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Má conselheira

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de maio de 2011

Quando reagem aos ataques cada vez mais virulentos que a religião sofre da parte de gayzistas, abortistas, feministas enragées, neocomunistas, iluministas deslumbrados etc., certos católicos e protestantes invertem a ordem das prioridades: colocam menos empenho em vencer o adversário do que em evitar, por todos os meios, “combatê-lo à maneira do Olavo de Carvalho”. O que querem dizer com isso é que o Olavo de Carvalho é violento, cruel e impiedoso, humilhando o inimigo até fazê-lo fugir com o rabo entre as pernas, ao passo que eles, as almas cristianíssimas, piedosíssimas, boníssimas, preferem “odiar o pecado, jamais o pecador”. Daí que, em vez de ferir os maliciosos com o ferro em brasa da verdade feia, prefiram admoestá-los em tom de correção fraterna ou, no máximo, argumentar genericamente em termos de direitos e valores.

São, em primeiro lugar, péssimos leitores da Bíblia. Cristo, é verdade, mandou odiar o pecado e não o pecador. Mas isso se refere ao sentimento, à motivação íntima, não à brandura ou dureza dos atos e das palavras expressas. Ele nunca disse que é possível reprimir o pecado sem magoar, contrariar e, nos casos mais obstinados, humilhar o pecador. Quando expulsou os comerciantes do templo, Ele chicoteou “pecados” ou o corpo dos pecadores? Quando chamava os incrédulos de “raça de víboras”, Ele se dirigia a noções abstratas, no ar, ou a ouvidos humanos que sentiam a dor da humilhação? Quando disse que o molestador de crianças deveria ser jogado ao mar com uma pedra no pescoço, Ele se referia ao pescoço do pecado ou ao do pecador? O pecado, não só nesses casos em particular, mas em todos os casos possíveis e imagináveis, só pode ser reprimido, punido ou combatido na pessoa do pecador, não em si mesmo e abstratamente. Discursar genericamente sobre o pecado, sem nada fazer contra o agente que o pratica, é transformar a moral numa questão de mera teoria, sem alcance prático.

Em segundo lugar, não têm discernimento moral. Não o têm, pelo menos, na medida suficiente para avaliar a gravidade relativa dos atos privados e públicos, nem para distinguir entre a paixão da carne e o ódio aberto, demoníaco, ao Espírito Santo.

Mais imbuídos de moralismo sexual burguês que de autêntica inspiração evangélica, abominam, na mesma medida, a prática homossexual em si e o uso dela como instrumento público de ofensa deliberada a Jesus, à Igreja, a tudo quanto é sagrado. Não sabem a diferença entre a tentação carnal, que é humana, e o impulso de humilhar a cristandade, que é satânico. Falam de uma coisa e da outra no mesmo tom, como se o pecado contra o Espírito Santo fosse tão perdoável quanto uma fraqueza da carne, um deslize, um vício qualquer. Assim procedendo, colocam-se numa posição logicamente insustentável. Sentindo então a própria vulnerabilidade sem perceber com clareza onde está o ponto fraco, vacilam, tremem e passam a atenuar seu discurso como quem pede licença ao adversário para ser o que é, para crer no que crê. Daí é que lhes vem o temor servil de “combater à maneira do Olavo de Carvalho”, a compulsão de marcar distância daquele que não se deixa inibir por idêntica fragilidade de coração.

É verdade que o Olavo de Carvalho usa às vezes palavras duras, deprimentes, humilhantes. Mas ele jamais elevou sua voz em público para condenar qualquer conduta privada, por abominável que lhe parecesse. De pecados privados fala-se em privado, com discrição, prudência, compaixão. Pode-se também falar deles em público, mas genericamente, sem apontar o dedo para ninguém. E o tom, em tal circunstância, deve ser de exortação pedagógica, não de acusação. Examinem a conduta do Olavo de Carvalho e digam se alguma vez ele se afastou dessas normas. Quando ele humilha o pecador em público, é sempre por conta de pecados públicos, que não vêm nunca de uma simples fraqueza pessoal e sim de uma ação cultural ou política racional, premeditada, maliciosa até à medula.

Homossexualismo é uma coisa, movimento gay é outra. O primeiro é um pecado da carne, o segundo é o acinte organizado, politicamente armado, feroz e sistemático, à dignidade da Igreja e do próprio Deus – algo que vai muito além até mesmo da propaganda ateística, já que esta se constitui de meras palavras e aquele de atos de poder. Atos de prepotência, calculados para humilhar, atemorizar e aviltar, preparando o caminho para a agressão física, a repressão policial e o morticínio. O cinismo máximo dessa gente é alardear choramingando a violência pública contra os gays, estatisticamente irrisória, e alegá-la justamente contra a comunidade mais perseguida e mais ameaçada do universo, que já forneceu algumas centenas de milhões de vítimas aos rituais sangrentos dos construtores de “mundos melhores”. O indivíduo que se deixou corromper ao ponto de entregar-se a esse exercício de mendacidade psicótica com a boa consciência de estar servindo a uma causa humanitária está longe de poder ser atingido, na sua alma, por exortações morais, apelos à “liberdade de religião”, queixas formuladas em linguagem de debate acadêmico pó-de-arroz ou mesmo argumentações racionais maravilhosamente fundamentadas. Só uma coisa pode inibi-lo: o temor da humilhação pública, que, nas almas dos farsantes e hipócritas, é sempre exacerbado e, às vezes, o seu único ponto sensível.

Sim, o Olavo de Carvalho usa às vezes palavras brutais. Mas ele o faz por premeditação pedagógica, que exclui, por hipótese, qualquer motivação passional, especialmente o ódio, ao passo que outros só se esquivam de usar essas palavras porque têm medo de parecer malvados, porque têm horror de dar má impressão e buscam abrigo sob uma capa de bom-mocismo, de desculpas evangélicas perfeitamente deslocadas, nisto concorrendo em falsidade e hipocrisia com os próceres do gayzismo.

Cometem, aliás, o mesmo erro suicida em que os liberais brasileiros caíram desde duas décadas atrás, quando, fugindo ao exemplo do Olavo de Carvalho, preferiram debater economia de mercado com os petistas em vez de denunciar o Foro de São Paulo e a lista inumerável de seus crimes. Hoje estão liquidados. A covardia é sempre má conselheira.

Sobre a arte de debater

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de maio de 2011

No curso do meu debate com o prof. Alexandre Duguin, topei com duas afirmações que andam na boca de todo mundo e passam por verdades elementares. Primeira: Todos os atos humanos são politicamente comprometidos. Segunda: Não existe neutralidade, tudo é tomada de posição ideológica. A facilidade com que hoje em dia se reduz ao silêncio qualquer adversário mediante o apelo a essas premissas mostra que a mera hipótese de examinar-lhes sentido lógico não passa pela cabeça de ninguém. Os resultados desse exame podem, no entanto, ser bastante surpreendentes:

(1) “Todo pensamento humano é politicamente orientado e motivado” é uma afirmação baseada na mera confusão entre conceito e figura de linguagem. Todos os atos humanos “podem”, em tese e idealmente, ter alguma relação mais próxima ou mais remota com a política, mas nem todos podem ser “politicamente orientados e motivados” no mesmo grau e no mesmo sentido. Nenhuma intenção política me move quando vou ao banheiro, visto minhas calças, tomo um refrigerante, como um sanduíche, ouço uma cantata de Bach, arrumo os papéis no meu escritório ou corto a grama do meu jardim (a não ser que o propósito de evitar uma invasão de cobras seja um preconceito político contra essas gentis criaturas). A ligação dos atos humanos com a política distribui-se numa escala que vai de 100 por cento a algo como 0,00000001 por cento. Quando, por exemplo, George W. Bush fazia pipi, seria isso um ato político no mesmo grau e no mesmo sentido da declaração de guerra ao Iraque? Com toda a evidência, a proposição “Todo pensamento humano é politicamente orientado e motivado” salta da mera notícia de uma participação que pode ser vaga e remotíssima à afirmação peremptória de uma identidade substancial perfeitamente inexistente e de uma igualdade quantitativa impossível. Não é um conceito. É uma figura de linguagem, uma hipérbole. Como tal, não descreve nenhuma realidade objetiva, mas a ênfase que o falante deseja imprimir ao assunto – numa escala que pode ir da mera demanda de atenção até à abolição psicótica do senso das proporções.

Todos os atos humanos, por definição, participam, em grau maior ou menor, de todas as dimensões não só da vida humana, mas da existência em geral. Nenhum participa delas todas no mesmo nível e com a mesma intensidade. Assim, afirmações do tipo “tudo é física”, “tudo são átomos”, “tudo é psicologia”, “tudo é biologia”, “tudo é teatro”, “tudo é jogo”, “tudo é religião”, “tudo é vontade de poder”, “tudo é economia”, “tudo é sexo” e “Todo pensamento humano é politicamente orientado e motivado” são ao mesmo tempo irrefutáveis e vazias. Não podem ser contestadas, porque não dizem nada.

(2) A afirmação “Não existe um lugar no reino do pensamento humano que possa ser neutro em termos políticos” é uma confusão primária entre gênero e espécie: entre a política como uma das dimensões gerais da existência e as várias disputas políticas em especial, historicamente existentes aqui e ali. Ainda que se aceitasse, ad argumentandum, a hipótese de que todos os atos humanos são políticos, isso não implicaria de maneira alguma a conclusão de que cada ser humano tem de tomar posição em todas as disputas políticas que se travam no seu tempo. A possibilidade mesma de tomar posição implica a seleção prévia de quais disputas são relevantes e quais são indiferentes ou falsas. A neutralidade ante uma multidão de questões políticas é não somente possível, mas é uma condição indispensável para a tomada de posição em qualquer uma delas em particular.

Os gregos chamavam “topoi” (lugares-comuns) a esses argumentos gerais que podem ser brandidos a qualquer momento, sempre com alguma eficácia, em defesa de pontos particulares. Mais eficazes ainda se tornam os lugares-comuns quando não são mencionados, mas ficam implícitos, sustentando com a força de uma autoridade invisível qualquer bobagem que se queira “provar”.

Descobrir as premissas ocultas dos argumentos é um requisito fundamental para a compreensão de qualquer debate publico. A mera atribuição de intenções – prática divinatória muito comum no Brasil – é um substitutivo caricatural dessa técnica. Outro é postular a filiação hipotética de uma idéia a uma corrente de pensamento qualquer e, mediante a condenação dessa corrente, dar a idéia por impugnada.

O futuro que a Rússia nos promete

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de maio de 2011

O prof. Alexandre Duguin, à testa da elite intelectual russa que hoje molda a política internacional do governo Putin, diz que o grande plano da sua nação é restaurar o sentido hierárquico dos valores espirituais que a modernidade soterrou. Para pessoas de mentalidade religiosa, chocadas com a vulgaridade brutal da vida moderna, a proposta pode soar bem atraente. Só que a realização da idéia passa por duas etapas. Primeiro é preciso destruir o Ocidente, pai de todos os males, mediante uma guerra mundial, fatalmente mais devastadora que as duas anteriores. Depois será instaurado o Império Mundial Eurasiano sob a liderança da Santa Mãe Rússia.

Quanto ao primeiro tópico: a “salvação pela destruição” é um dos chavões mais constantes do discurso revolucionário. A Revolução Francesa prometeu salvar a França pela destruição do Antigo Regime: trouxe-a de queda em queda até à condição de potência de segunda classe. A Revolução Mexicana prometeu salvar o México pela destruição da Igreja Católica: transformou-o num fornecedor de drogas para o mundo e de miseráveis para a assistência social americana. A Revolução Russa prometeu salvar a Rússia pela destruição do capitalismo: transformou-a num cemitério. A Revolução Chinesa prometeu salvar a China pela destruição da cultura burguesa: transformou-a num matadouro. A Revolução Cubana prometeu salvar Cuba pela destruição dos usurpadores imperialistas: transformou-a numa prisão de mendigos. Os positivistas brasileiros prometeram salvar o Brasil mediante a destruição da monarquia: acabaram com a única democracia que havia no continente e jogaram o país numa sucessão de golpes e ditaduras que só acabou em 1988 para dar lugar a uma ditadura modernizada com outro nome.

Agora o prof. Duguin promete salvar o mundo pela destruição do Ocidente. Sinceramente, prefiro não saber o que vem depois. A mentalidade revolucionária, com suas promessas auto-adiáveis, tão prontas a se transformar nas suas contrárias com a cara mais inocente do mundo, é o maior flagelo que já se abateu sobre a humanidade. Suas vítimas, de 1789 até hoje, não estão abaixo de trezentos milhões de pessoas – mais que todas as epidemias, catástrofes naturais e guerras entre nações mataram desde o início dos tempos. A essência do seu discurso, como creio já ter demonstrado, é a inversão do sentido do tempo: inventar um futuro e reinterpretar à luz dele, como se fosse premissa certa e arquiprovada, o presente e o passado. Inverter o processo normal do conhecimento, passando a entender o conhecido pelo desconhecido, o certo pelo duvidoso, o categórico pelo hipotético. É a falsificação estrutural, sistemática, obsediante, hipnótica. O prof. Duguin propõe o Império Eurasiano e reconstrói toda a história do mundo como se fosse a longa preparação para o advento dessa coisa linda. É um revolucionário como outro qualquer. Apenas, imensamente mais pretensioso.

Quanto ao Império Mundial Eurasiano, com um pólo oriental sustentado nos países islâmicos, no Japão e na China, e um pólo ocidental no eixo Paris-Berlim-Moscou, não é de maneira alguma uma idéia nova. Stalin acalentou esse projeto e fez tudo o que podia para realizá-lo, só fracassando porque não conseguiu, em tempo, criar uma frota marítima com as dimensões requeridas para realizá-lo. Ele errou no timing: dizia que os EUA não passariam dos anos 80. Quem não passou foi a URSS.

Como o prof. Duguin adorna o projeto com o apelo aos valores espirituais e religiosos, em lugar do internacionalismo proletário que legitimava as ambições de Stálin, parece lógico admitir que a nova versão do projeto imperial russo é algo como um stalinismo de direita.

Mas a coisa mais óbvia no governo russo é que seus ocupantes são os mesmos que dominavam o país no tempo do comunismo. Substancialmente, é o pessoal da KGB (ou FSB, que a mudança periódica de nomes jamais mudou a natureza dessa instituição). Pior ainda, é a KGB com poder brutalmente ampliado: de um lado, se no regime comunista havia um agente da polícia secreta para cada 400 cidadãos, hoje há um para cada 200, caracterizando a Rússia, inconfundivelmente, como Estado policial; de outro, o rateio das propriedades estatais entre agentes e colaboradores da polícia política, que se transformaram da noite para o dia em “oligarcas” sem perder seus vínculos de submissão à KGB, concede a esta entidade o privilégio de atuar no Ocidente, sob camadas e camadas de disfarces, com uma liberdade de movimentos que seria impensável no tempo de Stalin ou de Kruschev.

Ideologicamente, o eurasismo é diferente do comunismo. Mas ideologia, como definia o próprio Karl Marx, é apenas um “vestido de idéias” a encobrir um esquema de poder. O esquema de poder na Rússia trocou de vestido, mas continua o mesmo – com as mesmas pessoas nos mesmos lugares, exercendo as mesmas funções, com as mesmas ambições totalitárias de sempre.

O Império Eurasiano promete-nos uma guerra mundial e, como resultado dela, uma ditadura global. Alguns de seus adeptos chegam a chamá-lo “o Império do Fim”, uma evocação claramente apocalíptica. Só esquecem de observar que o último império antes do Juízo Final não será outra coisa senão o Império do Anticristo.

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