Leituras

O desafio do mito brasileiro

Por José Nivaldo Cordeiro


15 de julho de 2002

“Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara
Estava pregada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho.
Já tinha envelhecido.”
Fernando Pessoa, “Tabacaria.”

Aviso: Se, caro leitor, na aventura que será escrever as próximas linhas eu conseguir que você vislumbre o sentido que eu quis dar aos versos postos em epígrafe, terei pago o meu trabalho. Se não, sou mesmo um desterrado e indigno dos versos do poeta.

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Martim Vasques da Cunha presenteou-nos com um soberbo ensaio (O Desterro de Todos Nós, publicado no jornal eletrônico “O Indivíduo” – www.oindividuo.com) sobre a obra de Sérgio Buarque de Holanda, toda ela no que tem de relevante, que o garoto é muito pretensioso, além de erudito e competente. Santa pretensão, que me deixou há três dias com o seu ensaio na cabeça! O texto é simplesmente brilhante. E o Martim usa e abusa do método comparativo para narrar a sua tese. Aí vemos desfilar grandes nomes da literatura nacional e universal, o que torna a sua criação uma pequena obra-prima. E, no final, vemos o desfecho talentoso no rigor conclusivo: em nenhum momento perde o fio da meada. Martim é um legítimo discípulo de Eric Voegelin.

Comecemos pelo fim, que é realmente o que nos interessa. Afinal, vivemos tempos de grandes perigos (não o Fim, obviamente), que não foram formados de agora. Idéias têm conseqüências e a Nação brasileira está agora se confrontando com o fantasma de Sérgio Buarque de Holanda. Na verdade, com ela mesma. Vejamos o seguinte trecho:

“Por mais que evitasse a ideologia, Sérgio Buarque de Holanda acabou caindo no mesmo poço de um passado triste: aquele que endeusa a religião de Estado, o único que pode ‘compor um todo perfeito de partes tão antagônicas’. Assim fica claro porque o Partido dos Trabalhadores, para legitimar sua fundação em termos intelectuais, sempre usa o nome de Sérgio e de seu filho Chico Buarque como ‘fundadores do PT’. Tanto o historiador da alma brasileira como o PT, acreditam num Estado que possa solucionar todos os problemas sociais, num Estado que seja equilibrado, mas que inevitavelmente descamba para o totalitarismo que mata somente a consciência individual, a única que pode se rebelar contra os poderes estatais, talvez por ser uma estranha parte de unidades tão antagônicas. Mas não é só o PT: a influência de Raízes do Brasil, Visão do Paraíso, Do Império à República e muitos outros, afetaram os escritos de Mangabeira Unger, não por acaso o guru do novo queridinho das pesquisas eleitorais, Ciro Gomes, além de, obviamente, o programa falsamente neoliberal de nosso presidente FHC”.

Vemos que a coisa é séria. É todo o imaginário político brasileiro que foi contaminado. Eleições não são apenas eleições. O estabelecimento de uma ordem começa pela compreensão da vida social e da História, coisa que, como povo, estamos longe de fazer. Nossos líderes intelectuais e políticos não sabem aonde nos conduzir. Sérgio Buarque parte do referencial teórico de Weber, cuja principal conclusão é não apenas insuficiente, como incapaz de fornecer os instrumentos para uma adequada análise do mundo ocidental, aí incluindo o Brasil (ver meu artigo anterior sobre o assunto). Martim, com muito rigor – e até uma dureza radical – afirma:

“No fim das contas, o estilo (do Sérgio) esconde idéias perigosas que não levam a lugar nenhum – idéias que são mais desterradas que os próprios brasileiros que Sérgio queria decifrar. Mas como podemos solucionar um enigma, se já temos uma idéia pré-concebida do problema e desenvolvemos em dissipações ideais que vão se rebaixando cada vez mais, chegando até uma outra realidade, que deverá contornar a nossa para que a lacuna entre o arcaísmo e a modernidade seja preenchida? Para superar os abismos, Sérgio Buarque de Holanda quer andar sobre uma ponte de pó – e essa ponte é nada mais, nada menos que o Estado.”

Idéias não apenas perigosas, mas erradas, ainda que narradas de forma rica, em prosa vigorosa. Martim se pergunta: “O que o levou a esse erro tão grosseiro?” Responde:

“Em primeiro lugar, apesar de Max Weber não compreender que a vida de um católico pressupunha a aceitação do mistério, não racionalizando-a através do trabalho, ele sabia que a ética cristã não é apenas a ética protestante, mesmo sendo esta a que mais determinou o ‘espírito do capitalismo’, segundo suas conclusões. Contudo, Sérgio Buarque, amparado por Tawney, confunde a vida cristã… com a protestante, quando esta foi uma reação de caráter gnóstico… Os equívocos se multiplicam sem parar: desde quando a vida cristã é sistemática e organizada se ela é, como toda vida religiosa que se preze, a aceitação do mistério da existência? Como se pode afirmar que um cristão prefere a ação à contemplação, se a grande novidade do Cristianismo foi justamente a união entre a vida contemplativa e a vida ativa, para que a ação na realidade concreta fosse muito mais plena e condizente com a ordem divina – atitude, aliás, prenunciada por Aristóteles ao falar sobre o spoudaios, o homem maduro que passa da contemplação à ação numa atitude dialética, de confronto consigo mesmo, para então encontrar a verdade que está além dos opostos? Além disso, como se pode querer entender a alma brasileira, ancorada sobre princípios católicos da metrópole portuguesa, se não se tem uma noção justa da vida cristã, com todas as suas ambigüidades, mesmo que o brasileiro seja uma perversão do Cristianismo?”.

Chega de citações. A análise de Martim está corretíssima. O fato é que Sérgio Buarque errou por se apoiar em um autor (Weber) que estava errado; errou porque mirou uma tipologia idealizada, quando deveria ter dissecado a realidade que o cercava; errou porque não compreendeu o Cristianismo; errou porque se portou como um lusitano desterrado, tão bem espelhado nos versos de Fernando Pessoa, que seguem:

“Outrora eu era daqui,/e hoje regresso estrangeiro,/forasteiro do que vejo e ouço,/ velho de mim.”

Olavo de Carvalho, em um artigo já antigo (Do mito à ideologia), publicado no Jornal da Tarde em 29/03/2001, afirma que “a Bíblia, mito fundador da civilização ocidental, está no fundo de toda a nossa compreensão de nós mesmos e de todas as nossas possibilidades de ação”.E prossegue: “Fora disso, não há senão ideologia, erro, loucura”.

Quanta precisão no filósofo! A obra de Sérgio Buarque de Holanda e a de seus discípulos e sucessores na Academia e no meio político têm feito apenas isso: erro. Um erro levando a outro erro. Mas como poderiam ateus entender de coisas que estão muito fora do seu alcance? São uns cegos indígenas guiados por cegos alienígenas, rumando para o poço profundo, à escuridão mais sombria.

O grande enigma do ser brasileiro ainda está por ser decifrado? Ainda estamos a procura de uma resposta? Em busca de nós mesmos? Essa será talvez a única lacuna no ensaio do Martim, ele que tão bem conhece as nossas letras e o grande mestre, Guimarães Rosa. Rosa decifrou o enigma, Martim bem o sabe, mas acho que esqueceu por um momento, atarefado que estava com os cegos de alma. É Riobaldo o seu nome, o nosso arquétipo, a síntese de todos os nossos guerreiros, o gaúcho e o jagunço, o bandeirante e o vaqueiro, o índio, o negro e o colonizador, a síntese de nosso povo moreno. Riobaldo é o conquistador que ousou atravessar o Rio e enfrentar, com a ajuda do anjo Diadorim, os nossos demônios, o Demônio. E venceu, pela Graça de Deus. “Grande Sertão, Veredas” é a saga do povo brasileiro transformada em obra-prima da literatura universal.

Precisamos agora anunciar isso em praça pública, nas escolas ensinar às nossas crianças, nos palanques aos eleitores, na TV a todo o povo. Sim, temos um herói cristão que é o nosso espelho, está no nosso sangue. Ele saiu do extremo da senzala e acabou na Casa Grande. Antes de conquistar o mundo, conquistou e salvou a sua alma. Quem sabe ao fazer isso, daqui a uma ou duas gerações tenhamos perdido o medo das próximas eleições.

O autor é economista e mestre em Administração de Empresas pela FGV – SP

Capitalismo e liberdade (I)

Por José Nivaldo Cordeiro

14 de julho de 2002

“A essência da filosofia liberal é a crença na dignidade do indivíduo, em sua liberdade de usar ao máximo suas capacidades e oportunidades de acordo com as suas próprias escolhas, sujeito somente à obrigação de não interferir com a liberdade de outros indivíduos fazerem o mesmo”. Milton Friedman.

As idéias liberais no Brasil estão confinadas a um gueto de imperdenidos homens de elevados ideais e aguçado senso histórico, que anunciam que o perigo – não um mero sentimento de perigo, uma simples ameaça potencial – mas um perigo real que ameaça a vida e a liberdade das pessoas está à espreita, seja pela desordem econômica, seja pelo estímulo ao conflito social, seja porque pessoas despreparadas para o poder e dispostas a implantar seus preconceitos destrutivos como ação de governo estão na iminência de assumirem a presidência da República. São tempos de grandes perigos, de fato, os que estamos a viver.

Ler o livro de Milton Friedman, “Capitalismo e Liberdade” (Ed. Abril, 1984), é como receber um copo de água em pleno deserto escaldante. O livro foi um instrumento de combate, publicado originalmente em 1962. No prefácio que fez em 1982 ele lembra – não sem ironia e amargura – que esse livro não recebeu uma nota sequer na imprensa dos EUA quando da sua publicação, tomada que estava pelos ideais coletivistas e que via nos liberais um grupo exótico, que não merecia maior destaque. Lembra Friedman que em 1964 Barry Goldwater foi o candidato Republicano às eleições, defendendo os ideais liberais. Sofreu uma fragorosa derrota. Já em 1980, Reagan foi eleito com o mesmíssimo programa. O que mudou? Nas suas palavras:

“”Muitos dos ambiciosos programa de reforma – ideais do passado, tais como bem-estar, habitações populares, apoio aos sindicatos, integração nas escolas, ajuda federal à educação, atividade produtiva (do governo, acrescento) – estavam indo por água abaixo. Quanto ao restante da população, suas economias estavam sendo dilapidadas pela inflação e pelos elevados impostos. Esses fenômenos, e não a força das idéias expressas em livros que analisam princípios, explicam a transição da fragorosa derrota de Barry Goldwater em 1964 para a esmagadora vitória de Ronald Reagan em 1980 – dois homens que apresentaram, essencialmente, o mesmo programa e a mesma mensagem”. (Grifo meu).

É como se o Brasil estivesse parado no ano de 1964. Só que aqui o grau de perturbação – diria mesmo de deterioração – da vida e da liberdade das pessoas alcançou graus de países que vivem sob a bandeira das chamadas democracias populares. A rigor, os ideais liberais nunca tiveram muitos adeptos por aqui, e quanto mais impostos se cria e quanto mais regulamentos restritivo à liberdade de movimentos das pessoas são editados – mais o canto de sereia socialista se torna atraente e hipnotizante. É como se nosso povo estivesse acometido da doença que lhe impele a tentar combater os males do comunismo pela implantação da ditadura do proletariado. Faz-nos muita falta uma tradição liberal que ainda temos que construir. A tarefa aqui, portante, é muito mais difícil e exigirá das pessoas conscientes uma dedicação e uma paciência muito maiores.

Capitalismo é liberdade, como Friedman e, de resto, todos os economistas e filósofos liberais sempre sustentaram e a História dos últimos séculos demonstra à sobeja. O problema é que na nossa psique coletiva há sempre o ideal imperial do Estado todo-poderoso, que supostamente pode mitigar os males dos homens. Não pode. Quão mais poderoso é o Estado, mais impostos e mais regulamentos existirão. Só uma palavra pode sintetizar isso: escravidão. É o oposto da liberdade.

[Clóvis Rossi, um dos agentes gramscianos mais eficazes em atuação no Brasil, na Folha de São Paulo de hoje escreveu um infeliz artigo (“A crise da cobiça)”, no qual afirma: “Eis o ponto: capitalismo e cobiça sempre foram sinônimos. E sempre serão. O que a contém é exatamente a capacidade de regulação pelo Estado numa ponta e a de controle pela sociedade na outra (nem que seja pela microssociedade formada pelos acionistas de uma dada empresa)”. Não, senhor Clóvis, capitalismo não pode ser essa caricatura, reduzido à cobiça. Cobiça é um vício e, enquanto tal, é próprio dos indivíduos e não de sistemas econômicos, tendo existido em todas as épocas, em todos os sistemas políticos. O senhor não parou para pensar que não há ninguém mais cobiçoso do que os agentes a revolução, da qual o senhor, consciente ou não, é um instrumento. Esses agentes não querem apenas a nossa riqueza, a riqueza de todo o povo. Querem a nossa liberdade, a nossa alma. Querem nos transformar em zumbis. Senhor Clóvis, capitalismo é liberdade e prosperidade, a despeito da cobiça eventual de alguns capitalistas e da cobiça insaciáveis de seus inimigos, dos inimigos da sociedade aberta.]

Pretendo, nos próximos dias, fazer novos comentários sobre essa obra seminal.

Nivaldo Cordeiro

O autor é economista e mestre em Administração de Empresas pela FGV – SP

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Capitalismo e liberdade (II)

Malanismo é fernandismo

Por José Nivaldo Cordeiro


13 de julho de 2002

Malanismo é fernandismo, que é socialismo. Digo isso porque a referência elíptica a esse fato, em meu artigo anterior (“A última do Mendonção”), fez com que eu recebesse vários e-mails dizendo que Malan não é de esquerda.

Ora, isso não resiste ao exame. Paulo Apóstolo já dizia que a fé de nada vale sem as obras. Se o cristão se conhece pelas obras, o mesmo se dá com os socialistas. FHC é a expressão máxima da social-democracia brasileira e Malan foi, desde sempre, o seu principal quadro técnico, aquele que colocou em prática os desejos e as opiniões do chefe e seu grupo político.

Objetivamente Malan é fernandista e, portanto, socialista. Isso não significa que seja bobo ou irresponsável. Ao contrário. Sua obra maior foi manter o relativo equilíbrio fiscal nos últimos tempos e ter mantido uma relação cordial e cooperativa com o FMI e os credores internacionais. Mas isso é algo civilizado e competência não se confunde com visão de mundo. Aliás, o que separa a social-democracia do PSDB das demais vertentes socialistas é precisamente essa ênfase na realidade fiscal.
Também não podemos esquecer que boa parte dessa ênfase aconteceu de fora para dentro, por imposição do FMI e dos credores. Nos primeiro anos da Era FHC a coisa foi um tanto diferente. Só quanto a crise, de fato, deu a sua cara é que a crença no equilíbrio fiscal foi solidificada. Fui puro realismo e pragmatismo do “socialismo moreno” de FHC.

E é fato notório que o equilíbrio fiscal se deu à custa da impiedosa elevação das receitas de impostos. Essa é a faceta mais trágica da gestão FHC/Malan. A dupla conseguiu elevar substancialmente o tamanho da hidra estatal, nunca tendo cogitado fazer o ajuste pela lado da despesa. Isso é a expressão acabada da execução política socialista. São os crentes no gigantismo estatal.

Chamar Malan de neoliberal é coisa de petistas, que nem sabem o que significa equilíbrio fiscal. Para esses últimos, socialismo é irresponsabilidade com a moeda, é emitir até o infinito. Malan, além de conhecer bem a ciência econômica, é alguém que há muitos anos está dentro da máquina do Estado, conhecendo as suas entranhas como ninguém. Não poderia jamais se enganar.

Se Malan não acreditar no que fez e faz, levou uma existência esquizofrênica, dividido entre a ética da consciência e a ética da responsabilidade. Eu não acredito nisso. Ninguém poderia viver um personagem durante tanto tempo. A pessoa Malan é espelhada adequadamente pelo homem público, do contrário ele não teria agüentado. Logo, ele abraça os ideais de FHC, seu chefe.

Nivaldo Cordeiro

O autor é economista e mestre em Administração de Empresas pela FGV – SP

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