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Mais um caso de histeria

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 17 de agosto de 2014

          

O problema de muitos “formadores de opinião”, no Brasil de hoje, não é a burrice em estado puro, mas aquela burrice em segunda potência que nasce do impulso histérico de criar uma frase e, ouvindo-a da própria boca, acreditar nela pela simples razão de ter conseguido dizê-la.

O histérico vive em um mundo fictício composto inteiramente de autopersuasão. Daí ao mais extremo analfabetismo funcional o passo é bem curto. Quando o histérico lê alguma coisa, não entende aquilo que está escrito, mas o que desejaria que estivesse escrito. E acredita piamente que foi isso o que leu.

Um desses, um tal de Renato Rovai, leu no meu Facebook a seguinte afirmação: “O governo torna sigilosas as investigações de acidentes aéreos e poucos dias depois já vem um acidente aéreo politicamente relevante. Ou o acaso está gozando da nossa cara, ou não é acaso.” Que é que ele fez com isso? Imediatamente tascou no seu blog do Portal Forum: “Olavo de Carvalho culpa Dilma pela morte de Eduardo Campos”.

Qualquer pessoa razoavelmente alfabetizada, com uma inteligência mediana não entorpecida por impulsos neuróticos incoercíveis, entende que uma sentença construída em modo alternativo sugere duas hipóteses e nenhuma certeza.

No episódio presente, um acaso irônico ou a vaga possibilidade de um crime. Transformar isso na afirmação peremptória da ocorrência de um crime, seguida da identificação positiva de um culpado, é, sem a menor dúvida possível, obra de imaginação histérica.

Com toda a certeza o sr. Rovai desejaria mesmo que eu tivesse dito a enormidade que me atribui. Assim poderia facilmente pintar-me como um caluniador fantasista, à perfeita imagem e semelhança dele próprio, e, escondendo-se por trás de um autorretrato com o meu nome, acreditar-se melhor que eu. Um histérico, na verdade, não faz outra coisa na vida senão representar cenas autolisonjeiras no seu teatrinho mental para não ter de tomar consciência da sua deplorável miséria humana.

Tão agudamente necessitado de fazer-se de superior estava o sr. Rovai, que me descreveu como alguém “que é considerado filósofo por ‘gênios’ do estilo de Roger, o ex-cantor e pretenso humorista”, sem nem por um segundo levar em conta que:

(1) O sr. Roger, do qual só tive notícia ontem, não consta ter jamais emitido a menor opinião a meu respeito. A busca no Google aponta o meu nome junto a dois Rogers – Scruton e Kimball – mas não a esse.

(2) Uma breve pesquisa no meu currículo e nos documentos que o embasam (http://www.olavodecarvalho.org/english/life-and-works.html) teria bastado para mostrar que quem me considera filósofo (e até, vejam vocês, bom filósofo) não são gênios entre aspas, mas alguns dos maiores intelectuais do Brasil e do mundo, como Miguel Reale, Josué Montello, Herberto Sales, Roberto Campos, Ariano Suassuna, Alexandre Costa Leite, Romano Galeffi, David Walsh, Antoine Danchin e uma infinidade de outros, além de uns ministros de Estado e dois ex-presidentes da República.

Um jornalista sério, quando se refere a um escritor, pode falar dele bem ou mal, mas não pode esconder sob uma pueril afetação de desprezo uma identidade histórica solidamente formada e comprovada. Pode, por exemplo, não gostar de Ariano Suassuna, de Jorge Amado ou de mim, mas não pode dizer que só humoristas fracassados apreciam o que escrevemos.

Isso não é jornalismo: é fabulação histérica. Um jornalista escreve para contar algo do que vê e do que sabe. Um histérico, para compensar seus recalques com grotescos trejeitos de superioridade fingida.

Dito isto, é certo que o sr. Rovai, cujas realizações intelectuais não chegaram a ser louvadas nem mesmo por algum humorista fracassado, pela incontestável razão de que não existem, vai quase que infalivelmente tentar tirar proveito retroativo do vexame, fazendo-se de importante pelo simples fato de que lhe consagrei estas linhas.

Para tirá-lo dessa ilusão, peço-lhe que releia a primeira frase deste artigo, onde a deformação histérica da linguagem aparece como fenômeno generalizado e epidêmico, do qual ele não é senão um exemplo entre milhares, aqui escolhido precisamente porque ilustra muito bem até que ponto essa patologia intelectual pode atrofiar o julgamento e eliminar o senso de realidade.

Lembro aos leitores o diagnóstico já clássico do dr. Andrew Lobaczewski: quando um grupo de psicopatas assume o poder e controla a sociedade, o bombardeio de mentiras oficiais, debilitando na população o impulso de dizer o que vê e o que sente, e substituindo-o pela compulsão de repetir o que ouve, acaba por gerar uma multidão de apoiadores histéricos, cuja única função na vida é fingir para poder persuadir-se e persuadir-se para poder fingir.

Quando as coisas chegam a esse ponto, todos os critérios de realidade foram abolidos e toda possibilidade de ação racional eliminada: é o Império do Mal, onde o caos e o crime podem espalhar-se à vontade, sem que ninguém tenha a autoridade moral de detê-los.

A atuação pública inteira do sr. Rovai não é senão uma ilustração, especialmente miserável, desse estado de coisas.

O ovo e o pinto

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 3 de agosto de 2014

          

Meu artigo anterior suscitou uma pergunta interessante na área de comentários: se há tanta gente nas altas esferas colaborando com o comunismo, como é que ele ainda não dominou o mundo?

A primeira e mais óbvia resposta é que “o comunismo” como regime, como sistema de propriedade, é uma coisa, e o “movimento comunista” enquanto rede de organizações é outra. O primeiro é totalmente inviável, mas por isso mesmo o segundo pode crescer indefinidamente sem jamais ser obrigado a realizá-lo, limitando-se, em vez disso, a colher os lucros do que vai roubando, usurpando, prostituindo e destruindo pelo caminho.

São duas faixas de realidade completamente distintas, que se mesclam numa confusão desnorteante sob a denominação de “comunismo”.

Uma analogia tornará as coisas mais claras. Nenhum ser humano pode levar uma vida razoável com base numa loucura, mas, por isso mesmo, nada o impede de ficar cada vez mais louco: ele se estrepa, mas a loucura progride. A força da loucura consiste precisamente em furtar-se ao teste de realidade. Os comunistas não podem realizar a economia comunista. Se têm uma imensa facilidade em arrebanhar pessoas para que lutem por esse fim irrealizável, é precisamente porque ele é irrealizável, o que é o mesmo que dizer: inacessível a toda avaliação objetiva de resultados.

Jamais existirá uma economia comunista da qual seus criadores digam: “Eis aqui o comunismo realizado. Podem julgar-nos e dizer se cumprimos ou não as nossas promessas.” É da natureza mais íntima do ideal comunista ser uma promessa indefinidamente autoadiável, imune, por isso, a todo julgamento humano. Seu prestígio quase religioso vem exatamente disso: o comunismo traz o Juízo Final do céu para a Terra, mas também sem data marcada.

Daí o aparente paradoxo de um movimento que, quanto mais cresce e mais poderoso se torna, mais se afasta dos seus fins proclamados. A esse paradoxo acrescenta-se um segundo: quanto mais se afasta desses fins, mais o movimento está livre para alegar que foi traído e que tem direito a uma nova oportunidade, com meios mais “puros”. Mas o paradoxo dos paradoxos reside numa faixa ainda mais profunda.

Se alguém diz que vai fazer o impossível, com certeza não fará nada ou fará outra coisa. Se fizer, poderá ao mesmo tempo dar a essa coisa o nome daquilo que pretendia e alegar que ela ainda não é, ou que não é de maneira alguma, aquilo que pretendia. Daí a ambiguidade permanente do discurso comunista, que pode sempre se alardear um movimento poderoso destinado a uma vitória inevitável, e ao mesmo tempo minimizar ou negar a sua própria existência, jurando que ela não passa de uma “teoria da conspiração”, de uma invencionice de lacaios do capital.

É alucinante, mas é o que acontece todos os dias. Definitivamente, a mente comunista não funciona segundo os cânones da psicologia usual, mas segue uma lógica própria, onde se misturam, em doses indistinguíveis, a habilidade dialética, o autoengano histérico e a mendacidade psicopática.

Por isso mesmo é que o crescimento vertiginoso do movimento comunista acompanha, “pari passu”, não a decadência do capitalismo, mas a escalada do seu sucesso. O comunismo como regime, como sistema econômico, não existe nem existirá nunca. O comunismo só pode existir como movimento político que vive de parasitar o capitalismo e, por isso mesmo, cresce com ele.

Mas, por mais que sobreviva e se fortaleça, o corpo parasitado não sai ileso da parasitagem: limitado cada vez mais à função de fornecedor de recursos e pretextos para o parasita, ele vai perdendo todos os valores morais, religiosos e culturais que originalmente o inspiraram e reduzindo-se à mecanicidade do puro jogo econômico, cada vez mais fácil de criticar, enquanto o parasita se adorna de todo o prestígio da moral e da cultura.

O modus operandi dessa parasitagem é duplo: de um lado, as economias comunistas só sobrevivem graças à ajuda capitalista vinda do exterior. De outro, em cada nação, o crescimento da economia capitalista alimenta cada vez mais a cultura comunista.

Na mesma medida em que a mais absoluta inviabilidade impede a construção da economia comunista, o comunismo militante alcança vitória atrás de vitória no seu empenho de transformar o capitalismo numa geringonça infernal e sem sentido. Toda a lógica do comunismo, em última análise, deriva da idéia hegeliana do “trabalho do negativo”, ou destruição criativa.

Mas “destruição criativa” é apenas uma figura de linguagem, uma metonímia. A destruição de uma coisa só pode dar lugar ao crescimento de outra se esta for movida desde dentro por uma força criativa própria, que nada deve à destruição. Esperar que a destruição, por si, crie alguma coisa, é como querer que nasça um pinto de um ovo frito.

Antes das conclusões

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de junho de 2011

Meu debate com o prof. Alexandre Duguin (http://debateolavodugin.blogspot.com/2011/04/index-english.html) está encerrado, só faltando as conclusões de parte a parte, as quais, sendo publicadas juntas, já escaparão ao jogo de réplicas e tréplicas que constitui propriamente o debate.

Tenho a consciência clara de que provei os meus pontos, enquanto meu adversário não provou absolutamente nada. Nem eu esperava que o fizesse. É da natureza do discurso ideológico tomar como premissas inquestionáveis as crenças e valores mesmos que busca defender, fechando-se portanto num raciocínio circular que exclui, in limine, a possibilidade da prova.

Diderot nunca provou nada, nem Jean-Jacques Rousseau, nem Karl Marx, nem Lênin, nem Adolf Hitler, nem Che Guevara.

O discurso do ideólogo não prova: dá ordens, camuflando-as, para não ofender os mais sensíveis, numa imitação de juízos de realidade.

A prova só é possível quando você desce do patamar semântico das discussões correntes, estufado de pressupostos ocultos e conotações nebulosas, desmembra tudo analiticamente em juízos explícitos e os confronta com os dados iniciais, universais e auto-evidentes, da existência humana.

A meditação filosófica consiste essencialmente em recuar das idéias e opiniões às experiências fundantes de todo conhecimento humano. Essas experiências são ao mesmo tempo universais e individuais: repetem-se mais ou menos iguais em todos os seres humanos, e se incorporam no fundo da alma de cada um deles como dados da sua intimidade mais profunda.

Refiro-me, por exemplo, à experiência da estrutura do espaço, que descrevi em duas notas de um blog hoje abandonado às traças, se há traças eletrônicas (v. “O filósofo mirim” e “Memórias de um brontossauro”, em http://www.olavodecarvalho.org/blog/). Ou à experiência da continuidade do eu substancial, real, por baixo da mutabilidade dos estados psíquicos e da forma do corpo, bem como da inconstância do eu subjetivo, cartesiano. Expliquei isso extensamente no meu curso “A Consciência de Imortalidade”, que, espero, circulará em forma de livro ainda este ano (v. o programa em http://www.olavodecarvalho.org/avisos/curso_out2010.html).

O discurso do agente político baseia-se inevitavelmente em convenções ou pseudo-consensos que têm de ser isolados de toda possibilidade de exame analítico para que o discurso alcance suas finalidades.

A meditação filosófica decompõe essas convenções, expondo as suas premissas implícitas e colocando estas últimas em julgamento no tribunal das experiências fundantes, medida máxima – ou única – do nosso senso de realidade.

O leitor que tiver a pachorra de comparar meus artigos de jornal com as explicações sobre o método filosófico que espalhei em livros, apostilas e cursos gravados, entenderá que esses artigos não são nunca “tomadas de posição”, mas excmplos – horrendamente compactos – da aplicação do método filosófico à análise do discurso político corrente.

Que alguns leitores apressados tentem explicá-los como expressões de alguma “ideologia” minha só mostra que ignoram a condição básica da possibilidade de um discurso ideológico: a existência de um grupo social e político ao qual o falante esteja vinculado por laços orgânicos de compromisso e participação. Como essa condição, no meu caso, não se cumpre nem mesmo em sonhos, isto é, como esse grupo não existe, meus catalogadores ideológicos se vêem obrigados a inventá-lo, nomeando-me representante do governo israelense, ou do “Opus Dei”, ou do “Tea Party”, ou de qualquer outra entidade com a qual só mantenho relações de total ignorância mútua. O prof. Duguin, nesse ponto, superou todas as minhas expectativas deprimentes, classificando-me como porta-voz do globalismo ocidental, que abomino, ou pelo menos da sua “ala conservadora”, que para mim não se distingue em nada da sua contrária.

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