida do meu pensamento. E ainda diz que são “invenções minhas”, como se um filósofo ser autor de sua própria filosofia fosse um demérito!

10) Fedeli muda o rumo da conversa para a questão do maometismo [5] . Pergunta-me se já li o Alcorão e respondo-lhe que não. Informo-lhe que li apenas a tradução, que é considerada um “livro de doutrina”;

Fedeli, surpreso, indaga: “Ué, que história é essa? E a tradução do Alcorão não é o Alcorão”? E responde por mim: “Ah! Já sei! É por causa daquela história do gato! Ele ainda anda contando aquela história de que o Alcorão paralisa gato? E vocês acreditam nessa bobagem?!”

Respondo ao senhor Fedeli que não fiz aquela observação tendo em vista a história do gato (que de fato não me ocorrera), mas sim tendo em vista os ensinamentos que eu havia colhido de sites de teologia islâmicos, que chamavam eles mesmos as traduções de “livros de doutrina” e apenas o original de Alcorão. Acrescento, ainda, que o Alcorão mesmo traz em seu corpo o desafio aos incrédulos: desafia-os a escreverem, se puderem, um livro semelhante.

Fedeli surpreende-se novamente. Afirma que no Alcorão não há o desafio a que me referi.

Pergunta-me sobre a tradução que eu lera. Respondo-lhe que ela não possui editora, pois a retirei de um website [6] . Fedeli me diz que possui inúmeras traduções do Alcorão e que em nenhuma delas há aquele desafio.

Charlatãozinho barato. Você, Orlando Fedeli, não leu NUNCA tradução nenhuma do Corão. Se tivesse lido encontraria esse arquiconhecido desafio já na Sura II:23 e repetido em X:38 e XI:13.

Com essa, já são três as falsas remissões que você faz a livros que não leu. Não basta isso para que a gente perceba com quem está lidando?

Finalizo a controvérsia, dizendo ao senhor Fedeli que aceitava a impugnação que ele fazia da minha tradução e que, sendo falsa a base em que me apoiei, eu me limitaria a ouvi-lo e a pedir que ele me indicasse algumas traduções confiáveis. Fedeli me diz que há várias traduções boas e que depois me recomendará algumas. Eis os argumentos de Fedeli contra o “maometismo”:

— Maomé era um pobre analfabeto e casou-se com sua Segunda mulher para aplicar-lhe o “golpe do baú”.

— a Segunda mulher de Maomé era pessoa pouco confiável e dona de caravana, o que lhe possibitava travar frequentes contatos com estrangeiros;

Quanta erudição! Rica e dona de caravana era a primeira esposa de Maomé, não a segunda.

—  esses estrangeiros, judeus, é que teriam ditado a Maomé o Alcorão

Esses judeus deviam ser doidos, para ditar a Maomé um livro que os acusava de haver falsificado a Torah.

— Maomé inclusive frequentava a casa desses judeus, que o obrigavam, à noite, a decorar o Alcorão;

De que subliteratura ele tirou essas histórias da carochinha? São fofocas de hospício, meu Deus! Nenhum islamólogo ocidental com um mínimo de respeitabilidade acadêmica jamais deu atenção a esse gênero de tolices. Leiam Arberry, Dermenghem, Eliade, Corbin, Massignon e tutti quanti – não verão nada disso.

— As provas da influência judaica seriam (1) os excertos em que Maomé jura pela oliveira e pela figueira, árvores só existentes em terras dos judeus

Esse raciocínio prova o contrário do que pretende. O próprio Maomé dizia que o livro não fora escrito por ele, e sim ditado pelo Arcanjo Gabriel. Aliás é o que diz o próprio Corão. Por que, então, o livro deveria falar só de coisas vistas por Maomé?

O raciocínio do sr. Fedeli é um grosseiro non sequitur: o livro não é revelado: logo, foi escrito pelo próprio Maomé e só pode falar de coisas que Maomé conhecia; mas fala de coisas que Maomé desconhecia; logo, o livro não é revelado. Que papagaiada!

— (2) o Alcorão menciona. Deus é um e, portanto, só pode haver uma religião verdadeira;

Vil exploração de uma aparência de significado. O Corão afirma, sim, a unidade da religião verdadeira, mas inclui nela explicitamente os judeus e os cristãos, o que significa que “religião” nesse contexto, tem um sentido mais amplo, correspondente à palavra árabe din, que o sr. Fedeli desconhece.

— Outra prova de que não há qualquer influência divina no Alcorão seria o seu critério de edição. Na ausência de coerência interna, só restou aos editores o critério do “tamanho” das suratas. Em função daquele é que foi estabelecida a sequência destas. Para Fedeli, isso é algo ignomioso, afrontoso à inteligência e de um ridículo sem par. Isso o leva a indagar: “Como pode alguém acreditar num livro cujos capítulos foram dispostos em função da sua extensão?”

A ordem dos livros da Bíblia é um arranjo posterior, totalmente ignorado pelos autores inspirados no momento em que os escreviam. Isso acaso depõe contra a Bíblia? Ou o sr Fedeli, porque conhece essa ordem, compreende melhor o livro sagrado do que os autores humanos que não a conheciam? Basta esta observação para notar que a objeção inventada por ele contra o Corão é pura malevolência delirante.

O Corão, nas edições comentadas dos teólogos, é disposto em ordem segundo o arranjo teológico dos temas, mas não se viu (nem há) razão para que essa ordem estatuída ex post facto devesse predominar nas edições simples.

Tendo eu dito que não discutiria a matéria em função de haverem sido impugnadas as minhas fontes, limitei-me a, em função desta última crítica de Fedeli, formular-lhe duas perguntas, sendo a segunda de ordem metodológica. Primeira: perquiri sobre o destino dos hindus, muçulmanos e todos quantos, mesmo involuntariamente, não haviam recebido os influxos do cristianismo. Fedeli foi taxativo: “Se continuarem assim, irão todos para o inferno” (cito literalmente). Alguns segundos de silêncio são feitos; todos querem explicações. Fedeli mantém-se quieto e firme. Passo à Segunda questão: Indago-lhe se, aquele mesmo esforço que ele fizera para demonstrar a incoerência interna e a falsidade do Alcorão, ele havia também feito em relação ao cristianismo e a Igreja Católica, a fim de verificar que resultados obteria [7] . E se, o mesmo esforço que fizera para coerenciar os ensinamentos da Igreja, as passagens bíblicas e todo o depósito de conhecimentos cristãos, ele dispensara também à tradição islâmica.

Fedeli entra em estado de superexcitação. Olha para uma das testemunhas e exclama: “Eles querem me pegar em contradição! Ha! Ha! Ha!”. Olha para a outra e, vibrando, fala: “Eles acham que vão me pegar em contradição!”. E ri de novo. “Pois não vão não!” [8] .

O homem, de fato, não está bom.

Fedeli “responde-me” que “antes de converter-se, estudou muito a religião católica, e que não há livro mais perfeito e harmônico que a Bíblia. (Desnecessário dizer que minha pergunta não fora a esse respeito).

11) Provavelmente descontente com o fato de eu não haver mudado de opinião a respeito do Seminário e do senhor, Fedeli tenta recorrer a provas mais “acessíveis”. Pergunta-me: “Mas escute aqui, você não percebeu ainda que está numa organização maçônica, em que alguns são eleitos para receber os ensinamentos esotéricos? Você não notou que o pessoal do Rio recebe um tratamento diferenciado? O Pedro Sette Câmara, por exemplo, sabe de um monte de coisas que você não está sabendo.” (o tom da frase deixa subentendido que Fedeli também dispunha das informações de Pedro Sette e que elas confirmariam a tese fedeliana).

Que coisa espantosa! Os alunos que freqüentam meu curso há mais tempo sabem mais do que aqueles que chegaram depois! Tal é a prova de que se trata, inequivocamente, de uma organização maçônica! C. Q. D.

Respondo ao senhor Fedeli que: sinceramente eu nunca havia reparado em nada daquilo e que, ao contrário, eu sabia que o senhor havia recomendado a uma pessoa que se afastasse da maçonaria [9] .

Fedeli replica informando-me que o senhor pertence à maçonaria do Grande Oriente.

Mentira pura e simples. Não pertenço a Maçonaria nenhuma, do Oriente ou do Ocidente, do Norte, do Sul ou de Catolé do Rocha. Não pertenço a nenhuma sociedade, secreta ou pública, com exceção do Sindicato dos Jornalistas e da União Brasileira de Escritores. O sr. Fedeli, aí, revela-se mais que nunca o autêntico charlatão manipulador, que joga com informações falsas sabendo que o interlocutor não tem meios de conferi-las.

Objeto, indagando-lhe se o Padre a que o senhor teria pedido orientação também pertencia à maçonaria do Grande Oriente.

Fedeli informa-me que o Padre é membro da maçonaria ocidental, e que ambas as maçonarias estariam unidas nessa empreitada pois, assim como judeus e romanos uniram-se para crucificar o Cristo, agora também as forças maçônicas do oriente e do ocidente uniram-se movidas pelo interesse comum de impedir a vitória do cristianismo.

Conheço o padre a que ele se refere. É um membro do grupo fundado por Gustavo Corção e, como este, um antimaçom ferrenho (coisa que eu próprio não sou, pois me permito ter as minhas próprias idéias – nefando pecado! – sobre as relações entre Igreja e Maçonaria, as quais idéias expus nos capítulos finais de O Jardim das Aflições). Nada, nada na vida ou nos atos desse sacerdote indica nem de longe qualquer ligação com a Maçonaria. Ao perguntar-me de onde poderia o sr. Fedeli ter tirado idéia tão estapafúrdia, a única hipótese que me ocorreu foi a seguinte: o padre de que ele fala é um judeu convertido, e em geral os teóricos da conspiração maçônica, como o sr. Fedeli, não falam só de conspiração maçônica, e sim judaico-maçônica. Não vejo que outra linha de raciocínio ele pode ter seguido, se é que isso é linha e se é que é raciocínio.

12) (O que relatarei neste tópico e nos dois próximos foi discutido entre a exposição dos argumentos contra o islamismo. Por eu não poder precisar o ponto exato em que os temas foram abordados, e por serem questões relativas apenas à sua filosofia e que em nada se relacionam com o islamismo, tratarei delas em tópicos distintos, registrando, uma vez mais que entre os temas não houve transição harmônica, razão pela qual mantenho o esquema expositivo até aqui adotado.) Fedeli me diz que a dialética [10] é gnóstica, pois teria função de paralisar e inutilizar a razão, para que a intuição entrasse em operação e promovesse o “conhecimento” na acepção gnóstica do termo. Para provar o papel paralisante da dialética, toma uma caneta em suas mãos e me diz algo bem próximo disso: “Olhe aqui. Isso aqui é uma caneta. Ou é ou não é. Não tenho que ficar “dialetizando” nada. Para que ficar no ‘é caneta ou não é caneta’?”

Mas que supremo idiota! Ele nem percebe que está dialetizando! A conclusão inescapável é que ele não tem a menor idéia do que seja dialética, pois não a reconhece nem quando ela sai da sua própria boca.

Essa alternância “dialética” inviabilizaria o conhecimento racional, possibilitando apenas o intuitivo. E, para Fedeli, o intuitivo, ao menos na sua filosofia (não ficou claro a esse respeito o alcance da posição de OF), seria, como já vimos e como veremos no próximo tópico, a unificação das partículas divinas.

A interpretação que o sr. Fedeli faz da dialética bastaria para arruinar – se valesse mais que um arroto de mico – todo o método de Aristóteles e, junto com ele, a estrutura da disputatio escolástica que modela a Suma Teológica de Sto. Tomás. Não creio que devamos nos ocupar dessa hipótese.

Respondo a Fedeli que ele havia, para provar a função paralisante e a inutilidade da dialética, recorrido a um objeto de experiência. Estou “vendo” o seu texto Gilberto Freyre: Ciência Pessoal e Consciência Social:

“Usamos, por exemplo, a palavra “física”, supondo que existe no universo um campo, ou uma faixa, correspondente a objetos que chamamos “físicos”. Mas com um pouco de estudo descobrimos que essa palavra significava uma coisa para Aristóteles, outra para Newton, outra para Planck.” .

Pergunto a Fedeli sobre como resolver o problema sem recorrer à dialética para equacioná-lo. Ele me “responde”: “Evidentemente, só um deles está certo. Os outros estão errados. Só há uma Física” [11] .

Credo in unum Deum transformou-se em Credo in unam Physicam. E o gnóstico sou eu, porca miséria! Nunca esperei viver o bastante para ver uma coisa dessas! Longe de mim a tentação de discutir com o autor dessa doutrina, mas, para informação dos demais, não custa lembrar que o método da física aristotélica é dialético e que a crença em uma física absolutamente unívoca, sem as ambigüidades e imprecisões que Aristóteles (um antecessor do probabilismo) via em tudo quanto é da natureza sensível, é um sonho gnóstico renascentista, do qual tratei em O  Jardim das Aflições. Não tive tempo nem sou paranóico o bastante para ficar ciscando indícios de gnosticismo no pensamento vivo de Orlando Fedeli, mas asseguro que esse não é o único.

(Estou “vendo” o resto do texto [12] , mas sou incapaz de citá-lo, por colocar o Sr. Fedeli em situação extremamente constrangedora. Neste momento abateu-se sobre mim a máxima desolação).

13) Fedeli explica ao meu amigo o problema da intuição, da razão, e do conceito. Diz a ele que conceito vem de conceber e que quem concebe é a razão, e não a intuição. Esta consiste em ir em direção a, ao passo que aquela é que, abstraindo, “conceberia”.

E abstrai de onde, caramba, senão dos dados intuídos?

Eis porque faltaria qualquer base ao que o senhor chama de intuicionismo radical, que seria, para OF, apenas mais um elemento gnóstico, resultado do seu menosprezo pela abstração e pela razão, faculdade incapaz de apreender as centelhas divinas, centelhas estas cuja apreensão se daria pela intuição [13] .

Lá vem ele de novo com a centelha divina. O objeto de intuição é a forma presente. Se dentro dela há uma centelha divina ou não, isto é problema do Orlando Fedeli, do qual nunca me ocupei.

14) Fedeli retomou a exposição sobre o Alcorão e no seu curso, não pôde deixar de reparar em meu estado. Pede-me para que fale com ele e, com simpatia, pergunta-me se estou magoado. Arrisca conjecturar que eu estaria magoado pelo fato de ele estar atacando alguém de quem eu gostava muito (o senhor). Nada mais longe do que de fato se passava comigo, e que já descrevi. Balbucio algumas palavras, desolado.

14) Fedeli nos adverte que Jesus, em muitos casos, passava apenas uma vez pela vida das pessoas, e que, portando, devíamos estar muito atentos para que, quando ocorresse essa passagem, não a jogássemos fora e nos condenássemos.

Essa ostensiva negação da misericórdia divina faz do sr. Fedeli um herético de carteirinha. Jesus jamais nos abandona. Ele fica conosco e bate à nossa porta até o último instante. Bate até à porta de um renitente culpado de superbia como o sr. Fedeli. Não temam, portanto: quando o sr. Fedeli voltar as costas a vocês, dizendo “Não vos conheço”, Jesus ainda os conhecerá e amará como sempre amou.

15) Fedeli se diz contrário a que freqüentemos o Seminário: nos explica que sua missão é a de salvar jovens e que, nos últimos vinte anos, salvou muitos rapazes e moças. Por isso, explica, pediu aos seus alunos que ainda frequentavam o Seminário que levassem à presença dele rapazes e moças – alunos apenas do Seminário – verdadeiramente dispostos a conhecer.

Só quem salva é N. S. Jesus Cristo. O sr. Fedeli não pode se salvar nem a si mesmo. Principalmente depois de dizer uma enormidade dessas.

16) Temos de deixar a Montfort, em virtude de o último ônibus para Curitiba estar quase de saída. Rezamos todos uma ave-maria, e Fedeli pede a Nossa Senhora que nos ilumine. Suplica-lhe para que nos faça ver a verdade, seja ela qual for e que, se for ele o mentiroso, não nos deixe a mãe do Cristo retornar à Montfort.

Amilcar Nadu não retornou e, a cada dia que passa, mais se mostra escandalizado com a demencial soberba do “salvador de almas”. O voto do sr. Fedeli a Nossa Senhora está valendo, ou era só para impressionar?

17) Fedeli coloca-se à nossa disposição, inclusive para vir a Curitiba quando desejarmos. Diz que nos dará aulas sempre que quisermos, com a única “condição” de nunca nos cobrar nada.

A generosidade com que o sr. Fedeli oferece gratuitamente seus ensinamentos permite concluir que nem ele nem sua Associação vivem deles – nem de mensalidades quaisquer, que seriam uma forma indireta de pagamento das aulas, fazendo de seu oferecimento um ardil, coisa que nem me passou pela cabeça, evidentemente. Por outro lado, ele não deve ser um homem ocupado com afazeres rentáveis, já que ocupa seus dias caçando heréticos e estudando textos esquecidos de autores desprezíveis, coisa que não lhe é de nenhum proveito material (e, creio eu, nem mesmo espiritual, mas isto não vem ao caso). Sendo assim, e já que ele se dispensa de qualquer averiguação antes de afirmar resolutamente minha filiação a tais ou quais organizações secretas, será que há de se ofender se eu perguntar – apenas perguntar – quem, afinal, sustenta essa brincadeira toda? Ele não é obrigado a me responder, nem eu a acreditar na sua resposta.

18) Ao nos despedirmos, retorno ao assunto do “Maometismo” e peço ao Sr. Fedeli que me recomende as traduções do Alcorão que ele julgava confiáveis, uma vez que a minha havia sido impugnada. Fedeli me responde que há várias traduções. Peço-lhe que me recomende alguma, e ele me diz para “ler qualquer uma, pois aquilo é tudo lixo do mesmo jeito”.

Lixo são as remissões fingidas a livros nem lidos nem consultados. Lixo é espalhar informações falsas prevalecendo-se da impossibilidade em que o interlocutor está de verificá-las. Lixo é usar um voto a Nossa Senhora como blefe para impressionar a platéia. Lixo é, em toda a linha, o exemplo que Orlando Fedeli dá a seus alunos.  

19) Fedeli nos leva a uma estação do metrô, e retornamos a Curitiba.

Notas

[1] O oferecimento de hospedagem não foi, de forma alguma, um ato de mera gentileza. Posso dizê-lo com certeza porque quando frequentei o extinto Seminário Literário, Bruno Tolentino incomodado com o fato de eu ter de dormir em hotéis, indagou de modo indireto mas bastante claro ao hoje aluno de Orlando Fedeli, se poderia ele me hospedar, tendo obtido em resposta uma negativa que veio em forma de mudança de assunto. Quando a mesma pessoa, que nunca antes havia me ligado, telefonou-me oferecendo-se para hospedar-me, tive assim redobrados os já significativos indícios de que havia o meu amigo recebido a orientação superior de tentar “salvar-me”, orientação esta que, como veremos, o senhor Fedeli explicitará ao final da nossa conversa.

[2] A demonstração das aplicações da TQD em campos como o da Psicologia e de seu valor como armadura espiritual foram já fornecidas oralmente a Luciane Amato, e por ela aprovadas.

[3] Note, por favor, que não havíamos tido, ainda, a aula do mês de maio, em que o senhor explicou – inclusive com certas atualizações em relação à terminologia usada na entrevista ao embaixador – as diversas acepções

[4] E mesmo o termo identidade seria aqui equívoco. Fritof Schuon, por exemplo, diferencia a “identidade substacial” da “identidade essencial” (Da Unidade Transcendente das Religiões). Esta observação me ocorrera concomitantemente à que estava verbalizando ao senhor Fedeli, mas por absoluta incompetência minha, não a formulei. Cumpre-me, aliás, registrar, que me foi tremendamente difícil expor o que expus ao senhor Fedeli, em primeiro lugar, por incompetência e, em segundo, porque, como registrei e como veremos, o senhor Fedeli, ao ser contraditado, recorria a expedientes pouco dignos de um professor, e menos dignos ainda de um “salvador de almas”, como ele se denomina. Como forma de atenuar a minha culpa por tão imperfeita e precária exposição, expliquei ao meu companheiro de viagem – que mal pôde dormir – umas dez vezes e com cem vezes mais detalhes – cada objeção do Sr. Fedeli.

[5] Em função dos inúmeros e surpreendentes mal entendidos acima descritos, eu tentava, naquele momento, compreender as origens daquela situação para que pudesse encontrar um ponto arquimédico a partir do qual fosse possível e uma forma diplomática que tornasse viável explicar ao senhor Fedeli algo da sua filosofia, em tom não professoral ou polemista. Acostumado, como todos os alunos do seminário, à má-fé dos comunistas – advogados à altura da causa que defendem – surpreendeu-me, embaraçou-me e deprimiu-me, (como reparou o próprio Sr. Fedeli e como veremos adiante) o fato de encontrar um defensor do cristianismo como o diretor da Associação Montfort. Minha intenção, àquela altura da conversa, já não era mais a de ouvi-lo; era a de tentar encontrar um modo de fazê-lo ao menos considerar a posição verdadeiramente preconceituosa que ele assumira. A mudança de assunto exigiu de mim e talvez de todos um tremendo esforço de concentração. No que me concerne, confesso que fui incapaz de dirigir toda a minha atenção ao novo tema. Preocupava-me muito a concepção errada que aquele defensor do cristianismo tinha da sua filosofia.

[6] Naquele momento não me lembrei do endereço do site: http://www.supervirtual.com.br

[7] A pergunta trazia explícita a regra de Fritojf Schuon, que apontou, por exemplo, na Bíblia, a intervenção do Espírito Santo, proibindo a pregação dos Apóstolos em área na qual posteriormente vingaria o islamismo. Minhas preocupações, porém, eram de outro nível, bem mais baixo e imediato: o que especificamente me movia a fazer aquela pergunta era o fato de um cristão não perceber os flancos que abre ao, extra muros, apontar como prova de falsidade de outra tradição o critério de edição de seu livro. Que aconteceria aos cristãos do site se o incauto Sr. Fedeli se abrisse um tópico no Fórum Sapientia e, sob o olhar do Sr. Caio Rossi e outros tantos, lá formulasse as críticas supradescritas ao Alcorão? Imediatamente choveriam textos, histórias sob a seleção e edição de Evangelhos etc. Todos os que frequentaram aquele fórum são, aliás, testemunhas do assanhamento que as discussões sobre as “tradições” provocam nesse tipo de gente, que tenta realizar o desejo que o Sr. Otávio Frias sintetizou de modo exemplar: que as religiões se anulem umas às outras. Eu já havia advertido os alunos do Sr. Fedeli, desde o segundo mês da polêmica, a não atirar pedra em telhado alheio sem antes verificar o estado do seu o próprio. Aconselhei a todos que seguissem as regras de Schuon e as suas. Exemplifiquei minhas assertivas e deixei claras as minhas preocupações. Especialmente porque o seu artigo publicado em O Globo sobre o tema ainda não havia sido escrito, coube-me alertá-los das possíveis consequências dos ataques que porventura viessem a fazer às outras tradições.

[8] O fato de o Sr. Fedeli achar que eu formulara a pergunta maliciosamente, quando o fiz movido pelas preocupações acima externadas, só aumentou o meu abatimento. Eu, que já me encontrava afundado na cadeira, desabei de uma vez. Incapaz de encontrar uma solução, passei a olhar para o vazio. Era esse o quadro que eu via: fala-se mal de Karl Marx e aparecem, de todos os lados, críticos. Fala-se de um assunto importantíssimo, espinhoso e novo aos olhos do público, como o da unidade das religiões (Lembrete de Natal) e ninguém dá a mínima, o que assinala o total descaso pelos temas religiosos. Num cenário desses, qualquer manifestação de alguém que pretenda “defender” o cristianismo é, a princípio, auspiciosa, por assinalar que ao menos existe preocupação com o assunto, por pouco culto que seja o defensor. Porém, o auspício transformou-se em suplício, em função do que relatei. Eu mal conseguia me sustentar, e o clima era o de um velório; nada mais distante de um ambiente polêmico e mesmo jocoso, que provavelmente teria lugar se a discussão fosse com um irredutível petista a respeito de Cuba.

[9] Ocorria-me naquele momento o caso da Professora Luciane Amato.

[10] Não me foi possível, embora eu tenha tentado, apurar o que o senhor Fedeli entende por dialética. Ele, no início desta discussão, me perguntou em tom desafiador o que eu entendia por dialética e, quando iniciei a resposta, explicando-lhe que a dialética, tal como o senhor a empregava, era a … Fedeli interrompeu-me, sentenciando que só existia uma dialética, e passou a exemplificar os seus efeitos com a caneta. Assim, achei lícito presumir que, para o Sr. Fedeli, a dialética, a “única que existe” é sempre gnóstica. Empreendi uma pesquisa no site da Associação Montfort, de onde retirei esse excerto bastante esclarecedor:

“A DIVINDADE DIALÉTICA

A metafísica católica se fundamenta na verdade de que o ser é o que é.

Tal é o princípio de identidade. Todo ser é idêntico a si mesmo. Disso decorre o principio da não contradição: uma coisa não pode ser ela mesma e outra, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto.

E isto é assim porque o próprio Criador de todas as coisas é idêntico a Si mesmo. Essa realidade é confirmada pela Revelação e pela Teologia. “Eu sou aquele que é”, disse Deus, o Ser absoluto, a Moisés no Sinai.

Contrariamente, a dialética – no sentido metafísico do termo – nega a identidade do ser, o que é uma característica da gnose.

A visão dialética do ser sustenta que este possui, em si mesmo, dois princípios absolutamente iguais e contrários, em constante oposição. Imanente a todo ser haveria um constante antagonismo de dois princípios ou forças opostas que, sendo iguais, se anulariam, causando uma instabilidade tal que nada seria jamais idêntico a si mesmo.

Os que admitem a dialética afirmam que de tal modo as coisas estão constantemente mudando que, na realidade, sequer se poderia dizer que existe a coisa que muda, mas apenas a mudança, o devir. Portanto, não haveria ser.

Foi o que ensinou, por exemplo, Heráclito.”

(www.montfort.org.br/veritas/mestre.html)

Também Guimarães Rosa é apontado por Fedeli como gnóstico, e sua dialética apontada como prova do gnosticismo. E, em seu texto sobre o romantismo alemão, Fedeli dirá que aquele do movimento tem formulações de natureza paradoxal ou, “mais precisamente, dialética”.

[11] Em função do texto que reproduzi na nota anterior, pude compreender posteriormente o que Fedeli pretendia dizer com o seu “só há uma Física”. Quando citei a ele a multiplicidade de significados do termo, Fedeli inexplicavelmente achou que aquilo seria o mesmo que defender múltiplas mudanças, paradoxais e contraditórias, na realidade a que o vocábulo se referia. Isso, aliás, atesta mais uma vez um completo desconhecimento da sua filosofia. A leitura do próprio texto sobre Gilberto Freyre deixaria bem clara ao Sr. Fedeli a improcedência de sua suposição. E, o texto “Os três estratos do conceito” colocaria por terra qualquer dúvida remanescente, ao esclarecer e delimitar inequivocamente o as relações entre uma palavra, seus diversos alcances, a intenção de quem a usa e a realidade mesma. Registre-se, porém, que a minha exposição não deixou margem a dúvidas. Registre-se ainda que, do fato de haver uma só realidade, evidentemente não se pode deduzir a inutilidade da dialética, cuja necessidade é atestada pelo exemplo acima citado e pelo trecho abaixo transcrito. Fedeli deduzia ainda do fato de haver uma só Física outro fato: o de que apenas um dos cientistas estaria correto. Não poderiam todos estar errados e nem parcialmente certos. Esta confusão eu a percebi imediatamente, mas, novamente, para não embaraçar terrivelmente o Sr. Fedeli, só vim a comentá-la na viagem de volta, com a outra testemunha que subscreve este relato.

[12] “Aí não temos alternativa senão perguntar se essas três significações dadas à palavra designam três aspectos percebidos sucessivamente no mesmo objeto ou três objetos completamente diferentes. No primeiro caso, contraímos a obrigação de descobrir qual a unidade ou substância da qual esses três aspectos são as propriedades ou acidentes. E, quando tivermos a felicidade de descobri-lo, teremos inaugurado uma quarta acepção da palavra física, incumbida de designar o estudo científico do objeto unitário cujos aspectos separados foram estudados sucessivamente por Aristóteles, Newton e Planck. Na segunda hipótese, isto é, se descobrimos que o termo escolhido designou historicamente três objetos diversos e independentes, o problema que isto nos coloca é mais espinhoso ainda: trata-se agora de saber se as distinções entre as três ciências que receberam ao longo do tempo o mesmo nome de “física” correspondem a distinções objetivas, isto é, às fronteiras que separam os entes entre si, ou se refletem apenas três distintas direções possíveis da atenção humana, projetada acidentalmente sobre entes, propriedades e acidentes escolhidos a esmo.”

[13] Na viagem de retorno, expus ao meu amigo o equívoco cometido pelo senhor Fedeli. Expliquei a ele que em “Os três estratos do conceito” estava apontada a origem etimológica do termo. Tanto em latim quanto em alemão, o termo remete à noção de “pegar, agarrar” várias coisas ao mesmo tempo. Ora, “pegar, agarrar”, requer evidentemente que se “vá em direção” do objeto. Longe, portanto, de excluir, o conceito exigia a faculdade intuitiva. Ao senhor Fedeli nada foi dito, pois já havia ficado claro que seria inútil argumentar com quem não estava disposto a me ouvir, e que havia havia se dispensado de examinar o texto em tela..

Assinalei ainda a falsa sensação – falsidade registrada em seus textos – que temos de poder opor um conhecimento “racional” à “intuição”. A análise etimológica e todas as suas considerações, disse-lhe, deveriam servir para que, nós próprios observássemos o nosso modo de conhecer. Esta simples auto-observação bastaria (como me bastou) para atestar a veracidade do intuicionismo.

 

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