Olavo de Carvalho


O Globo, 19 de maio de 2002

Um dos mais velhos truques da engenharia psicológica socialista é desnortear o adversário mediante o expediente de acusá-lo, fingindo seriedade, precisamente do contrário do que fez. Nos Processos de Moscou, os réus, levados ao desespero pela dificuldade de explicar-se em tais circunstâncias, acabavam confessando crimes que não tinham cometido.

O uso desse artifício se disseminou de tal modo na cultura esquerdista que acabou por se incorporar à forma mentis de muitas pessoas e hoje é o seu modo habitual de raciocinar. A premeditação maquiavélica tornou-se inocência perversa.

Tal é o caso de dona Cláudia Furiati, que decerto contraiu o vício em seus dez anos de permanência nos arquivos subterrâneos do serviço secreto de Cuba.

De uma comparação que montei entre o anti-semitismo retórico de Le Pen e o anti-semitismo armado de Yasser Arafat, essa senhora, forçando o sentido das palavras até o último limite do possível, tentou extrair e impingir aos leitores a estupenda conclusão de que eu estaria fazendo a apologia do chefe do Front National francês.

Mediante esse giro de significado, meu esforço de defender os judeus contra uma engenhosa agressão bilateral tornava-se, mágica e retroativamente, propaganda anti-semita. Os leitores judeus, que me escreveram agradecendo o apoio e pedindo autorização para reproduzir meu artigo em revistas judaicas, seriam portanto idiotas ludibriados por uma astúcia verbal demasiado sutil para o seu Q.I., finalmente desmascarada pelo providencial tirocínio hermenêutico de dona Cláudia Furiati.

Não havia aí nada a discutir, pois uma discussão requer argumentos, e essa vulgar tentativa de me indispor com aqueles cuja defesa eu assumira não constituía de maneira alguma um argumento, apenas uma intriga que já denunciava, no ato, a formidável baixeza de caráter de sua autora.

Se do ponto de vista psicológico a manipulação semântica operada por dona Cláudia era um caso clássico de acusação invertida, se juridicamente era uma calúnia dolosa típica, visando a transformar em suspeito do crime o advogado das vítimas, do ponto de vista lógico a estrutura do raciocínio usado para esse fim era precisamente a mesma, a mesmíssima a que o coletivo marxista já havia recorrido contra mim numa célebre polêmica sobre tortura e terrorismo havida neste jornal: deduzir, de uma comparação da gravidade relativa de dois crimes, a propaganda de um deles. Raciocínio que, segundo observei na época, resultava em condenar por apologia do crime o próprio Código Penal, que é todo ele uma hierarquização comparativa dos delitos e das penas.

E dona Cláudia, após apelar com a maior sem-cerimônia a esse ostensivo artifício erístico já catalogado no tratado de Schopenhauer sobre charlatanismo intelectual que eu mesmo publicara em edição comentada, ainda tinha a imensurável cara-de-pau de me imputar o uso de “sofismas”, tornando-se destarte vencedora inconteste do campeonato nacional de varas curtas.

Como, ademais, eu me abstivesse de oferecer à imputação caluniosa a única resposta que merecia, que seria uma interpelação judicial, e ainda concedesse a d. Cláudia o benefício da dúvida, limitando-se a confessar minha dificuldade de distinguir a quota de burrice e a de má intenção nas suas palavras, a abusadíssima senhora voltou à carga, dando-se ares de dignidade ofendida, como se alguma dignidade pudesse haver num sussurro de intrigante, e alegando-se vítima de “grosserias”, como se acusar alguém de um crime que não cometeu fosse maior delicadeza que revidar o ataque chamando simplesmente o acusador de burro ou mentiroso.

A capacidade que essa gente tem de inverter a realidade, a facilidade espontânea e cândida com que se entrega a esse exercício, a pose de santidade com que se permite a prática das mais extraordinárias vilezas, o inabalável sentimento de boas intenções com que mente, falseia e calunia — tudo isso, observado repetidamente ao longo de trinta anos, é que me leva a concluir que na alma esquerdista há algo mais que cegueira fanática: há um escotoma moral, uma doença da consciência, uma sociopatia no sentido mais estrito do termo.

Mas é impossível que tanta perversidade, ao chegar ao limite de sua plena realização, não acabe por se denunciar a si mesma com eloqüência bem superior àquela com que pretendia estrangular sua vítima.

O artigo de minha lavra que excitou os maus instintos de dona Cláudia afirmava, em resumo, que a esquerda atraía o olhar dos judeus para um risco menor e de longo prazo, de modo a poder mais facilmente entregá-los, inermes, nas mãos do perigo maior e imediato representado pelas tropas de Yasser Arafat e seus fiéis escudeiros da mídia esquerdista internacional.

Tal era a perfídia que eu denunciava. Que mais se poderia esperar de uma garota-propaganda do esquerdismo organizado senão que, no ato mesmo de negá-la, voltasse a cometê-la por sua vez?

Pois logo após virar do avesso minhas palavras para fazer delas uma apologia daquilo que condenavam, dona Cláudia, sentindo-se protegida de toda suspeita por trás do véu de calúnia que tecera contra mim, podia passar, sem riscos e com a maior cara de inocência, ao que verdadeiramente lhe interessava: a propaganda explícita de Yasser Arafat.

“Arafat não é anti-semita nem inimigo dos judeus”, proclamava ela. Essa frase, dita sem preparação, se denunciaria instantaneamente como publicidade enganosa ou sintoma de debilidade mental. Pois as provas do anti-semitismo de Arafat são tantas e tão notórias, que a única dificuldade de apresentá-las é o embarras de choix. Só para citar a mais leve, o chefe da OLP volta e meia se proclama fiel discípulo de Hajj Amin al-Hussayni e continuador da sua obra. Hussayni foi o doutrinário radical que buscou ajuda da Alemanha nazista para seu plano de expulsar — já antes de fundado o Estado de Israel — todos os judeus da Palestina. Ser discípulo desse sujeito sem ser anti-semita é mais difícil do que dividir um quadrado na diagonal sem obter dois triângulos isósceles. Yasser Arafat tanto não o tem conseguido que, nos papéis oficiais de sua organização, o timbre com o nome “Palestina” vem em cima de um mapa em que o futuro Estado aparece ocupando não uma parte do território, obtida em partilha consensual, mas todo o espaço do atual Estado de Israel. O intuito de “varrer os judeus do mapa” não é, nesse caso, uma figura de linguagem — é uma lição de geografia.

Fazer o público engolir um tipo desses no papel de amigo dos judeus era, em boa lógica, missão impossível. Como tentar realizá-la, senão pelo ardil de granjear primeiro a benevolência dos leitores judeus mediante uma lisonjeira e bem arquitetada aparência de combate ao anti-semitismo?

No fim, nada tenho a queixar-me de dona Cláudia. Tenho sim a agradecer-lhe por haver personificado tão didaticamente a mesma, a mesmíssima perfídia estratégica da mídia esquerdista internacional que eu vinha tentando explicar.

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