Artigos

Uma história esquecida

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde
, 17 de janeiro de 2002

Eis aqui uma velha história que você pode usar como antídoto quando assistir, pela tevê, a alguns dos inumeráveis filmes que até hoje apresentam como heróis da liberdade os atores e as atrizes que entraram na famosa “Lista Negra” de Hollywood.

Na noite de 5 de outubro de 1945, 1.500 piqueteiros, atendendo à convocação de uma central sindical comandada pelo Partido Comunista, cercaram os estúdios da Warner, em Burbank, Califórnia. O ator Kirk Douglas viu-os aproximar-se, armados de “facas, porretes, fios de aço, socos-ingleses, correntes”, e ocupar os quarteirões em torno. Ao chegar para o trabalho, os empregados foram impedidos de atravessar o portão, cujos guardas tinham sido surrados e dominados pelos grevistas. “Nem você nem nenhum outro f. da p. vai entrar aí hoje”, informou ao coreógrafo LeRoy Prinz o líder comunista Herb Sorrell, celebrizado com o apelido de “Generalíssimo”. Prinz, um veterano de guerra, respondeu: “Sr. Sorrell, nem você nem nenhum outro f. da p. vai me impedir de entrar.” Entrou, mas não antes de ser surrado por uma dúzia de capangas de Sorrell diante dos olhos da polícia que, em desvantagem numérica, temia interferir. A maioria dos empregados não se deixou intimidar e alguns conseguiram saltar os muros. As tropas de Sorrell então partiram para a agressão generalizada. No fim dos combates, o serviço médico relatou ter atendido 89 empregados da Warner, quatro policiais, três bombeiros, o representante de um sindicato contrário à greve – e apenas seis piqueteiros. Não obstante, nos dias seguintes as manchetes do jornal pró-comunista Hollywood Atom alardeavam: “Uma garota e um veterano torturados pela Gestapo dos estúdios Warner”, “Camisas-pardas da polícia transbordam de violência”, “Warner instala campos de tortura nazistas.”

Esse giro de 180 graus operado nos fatos é típico do jornalismo esquerdista – da época e até hoje. Porém, mais característico ainda é que a inversão da realidade fosse reforçada com uma histriônica retórica antinazista por aqueles mesmos militantes que, durante o pacto germano-soviético, haviam promovido ataques iguais ao de Burbank contra as fábricas que remetiam armas e suprimentos para a Inglaterra e a França atacadas pelas tropas de Hitler.

Durante 23 dias a Warner permaneceu cercada, enquanto destacamentos especiais da central comunista saíam pela cidade ateando fogo às casas de dirigentes do sindicato adversário. Embora não conseguisse paralisar o estúdio, a greve obteve o que queria: impor, pelo medo, a autoridade do partido a toda a indústria cinematográfica.

Pouco antes Sorrell já dera uma amostra do seu poder, ao mobilizar a classe para negar trabalho a dezenas de atores (entre os quais Barbara Stanwick, Lana Turner e Van Johnson) que recusavam aderir à greve. Isso já era costume estabelecido do Partido desde 1940, mas foi então que surgiu a expressão “Lista Negra”. “Stars face blacklist”, anunciava em 15 de junho de 1945 o Hollywood Sun: não era uma referência a Joe McCarthy e seu comitê de investigações no Senado, mas à ditadura comunista que imperava sobre o cinema norte-americano.

O sucesso da investida contra a Warner deu a Sorrell a oportunidade de expandir o domínio comunista para muito além da luta sindical: nos anos seguintes, com a ajuda de John Howard Lawson, Ring Lardner Jr. e outros devotos, ele montou um sistema de fiscalização dos roteiros apresentados a Hollywood, para proibir que chegassem a ser filmados aqueles que não tivessem a porção desejada de ideologia comunista e antiamericanismo. A cota podia até ser modesta, mas não devia faltar. Segundo a orientação do espertíssimo Lawson, mensagens isoladas, espalhadas aqui e ali em milhares de filmes aparentemente inocentes, funcionavam mais do que um só filme ostensivamente comunista – uma regra que foi copiada no Brasil e ainda prevalece nas nossas novelas de tevê.

A censura era rigorosa: o roteirista que saísse da linha era hostilizado até sujeitar-se a um humilhante “mea culpa” ou cair fora da profissão. Tudo isso está fartamente documentado em Hollywood Party. How Communism Seduced the American Film Industry in the 1930’s and 1940’s, de Kenneth Lloyd Billingsley (Roseville, CA, Prima Publishing, 2000) – um livro que decerto não será publicado no Brasil, onde o bloqueio a qualquer informação anticomunista é em geral mais estrito do que nos EUA ou na Europa.

Não é uma preciosa ironia que os próprios comunistas, que implantaram em Hollywood o reinado do terror inquisitorial, se apossassem da expressão “Lista Negra”, quando mais tarde foram obrigados a experimentar um pouco do seu próprio veneno? Não é uma prova da eficácia da mentira repetida o fato de que, quase uma década após a abertura dos Arquivos de Moscou, que comprovam amplamente os serviços prestados ao regime genocida de Stalin por quase todos os acusados do comitê McCarthy, o termo “macartismo” ainda funcione como sinônimo de perseguição a inocentes?

Ódio político

Olavo de Carvalho


 Zero Hora , 13 de janeiro de 2002

Um dos traços mais inquietantes que podemos observar na mentalidade de nossos contemporâneos é que, neles, a intensidade da revolta político-social está quase sempre na proporção inversa das injustiças e privações que sofreram. Rarissimamente encontramos, entre os pobres e oprimidos, aquela dose quase psicopática de ódio radical que com tanta facilidade aflora nos discursos de intelectuais, de funcionários públicos, de gente da classe média e alta.

Uma primeira explicação — ou desculpa — com que se pode atenuar a estranheza do fenômeno é que a indignação dessas criaturas não brota de uma reação a danos pessoais que tenham sofrido, mas da contemplação, cruciante para suas almas sensíveis, de males infligidos a terceiros.

Essa explicação surge quase por automatismo à simples formulação da pergunta, e ela parece até superlativamente satisfatória, na medida em que não somente explica, mas justifica. Não sendo a expressão de mágoas pessoais, mas de um zelo impessoal pela defesa de direitos alheios, a indignação político-social já não é um simples sentimento, um fenômeno psíquico qualquer que pudesse necessitar de explicação, mas a expressão de um juízo moral obrigatório.

A questão parece, pois, resolvida, o estranhamento dissipado in limine.

Tudo estaria bem se não observássemos a facilidade com que o cumprimento desse suposto dever moral impessoal assume a forma de um ódio pessoal, visceral, profundo e avassalador a certos indivíduos, que aos olhos do indignado personificam ou representam as causas da injustiça, mesmo quando estas causas, no mesmo instante, são explicadas por forças históricas e sociológicas tão impessoais quanto as razões morais alegadas para legitimar a indignação.

Hannah Arendt diante de Eichmann meditava sobre a “banalidade do mal”, subentendendo a inexistência de ódio pessoal na máquina burocrática de extermínio comandada pelo célebre genocida. Mas, enquanto a filósofa se perdia nessas considerações, o psiquiatra Leopold Szondi, em exaustivos testes de personalidade (depois publicados em “Caim e o Cainismo na História Universal”), demonstrava acima de qualquer dúvida razoável a quantidade excepcional de ódio que latejava na alma do carrasco. Sem esse ódio, ele não poderia comandar pessoalmente a máquina impessoal. A lógica do homicídio desenvolvia-se aí em dois planos. No plano da legitimação ideológica, o “judeu” que cabia a Eichmann exterminar era uma entidade coletiva abstrata, um fator sociológico que o partido lhe dissera ser a causa dos males da Alemanha. No plano da ação diária, porém, esse fator sociológico a ser exterminado tomava a forma de seres humanos de carne e osso, que eram mandados para o matadouro em pessoa. O que era exterminado neles não eram os caracteres familiares, religiosos ou culturais que faziam deles “judeus”: era simplesmente o seu corpo. A passagem da sentença coletiva para a execução individual era tão problemática, do ponto de vista do senso comum, que não se podia operar sem o concurso de uma poderosa força psíquica: o ódio político. O ódio político, impessoal nos seus motivos, pessoal no seu objeto, consiste precisamente nessa incongruência viva: odiar um homem por algo que, admitidamente, não é ele, ou que ao menos não é propriamente ele.

O ódio político não pode, pois, em última análise, surgir nem desenvolver-se sem uma concomitante cisão esquizóide da consciência, indispensável a que um ser humano adulto aceite devotar-se seriamente à operação mágica de tentar suprimir universais abstratos por meio da destruição de um certo número de seus exemplares individuais — matar cavalos na esperança de suprimir a cavalidade.

Não há dúvida de que esterilidade intrínseca dessa operação é uma das causas da proliferação epidêmica de atos de violência ritual que, quanto mais se afastam do resultado esperado, tanto mais se reproduzem por absoluta incapacidade de gerar qualquer outra coisa senão sua própria repetição compulsiva.

Também não há dúvida de que o próprio ódio pode, em ricochete, apagar de tal modo no agressor sua consciência da humanidade de suas vítimas, que a motivação do crime se transmute como que numa impessoalidade de segundo grau: nas palavras de Che Guevara, o guerrilheiro que “no pierde la ternura jamás” é o mesmo que aspira a se transformar numa “eficiente e fria máquina de matar” (palavras textuais). Como ninguém pode ao mesmo tempo estar imbuído de ternura e de frieza assassina para com um mesmo objeto, a ternura e a frieza têm, logicamente, objetos distintos: o guerrilheiro é terno diante de uns, friamente assassino diante de outros. O que separa essas duas classes de objetos é um critério ideológico impessoal, mas o resultado disto é que o guerrilheiro, ao matar impessoalmente pessoas de carne e osso, tem de lhes recusar a condição de pessoas, que as habilitaria a ser objetos de ternura: a vítima deixa de ser pessoa no instante mesmo em que, sob a alegação de motivos impessoais, é pessoalmente assassinada. “Endurecer sín perder la ternura” é a fórmula de uma cisão esquizofrênica voluntária, que busca reafirmar a humanidade do assassino no instante mesmo em que a nega na vítima por meio de um artifício lógico já antecipadamente admitido como falso.

Gerado no ventre de um erro lógico, alimentado por um auto-engano existencial, o ódio político, com todas as suas pretensões de alta moralidade, é um dos mais desprezíveis sentimentos humanos. E hoje permitimos que, a pretexto de “educação”, esse sentimento seja instilado no nossos filhos desde a mais tenra infância.

Em parte alguma

Olavo de Carvalho

O Globo
, 12 de janeiro de 2002

O espectrograma político convencional coloca, na esquerda, o comunismo soviético e chinês; na direita, o nazifascismo; no centro, o socialismo moderado, chamado “fabiano” na Europa e nos EUA por conta da Fabian Society, mas que equivale ao que em terra brasilis é conhecido como “tucano”. Todo o vocabulário consagrado, todas as discussões acadêmicas e parlamentares, todas as polêmicas de botequim dão por assentado que essa é a distribuição das idéias e partidos no mapa ideológico do universo. Se há no fundo de toda a tagarelice ideológica um consenso plenamente firmado, um ponto pacífico, uma zona neutral onde todos concordam, é esse.

Basta um breve exame, porém, para demonstrar que esse esquema é falso, autocontraditório e inviável. O breve exame é o seguinte: do ponto de vista econômico, as duas pontas da escala são indiscerníveis do meio. O comunismo baseia-se no controle estatal da economia, o nazifascismo idem, o socialismo democrático não menos. Se socialismo, segundo definia Karl Marx, é controle estatal dos meios de produção, os três regimes que pretendem abarcar o universo das ideologias possíveis são todos socialistas. Que utilidade pode ter, para uma visão objetiva dos fatos, uma escala diferenciadora que começa por tornar indistintos, sob um ponto de vista tão vital quanto o é a economia, todos os fatos abrangidos?

Nessa escala não há lugar, por exemplo, para o anarquismo, nem para o liberalismo clássico de Adam Smith e da Constituição Americana. Não há lugar para nenhum regime que não mantenha a economia sob estrito controle. Não há lugar para nada que não seja o socialismo. Esse esquema não é um critério distintivo nem um instrumento científico para a descrição dos fatos. É uma prótese, uma camisa-de-força, um cabresto que impede a mente humana de pensar e a obriga a ir, querendo ou não, sabendo ou não, na direção do socialismo. Ele excluir da esfera do pensável as idéias que escapem do quadro de referências socialista e faz com que, qualquer que seja o ponto de vista adotado, a marcha para o socialismo apareça sempre como a chave universalmente explicativa no fundo de toda sucessão histórica.

É evidentemente uma fraude, e não espanta que tenha se disseminado graças sobretudo à propaganda soviética. Quem começou com isso foi, precisamente, Stálin. Quem mais poderia ser? Quase todos os clichês da retórica esquerdista, inclusive os de aparência mais moderninha, remontam a Stálin e à KGB. A KGB foi o maior think tank esquerdista que já existiu. Tinha na sua folha de pagamentos mais intelectuais do que qualquer instituição cultural deste mundo. Ainda que tenha prendido e matado dezenas de milhões de pessoas, sua principal ocupação não era prender nem matar: era estabelecer padrões de linguagem, moldar o discurso da propaganda esquerdista. Mas a propaganda era ali compreendida de maneira ampla: abrangia todas as esferas da comunicação humana. Modas culturais e artísticas, estilos de pensamento, prestígios e desprestígios literários, teatrais e cinematográficos, cânones de veracidade e falsidade científica — tudo ali se fabricava, disseminando-se com a rapidez do raio graças a uma rede de milhões de dóceis agentes, militantes, colaboradores comprados e simpatizantes que, espalhados por todos os quadrantes da Terra, injetavam nos mercados de seus respectivos países esses produtos sem rótulo de origem, que o público engolia facilmente como criações espontâneas da  inventividade local e da feliz coincidência.

A história cultural do século XX seria impensável sem a KGB. Quase metade do que se pensou, se argumentou, se publicou e se encenou na Europa e nos EUA, dos anos 30 a 80, veio de lá. Uma história de conjunto dessa influência avassaladora ainda não se escreveu. Mas os estudos monográficos são tão abundantes e conclusivos, que ninguém que pretenda opinar sobre a cultura desse período tem o direito de ignorar o papel central do maior organismo produtor, disseminador e controlador de idéias que já existiu neste mundo. Seria como escrever a história da Europa medieval sem levar em conta o Papado.

Somente a conjunção da mentira astuta com a ignorância sonsa pode explicar a ausência dessa realidade brutal e avassaladora na concepção que as classes falantes fazem da história mental dos tempos modernos. Mas, quando um estudioso toma consciência dessa realidade, ele já não pode deixar de captar, em tantos discursos esquerdistas que se imaginam novos e originais, o eco passivo de instruções emanadas da KGB cinco ou seis décadas atrás. Quem quer que faça esse estudo se surpreenderá de ver o papel decisivo que a inconsciência, o automatismo e a macaquice desempenham na vida mental das classes que se crêem intelectualmente ativas.

Pois assim é também com o esquema acima mencionado. Até os anos 40, era comum os intelectuais de maior prestígio situarem o nazifascismo ao lado do comunismo entre os movimentos subversivos e revolucionários votados à destruição de tudo o que os conservadores amavam. Esses dois movimentos — um surgido de dentro do outro — podiam dar-se agulhadas de vez em quando, mas nada se comparava, em virulência, ao ataque conjunto que moviam contra a velha democracia liberal. Tanto que, quando, após anos de colaboração secreta, Hitler e Stálin assumiram publicamente sua cumplicidade, ninguém se surpreendeu muito, fora dos círculos comunistas iludidos pelo antifascismo de fachada ostentado por Stálin.

Foi a agressão nazista à URSS que mudou tudo. Agressão tão inesperada, que Stálin, diante do fato consumado, se recusou a acreditar no que via e custou a desistir da esperança de restabelecer a  aliança com Hitler. O ingresso da URSS na guerra fez com que, de improviso, por puro oportunismo, os países ocidentais subscrevessem retroativamente a doutrina stalinista que situava o nazifascismo na “direita” e fazia dele uma antítese e já não o irmão siamês do comunismo. A completa falsidade do esquema, varrida por um tempo para baixo do tapete, veio de novo à tona com a rápida dissolução da parceria entre as potências ocidentais e a URSS após 1945 e a instauração da “guerra fria”.

Mas, para a propaganda soviética, o esquema ganhou uma nova utilidade: qualificar de nazifascistas seus antigos aliados de luta contra o nazifascismo. E assim foi decretado por Stalin. A fidelidade canina de uns e o mimetismo simiesco de outros fizeram o resto. Passado meio século, o estereótipo imbecil ainda exerce seu domínio implacável sobre a mente da “intelligentzia”. Onde quer que ela se meta a falar, lá vem de novo a bobajada: comunismo na esquerda, nazifascismo na direita, fabianos e tucanos no meio.

E nós, o povo, em parte alguma.

Veja todos os arquivos por ano