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História marxista é charlatanismo

Olavo de Carvalho


O Globo, 27 de maio de 2002

Com honrosas e inevitáveis exceções, a historiografia disponível no mercado livreiro nacional é de orientação predominantemente marxista ou filomarxista. Por isso nossa visão da História é estereotipada e falsa ao ponto de confundir-se com a ficção e a propaganda. A História que os brasileiros aprendem nas escolas e nos livros é uma História para cabos eleitorais.

É que ninguém pode ser marxista também sem ler tudo com suspicácia paranóica em busca de motivações políticas ocultas, e abster-se, por princípio, de fazer o mesmo com aquilo que se escreve. Com a maior naturalidade um marxista escarafunchará o “discurso do poder” nas entrelinhas dos autores mais apolíticos e devotados à pura ciência, ao mesmo tempo que se recusará a examinar a presença do mesmo elemento em tipos que, como ele, estão ostensivamente empenhados na luta pelo poder.

Para o marxista, a História, por definição, não é ciência descritiva ou explicativa, mas arma de luta por um objetivo bem determinado. “Não se trata de interpretar o mundo, mas de transformá-lo.” O passado não tem pois aí nenhum direito próprio à existência, senão como pretexto para o futuro que se tem em vista. Daí que deformá-lo seja, para o historiador marxista, um direito e até um dever.

Marxismo, em suma, é inconsciência sistematizada.

E note-se que estou falando do marxismo melhorzinho, intelectualmente “respeitável”. Decerto não é esse tipo de marxismo que se pratica majoritariamente, no Brasil ou fora: é um marxismo de “agitprop”, que busca antes o escândalo das denúncias anticapitalistas do que o conhecimento histórico mesmo num sentido longínquo e metafórico do termo.

Um exemplo é esse desprezível “Genocídio americano — A Guerra do Paraguai”, de Júlio J. Chiavenato, que consagrou por vinte anos o mito comunista de uma luta genocida a serviço do banco Rothschild, até ser completamente destroçado por Francisco Fernando Monteoliva Doratioto no recém-publicado “Maldita guerra — Nova história da Guerra do Paraguai”.

Mesmo em obras de pura consulta o charlatanismo marxista não deixa de introduzir as mais escabrosas falsificações. Já denunciei aqui um grotesco “Dicionário crítico do pensamento de direita”, obra de 114 sumidades acadêmicas, que excluía sistematicamente todos os pensadores direitistas mais célebres — de T. S. Eliot a von Mises, de Böhm-Bawerk a Irving Kristol e Russel Kirk — colocando em lugar deles grosseiros panfletários nazistas como Goebbels e Streicher, para dar a impressão de que direitistas não pensam e, quando pensam, é para premeditar crimes hediondos.

Mas o caso mais escandaloso, pelo volume e pelas ambições, é o “Livro negro do capitalismo”, preparado às pressas por uma equipe de historiadores filocomunistas para neutralizar o vexame do “Livro negro do comunismo”. Neste último, um grupo de marxistas arrependidos, com Stéphane Courtois à frente, fazia as contas e confessava que, com seu total mínimo de cem milhões de vítimas, o comunismo tinha sido o maior flagelo de todos os tempos, superando os efeitos somados de todas as guerras, epidemias e terremotos do século mais violento da História.

Mais que depressa, a tropa esquerdista designou uma equipe de emergência, com Gilles Perrault no comando, para transmutar o prejuízo em lucro. Missão: produzir a ferro e fogo cem milhões de vítimas do capitalismo, de modo a estabelecer, na impossibilidade do resgate da imagem comunista, ao menos um arremedo de equivalência moral entre os dois regimes.

É verdade que países capitalistas se meteram em guerras e mataram pessoas. Mas uma coisa é matar inimigos em guerra, outra coisa é um Estado dizimar sua própria população civil. O total de cem milhões de vítimas apontado por Stéphane Courtois excluía, por princípio, soldados mortos em campo de batalha, atendo-se ao genocídio praticado pelos comunistas contra populações desarmadas, quase sempre nos seus próprios países. Nada de semelhante podia-se encontrar nas nações capitalistas, exceto mediante o expediente de chamar “capitalistas” o regime nacional-socialista ou o feudalismo da China imperial. Perrault e assessores não hesitaram em fazer isso, mas ainda assim os números ficavam muito abaixo do desejado. Era preciso, pois, falsear mais fundo, incluindo na soma das “vítimas do capitalismo” os combatentes mortos em batalhas. Mas mesmo então o capitalismo saía bonito. Os EUA, por exemplo, em todas as intervenções militares em que se meteram ao longo de um século, não mataram mais de dois milhões de inimigos, uma quota bem modesta para um país que se pretendia carimbar como a mais agressiva potência imperialista de todos os tempos.

Perrault e sua turma, por fim, salvaram-se da encrenca mediante a decisão cínica de atribuir ao capitalismo a culpa por todas as mortes ocorridas na II Guerra Mundial (50 milhões no total, incluindo as efetuadas pelas tropas nazistas e soviéticas), na guerra civil da Rússia (6 milhões, incluindo a metade liquidada pelo governo revolucionário), na guerra do Vietnã (2 milhões, incluindo as vítimas dos vietcongues), na guerra na Argélia (um milhão e duzentas mil, incluindo as que foram mortas pelos rebeldes comunistas), na guerra civil espanhola (700 mil mortos dos dois lados) e — santa misericórdia! — no massacre de Ruanda (500 mil mortos, todos eles sacrificados pela incitação igualitarista dos “pobres” hutus contra os “ricos” tutsis).

E assim por diante.

Resultado: debitando-se na conta capitalista os crimes cometidos pelos comunistas, o capitalismo se revelava mesmo um regime tão violento e maldoso quanto o comunismo, ficando assim estabelecida a equivalência moral, quod erat demonstrandum.

Será que chamar isso de vigarice, de intrujice barata, de propaganda enganosa, é apenas uma “opinião política”, tão discutível e moralmente relativa quanto sua contrária? Ou é uma questão de moralidade elementar?

Mas se o leitor pensa que alguns dos protagonistas dessas façanhas sente ao menos um pouco de vergonha do que fez, está muito enganado. Todos têm a consciência tranqüila de trabalhar pelo bem e pela verdade. Se lhes atiramos na cara a iniqüidade de seus feitos, eles nos viram as costas com a altivez principesca de quem não dá atenção a qualquer um, muito menos a (vade retro!) anticomunistas.

Mais ainda, com a mesma cara-de-pau com que deformam o conjunto eles mentem nos detalhes. Logo atrás do sucesso de Perrault aparecia o dr. Emir Sader, nas orelhas de um livro de Alain Besançon, falsificando com a maior sem-cerimônia o conteúdo da obra: se no corpo do texto o autor afirmava que os crimes nazistas eram muito mais alardeados pela mídia do que os comunistas, o homúnculo das orelhas, mentindo duplamente, nos fatos e na fonte, invertia a informação, alegando que todos só queriam falar do comunismo e nunca do nazismo…

Será exagero dizer que a falsa consciência levada a esse ponto é uma forma de sociopatia?

Fantamasgoria verbal

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 23 de maio de 2002

Há uma diferença substancial entre aderir a uma posição política, julgando os fatos com base nela, e tomar conhecimento de fatos que, por sua força intrínseca, e mesmo contra a nossa vontade, acabam por mudar nossa opinião política.
Três obstáculos tornam difícil aos brasileiros de hoje perceber essa diferença na prática, se não mesmo apreendê-la conceptualmente.

O primeiro é o tradicional verbalismo nacional. Verbalismo não é amor às palavras. Também não é falar muito. É um mau hábito de percepção verbal, que faz o sujeito reagir emocionalmente à simples menção de certas palavras, sem esperar para obter uma adequada representação imaginativa das coisas e fatos mencionados.

O segundo obstáculo é o analfabetismo funcional, endêmico nas nossas classes superiores. Analfabetismo funcional é impossibilidade de produzir a representação imaginativa da coisa lida ou ouvida. É um upgrade do verbalismo. É verbalismo compulsório.

O terceiro é o adestramento ideológico marxista, que encobre e protege sob a capa de um discurso automatizado os dois vícios acima, tornando-os inacessíveis às mais engenhosas terapêuticas.

O verbalista salta direto do estímulo verbal à reação emotiva, sem passar pelo trabalho de imaginação e muito menos pela triagem crítica das representações imaginativas. Daí sua tendência a comover-se ante simples jogos vocabulares que, bem examinados, não significam nada e não podem suscitar emoção nenhuma. Todo o sucesso do movimento concretista em poesia deveu-se a esse tipo de leitores.

O analfabeto funcional não pode alcançar a representação imaginativa: ou permanece insensível à mensagem verbal ou tem de projetar sobre ela algum conteúdo da memória, escolhido ao acaso das associações de idéias e embebido de conotações valorativas deslocadas do assunto.

O sujeito ideologicamente adestrado já traz na memória todo um repertório de conteúdos prontos para ser projetados sobre qualquer mensagem, o que o dispensa e protege do contato intelectual com o interlocutor e lhe dá ao mesmo tempo o sentimento tranqüilizante de estar compreendendo tudo da situação. (Há dois tipos de adestrados ideológicos: os assumidos, cândidos ou antigos, que crêem piamente na ideologia salvadora e não hesitam em oferecê-la como resposta a todos os problemas, e os enrustidos, maliciosos ou modernos, que se dizem livres de preconceito ideológico, mas, não tendo nenhum outro sistema de referências pelo qual orientar-se, continuam julgando tudo segundo os cânones da ideologia que pensam ter abandonado.)

No fundo, essas três doenças são a mesma, tomada em três níveis de gravidade crescente. O sujeito começa verbalista por herança cultural doméstica. Passa a analfabeto funcional pela consolidação do vício tornado irreversível. Por fim, ao receber instrução universitária, reveste-se aí daquela carapaça verbal que, consolidando e legitimando os dois vícios anteriores sob o rótulo de cultura superior, o tornará para sempre imune ao impacto de novas mensagens verbais. Só na educação superior o desenvolvimento da estupidez lingüística alcançará aquele patamar de estabilidade que permitirá ao sujeito não compreender nada e julgar tudo. O verbalista e o analfabeto funcional ainda têm uma fresta de insegurança, por onde pode entrar um raio de luz. A instrução universitária veda o buraco e encerra o sujeito numa escuridão perfeitamente segura.
Por isso são as pessoas instruídas as que mais têm dificuldade de atinar com a diferença que mencionei. Para essas, não há verdade e mentira, fato e ficção, lógica e nonsense. Há apenas “posições políticas” — a delas e a dos outros. Na verdade não há nem isso, porque uma opinião política própria é conhecida instantaneamente pelo sujeito no simples ato de inventá-la, ao passo que a alheia requer atenção, estudo e objetividade, inacessíveis por definição a essas criaturas. Então, para elas, só existe uma coisa: sua própria posição política, da qual a adversária não é senão a inversão projetiva, produto totalmente imaginário. Daí a facilidade com que enxergam a unidade de uma conspiração adversa por trás dos produtos mais díspares e heterogêneos da inventividade ideológica humana, compondo com eles o desenho de um inimigo impossível que é ao mesmo tempo liberal e conservador, saudosista da Idade Média e democrata burguês, católico e maçom, sionista e nazista. Que esse inimigo não possa existir no mundo real, pouco lhes importa: se deixassem de acreditar na existência dele, veriam que sua própria existência é fantasmal e ilusória.

A mesma, a mesmíssima

Olavo de Carvalho


O Globo, 19 de maio de 2002

Um dos mais velhos truques da engenharia psicológica socialista é desnortear o adversário mediante o expediente de acusá-lo, fingindo seriedade, precisamente do contrário do que fez. Nos Processos de Moscou, os réus, levados ao desespero pela dificuldade de explicar-se em tais circunstâncias, acabavam confessando crimes que não tinham cometido.

O uso desse artifício se disseminou de tal modo na cultura esquerdista que acabou por se incorporar à forma mentis de muitas pessoas e hoje é o seu modo habitual de raciocinar. A premeditação maquiavélica tornou-se inocência perversa.

Tal é o caso de dona Cláudia Furiati, que decerto contraiu o vício em seus dez anos de permanência nos arquivos subterrâneos do serviço secreto de Cuba.

De uma comparação que montei entre o anti-semitismo retórico de Le Pen e o anti-semitismo armado de Yasser Arafat, essa senhora, forçando o sentido das palavras até o último limite do possível, tentou extrair e impingir aos leitores a estupenda conclusão de que eu estaria fazendo a apologia do chefe do Front National francês.

Mediante esse giro de significado, meu esforço de defender os judeus contra uma engenhosa agressão bilateral tornava-se, mágica e retroativamente, propaganda anti-semita. Os leitores judeus, que me escreveram agradecendo o apoio e pedindo autorização para reproduzir meu artigo em revistas judaicas, seriam portanto idiotas ludibriados por uma astúcia verbal demasiado sutil para o seu Q.I., finalmente desmascarada pelo providencial tirocínio hermenêutico de dona Cláudia Furiati.

Não havia aí nada a discutir, pois uma discussão requer argumentos, e essa vulgar tentativa de me indispor com aqueles cuja defesa eu assumira não constituía de maneira alguma um argumento, apenas uma intriga que já denunciava, no ato, a formidável baixeza de caráter de sua autora.

Se do ponto de vista psicológico a manipulação semântica operada por dona Cláudia era um caso clássico de acusação invertida, se juridicamente era uma calúnia dolosa típica, visando a transformar em suspeito do crime o advogado das vítimas, do ponto de vista lógico a estrutura do raciocínio usado para esse fim era precisamente a mesma, a mesmíssima a que o coletivo marxista já havia recorrido contra mim numa célebre polêmica sobre tortura e terrorismo havida neste jornal: deduzir, de uma comparação da gravidade relativa de dois crimes, a propaganda de um deles. Raciocínio que, segundo observei na época, resultava em condenar por apologia do crime o próprio Código Penal, que é todo ele uma hierarquização comparativa dos delitos e das penas.

E dona Cláudia, após apelar com a maior sem-cerimônia a esse ostensivo artifício erístico já catalogado no tratado de Schopenhauer sobre charlatanismo intelectual que eu mesmo publicara em edição comentada, ainda tinha a imensurável cara-de-pau de me imputar o uso de “sofismas”, tornando-se destarte vencedora inconteste do campeonato nacional de varas curtas.

Como, ademais, eu me abstivesse de oferecer à imputação caluniosa a única resposta que merecia, que seria uma interpelação judicial, e ainda concedesse a d. Cláudia o benefício da dúvida, limitando-se a confessar minha dificuldade de distinguir a quota de burrice e a de má intenção nas suas palavras, a abusadíssima senhora voltou à carga, dando-se ares de dignidade ofendida, como se alguma dignidade pudesse haver num sussurro de intrigante, e alegando-se vítima de “grosserias”, como se acusar alguém de um crime que não cometeu fosse maior delicadeza que revidar o ataque chamando simplesmente o acusador de burro ou mentiroso.

A capacidade que essa gente tem de inverter a realidade, a facilidade espontânea e cândida com que se entrega a esse exercício, a pose de santidade com que se permite a prática das mais extraordinárias vilezas, o inabalável sentimento de boas intenções com que mente, falseia e calunia — tudo isso, observado repetidamente ao longo de trinta anos, é que me leva a concluir que na alma esquerdista há algo mais que cegueira fanática: há um escotoma moral, uma doença da consciência, uma sociopatia no sentido mais estrito do termo.

Mas é impossível que tanta perversidade, ao chegar ao limite de sua plena realização, não acabe por se denunciar a si mesma com eloqüência bem superior àquela com que pretendia estrangular sua vítima.

O artigo de minha lavra que excitou os maus instintos de dona Cláudia afirmava, em resumo, que a esquerda atraía o olhar dos judeus para um risco menor e de longo prazo, de modo a poder mais facilmente entregá-los, inermes, nas mãos do perigo maior e imediato representado pelas tropas de Yasser Arafat e seus fiéis escudeiros da mídia esquerdista internacional.

Tal era a perfídia que eu denunciava. Que mais se poderia esperar de uma garota-propaganda do esquerdismo organizado senão que, no ato mesmo de negá-la, voltasse a cometê-la por sua vez?

Pois logo após virar do avesso minhas palavras para fazer delas uma apologia daquilo que condenavam, dona Cláudia, sentindo-se protegida de toda suspeita por trás do véu de calúnia que tecera contra mim, podia passar, sem riscos e com a maior cara de inocência, ao que verdadeiramente lhe interessava: a propaganda explícita de Yasser Arafat.

“Arafat não é anti-semita nem inimigo dos judeus”, proclamava ela. Essa frase, dita sem preparação, se denunciaria instantaneamente como publicidade enganosa ou sintoma de debilidade mental. Pois as provas do anti-semitismo de Arafat são tantas e tão notórias, que a única dificuldade de apresentá-las é o embarras de choix. Só para citar a mais leve, o chefe da OLP volta e meia se proclama fiel discípulo de Hajj Amin al-Hussayni e continuador da sua obra. Hussayni foi o doutrinário radical que buscou ajuda da Alemanha nazista para seu plano de expulsar — já antes de fundado o Estado de Israel — todos os judeus da Palestina. Ser discípulo desse sujeito sem ser anti-semita é mais difícil do que dividir um quadrado na diagonal sem obter dois triângulos isósceles. Yasser Arafat tanto não o tem conseguido que, nos papéis oficiais de sua organização, o timbre com o nome “Palestina” vem em cima de um mapa em que o futuro Estado aparece ocupando não uma parte do território, obtida em partilha consensual, mas todo o espaço do atual Estado de Israel. O intuito de “varrer os judeus do mapa” não é, nesse caso, uma figura de linguagem — é uma lição de geografia.

Fazer o público engolir um tipo desses no papel de amigo dos judeus era, em boa lógica, missão impossível. Como tentar realizá-la, senão pelo ardil de granjear primeiro a benevolência dos leitores judeus mediante uma lisonjeira e bem arquitetada aparência de combate ao anti-semitismo?

No fim, nada tenho a queixar-me de dona Cláudia. Tenho sim a agradecer-lhe por haver personificado tão didaticamente a mesma, a mesmíssima perfídia estratégica da mídia esquerdista internacional que eu vinha tentando explicar.

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