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Antes das conclusões

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de junho de 2011

Meu debate com o prof. Alexandre Duguin (http://debateolavodugin.blogspot.com/2011/04/index-english.html) está encerrado, só faltando as conclusões de parte a parte, as quais, sendo publicadas juntas, já escaparão ao jogo de réplicas e tréplicas que constitui propriamente o debate.

Tenho a consciência clara de que provei os meus pontos, enquanto meu adversário não provou absolutamente nada. Nem eu esperava que o fizesse. É da natureza do discurso ideológico tomar como premissas inquestionáveis as crenças e valores mesmos que busca defender, fechando-se portanto num raciocínio circular que exclui, in limine, a possibilidade da prova.

Diderot nunca provou nada, nem Jean-Jacques Rousseau, nem Karl Marx, nem Lênin, nem Adolf Hitler, nem Che Guevara.

O discurso do ideólogo não prova: dá ordens, camuflando-as, para não ofender os mais sensíveis, numa imitação de juízos de realidade.

A prova só é possível quando você desce do patamar semântico das discussões correntes, estufado de pressupostos ocultos e conotações nebulosas, desmembra tudo analiticamente em juízos explícitos e os confronta com os dados iniciais, universais e auto-evidentes, da existência humana.

A meditação filosófica consiste essencialmente em recuar das idéias e opiniões às experiências fundantes de todo conhecimento humano. Essas experiências são ao mesmo tempo universais e individuais: repetem-se mais ou menos iguais em todos os seres humanos, e se incorporam no fundo da alma de cada um deles como dados da sua intimidade mais profunda.

Refiro-me, por exemplo, à experiência da estrutura do espaço, que descrevi em duas notas de um blog hoje abandonado às traças, se há traças eletrônicas (v. “O filósofo mirim” e “Memórias de um brontossauro”, em http://www.olavodecarvalho.org/blog/). Ou à experiência da continuidade do eu substancial, real, por baixo da mutabilidade dos estados psíquicos e da forma do corpo, bem como da inconstância do eu subjetivo, cartesiano. Expliquei isso extensamente no meu curso “A Consciência de Imortalidade”, que, espero, circulará em forma de livro ainda este ano (v. o programa em http://www.olavodecarvalho.org/avisos/curso_out2010.html).

O discurso do agente político baseia-se inevitavelmente em convenções ou pseudo-consensos que têm de ser isolados de toda possibilidade de exame analítico para que o discurso alcance suas finalidades.

A meditação filosófica decompõe essas convenções, expondo as suas premissas implícitas e colocando estas últimas em julgamento no tribunal das experiências fundantes, medida máxima – ou única – do nosso senso de realidade.

O leitor que tiver a pachorra de comparar meus artigos de jornal com as explicações sobre o método filosófico que espalhei em livros, apostilas e cursos gravados, entenderá que esses artigos não são nunca “tomadas de posição”, mas excmplos – horrendamente compactos – da aplicação do método filosófico à análise do discurso político corrente.

Que alguns leitores apressados tentem explicá-los como expressões de alguma “ideologia” minha só mostra que ignoram a condição básica da possibilidade de um discurso ideológico: a existência de um grupo social e político ao qual o falante esteja vinculado por laços orgânicos de compromisso e participação. Como essa condição, no meu caso, não se cumpre nem mesmo em sonhos, isto é, como esse grupo não existe, meus catalogadores ideológicos se vêem obrigados a inventá-lo, nomeando-me representante do governo israelense, ou do “Opus Dei”, ou do “Tea Party”, ou de qualquer outra entidade com a qual só mantenho relações de total ignorância mútua. O prof. Duguin, nesse ponto, superou todas as minhas expectativas deprimentes, classificando-me como porta-voz do globalismo ocidental, que abomino, ou pelo menos da sua “ala conservadora”, que para mim não se distingue em nada da sua contrária.

Fora de páreo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 20 de junho de 2011

Em artigo recentemente publicado no Estadão (http://www.estadao.com.br/noticias/geral,a-direita–o-papagaio-e-o-facao,726992,0.htm), Eugênio Bucci, que se diz professor universitário e, pior ainda, talvez o seja realmente, denuncia, com horror sacrossanto, a emergência de uma nova direita que tem o desplante, a arrogância, a intolerável empáfia de ir além do limite que lhe foi fixado pela esquerda – a defesa da economia de mercado – e externar opiniões até mesmo em assuntos morais, culturais e filosóficos.

Contra esse abuso criminoso das liberdades civis, Bucci não perde tempo refutando argumentos: dispara contra o objeto de sua indignação cívica o arsenal inteiro dos chavões consagrados (“intolerância”, “xenofobia”, “anacronismo”, “sanha persecutória”, “fundamentalismo”, “prepotência”, “extremismo”, “retrocesso”, etc. etc.) e sai todo satisfeito, acreditando que disse alguma coisa.

Incapaz de fornecer um só exemplo concreto de ação ou opinião que mereça esses rótulos, ele apela à clássica inversão revolucionária de ataque e defesa, qualificando de “perseguição aos homossexuais no Congresso” o esforço que católicos e evangélicos têm feito para defender-se de uma lei inventada com o propósito explícito de levá-los todos à cadeia por “crime de homofobia”. Inversão tanto mais insultuosa e ridícula porque, no caso, o perseguido tem a força do governo, da grande mídia, do show business e do establishment universitário, enquanto o perseguidor não tem sequer a totalidade dos púlpitos nas igrejas. O lobo da fábula inventou mil e uma contra o cordeiro, mas não o acusou de persegui-lo.

Esquivando-se ao debate com representantes nacionais da tal direita, dos quais parecia estar falando, Bucci ataca à distância a sra. Marine Le Pen por defender a opinião hediondamente direitista de que o escândalo Strauss-Kahn revela algo da podridão moral da classe política francesa – como se não fosse prática geral, centenária e obrigatória, entre esquerdistas, apontar cada sem-vergonhice pessoal de líderes, governantes ou empresários como prova da ruindade intrínseca do capitalismo.

Chega a ser admirável o despudor com que o articulista do Estadão ostenta em público sua incapacidade (ou recusa) de raciocinar com algum senso de eqüidade, de justiça, de equilíbrio. “O fato de ser acusado de um crime sexual não transforma Strauss-Kahn no representante de uma elite estupradora”, protesta ele (fingindo ignorar que a noção mesma de “elite estupradora” é uma invenção da esquerda feminista), e já dois parágrafos adiante joga sobre nós, os porta-vozes daquilo que ele chama “direita histriônica”, a responsabilidade por “assassinatos de líderes ambientalistas”, como se o fato de escrevermos contra a União Européia ou a PL-122 nos transformasse em mandantes de crimes no interior do Brasil. O desejo irrefreável de imputar culpas mediante associações fantasiosas já é imoral o bastante, mas Bucci soma à calúnia o insulto quando reconhece que os autores daqueles crimes jamais foram descobertos, donde se conclui que, na cabeça dele, a total incerteza quanto aos agentes materiais do delito é fonte de certeza quanto aos seus culpados intelectuais remotos. Será exagero meu dizer que esse professor de moralidade tem um senso moral pervertido, baseado em ódio insano e sem o mínimo controle racional?

Mas, hiperbólico e desgovernado o quanto seja nos seus julgamentos morais, Bucci não é destituído daquele senso de autopreservação que é, na esfera da mesquinharia humana, a versão caricatural da prudência evangélica. Ao fulminar a direita no tom de um Júpiter tonitroante, ele não ousa citar por nome um só teórico ou polemista da execrada corrente. Limita-se a aludir de passagem ao deputado Jair Bolsonaro, que não é nem uma coisa nem a outra e que, sendo pessoa alheia aos debates intelectuais, não lhe oferece o menor perigo de um revide.

Escrevendo com os típicos esgares patéticos de quem se esmera na ginástica impossível de alegar indiferença superior enquanto gesticula e berra para infundir na platéia o temor de um perigo iminente, ele torna ainda mais problemática essa operação, já de si complexa, ao fundi-la com o esforço teatral de fingir coragem ante adversários que ao mesmo tempo insiste em conservar ausentes, anônimos e abstratos. Quando ele os chama “histriônicos”, é impossível não ver nisso o mecanismo grosseiro e típico da acusação projetiva.

Se o estilo é o homem, Eugênio Bucci está definitivamente fora de páreo em qualquer debate sério. Falta-lhe franqueza, consistência e aquele mínimo de controle autocrítico sem o qual o melhor mesmo é só puxar discussão com entidades genéricas, fugindo ao confronto com interlocutores de carne e osso.

A raposa e o tigre

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de junho de 2011

A opinião de Mário Vargas Llosa, segundo a qual a eleição de Ollanta Humala é “uma grande vitória da democracia”, não tem nem o mais mínimo fundamento objetivo e desperta no observador a tentação de explicá-la por motivos psicológicos, pessoais. Nada, nada neste mundo, exceto um viés subjetivo imantado de forte carga emocional justifica a presunção de que o fujimorismo é mais perigoso para a democracia do que o Foro de São Paulo. No mínimo, no mínimo, há o fato de que Alberto Fujimori foi removido do poder e condenado pela Justiça, e nada de semelhante aconteceu ou pode acontecer jamais aos membros e amigos do Foro, ainda que cometam, como de fato cometem, crimes infinitamente maiores que os do ex-presidente peruano. Também não é preciso ser nenhum Prêmio Nobel de Literatura para entender que o fujimorismo é um fenômeno local, sem extensões fora do Peru, ao passo que o Foro é, por definição, o comando estratégico da revolução comunista em escala continental, apoiado por uma rede de conexões internacionais que vai desde as fundações americanas bilionárias até a KGB e a máfia russa espalhada pelo mundo. Rejeitar Keiko Fujimori e escolher alegremente Ollanta Humala é expulsar a raposa para entregar a gerência do galinheiro a um tigre.

Um tigre não se torna menos tigre por vir de unhas pintadas. Que Humala tenha, para fins de propaganda, preferido copiar antes o modelito soft de Luís Inácio Lula da Silva do que as caretas ameaçadoras de Hugo Chávez é um detalhe cosmético a que só mentalidades frívolas podem dar algum valor. Lula foi o criador e é ainda o mentor do Foro de São Paulo, o comandante-em-chefe de uma entidade proteiforme que, atendendo tão somente às suas necessidades táticas de momento e lugar, alterna com a maior indiferença os meios de ação mais diversos e heterogêneos, da sedução ao assassinato em massa, da camuflagem rósea à intimidação explícita, dos afagos aos seqüestros. O próprio Luiz Inácio já confessou tantas vezes a unidade estratégica do Foro de São Paulo por trás da variação de suas aparências locais, que a recusa de enxergá-la só pode ser obra da mendacidade consciente, de uma burrice política imperdoável ou de uma hábil mistura desses dois elementos.

Como essa mistura se produziu no cérebro de Mário Vargas Llosa é um enigma que deixo para seus futuros biógrafos. O ódio de muitas décadas a Alberto Fujimori, mesmo acrescido do ressentimento de concorrente derrotado nas eleições de 1990, não bastaria para destruir totalmente o senso das proporções em massa neuronal tão privilegiada. Não, a explicação psicológica não resolve. Mais razoável é apelar à sociologia: ao emitir sua opinião insensata, Vargas Llosa talvez estivesse menos expressando um sentimento pessoal do que repetindo um scripttradicional, característico de uma certa classe de pessoas.

Vargas Llosa é, com toda a evidência, um daqueles inumeráveis intelectuais ex-comunistas que não tiveram a coragem de abraçar a causa anticomunista com a mesma intensidade, com o mesmo entusiasmo, com o mesmo comprometimento integral com que um dia serviram ao Partido. Tomar birra da ditadura comunista é uma coisa. Outra, bem diversa, é tornar-se um Arthur Koestler, um Vladimir Bukovski, um Whittaker Chambers. O preço, aí, é alto demais. Muitos são os que não querem pagá-lo. Ao contrário, sua ruptura com o comunismo, parcial, mediada e cheia de reservas, é antes de tudo um salvo-conduto para continuar combatendo “a direita” mais eficazmente ainda, sem poder ser acusados de fazê-lo em proveito de ditaduras de esquerda, ainda que dando força a estas últimas em momentos estratégicos decisivos (como a eleição de mais um pau-mandado do Foro de São Paulo), ungindo-as com o óleo bento do “antifascismo”.

A História já demonstrou mil vezes que isso de “ex-comunista” simplesmente não existe. Ou o sujeito se torna anticomunista professo, aceitando posar de monstro e inimigo público ante a mídia chique, ou apenas muda de cargo na hierarquia comunista, passando de militante a companheiro de viagem. Este último posto tem a vantagem de uma certa liberdade de opiniões, contanto que seu ocupante só fale contra o comunismo em termos doutrinais e genéricos, mas o apóie, com ares superiormente neutros, nas horas de necessidade, entre as circunstâncias reais e concretas da luta pelo poder.

É francamente estúpido argumentar, como o comentarista espanhol Martín Santiváñez Vivanco semanas antes das eleições, que “só na democracia se pode e se deve vencer o terrorismo, porque só assim uma vitória completa alcança legitimidade”. Álvaro Uribe, que combateu o terrorismo preservando a normalidade constitucional democrática, não é menos odiado, nem menos atacado na mídia internacional, nem menos perseguido nos tribunais, do que Augusto Pinochet, que o fez pela ditadura, ou do que a dupla Fujimori-Montesinos, que o fez pela violência somada à corrupção. Fujimori já era execrado por toda parte muito antes que seus delitos viessem a público. Foram suas vitórias contra o terrorismo de esquerda que fizeram dele a “bête noire” em que se tornou, desencadeando contra sua pessoa a fúria investigativa que a grande mídia jamais voltou contra o Foro de São Paulo, a máfia de Havana ou os agentes financeiros da KGB em ação na América Latina.

Qualquer governante, democrático ou ditatorial, honesto ou desonesto, que ouse erguer a mão contra a esquerda armada será necessariamente estigmatizado e hostilizado pela opinião bem-pensante, pelo simples fato de que, se nesta abundam comunistas, não-comunistas e ex-comunistas, nela não há lugar – nenhum lugar – para anticomunistas.

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