Artigos

Aprendizes de Judas

Olavo de Carvalho

O Globo, 15 de março de 2003

Em 14 de janeiro, Mel Gibson foi ao programa de Bill O’Reilly, na Fox News, denunciar a perseguição que vinha sofrendo desde que anunciara seu intuito de filmar a crucificação de Nosso Senhor Jesus Cristo exatamente como narrada nos Evangelhos. Um filme abertamente cristão era mais do que o Politburô de Hollywood podia suportar: repórteres e detetives particulares não paravam de vasculhar as contas bancárias e a vida privada do ator em busca de matéria-prima para algum escândalo.

Não tendo encontrado nenhum esqueleto no armário do astro de “Coração Valente”, seus detratores passaram ao plano B: sopraram aos ouvidos de um rabino conservador, Marvin Hier, tido como freqüentador da Casa Branca, que o novo filme, “The Passion”, tinha algo de anti-semita. Muitos repórteres e críticos, entre eles o jornalista judeu Jeff Israely, da Time, tinham lido o roteiro sem notar nada disso. Tudo o que o rabino sabia era que um artigo da New York Times Magazine havia retratado Gibson, aliás corretamente, como um irlandês católico ultraconservador. Mas, mesmo com tão pouca munição, Hier não quis perder a ocasião de mostrar serviço ao Centro Simon Wiesenthal, do qual é um dos fundadores. Mais que depressa, deu à agência Reuters uma entrevista em que, admitindo não ter visto nada do filme e nem sequer ter lido o artigo, jogava sobre Mel Gibson as mais inquietantes suspeitas, desde a de fazer propaganda anti-semita até a de pretender, com o filme… revogar as decisões do Concílio Vaticano II!

A mídia americana, malgrado seu esquerdismo crônico e anti-israelismo agudo, até que cobriu o assunto decentemente. Mas a brasileira, que não publicara uma só palavra da denúncia de Gibson, apressou-se em dar ampla divulgação ao besteirol de Hier, apresentando-o implicitamente como expressão unânime da opinião judaica americana. Para piorar, a coisa vinha reforçada pela previsão alarmante de uma iminente “caça às bruxas” voltada contra as estrelas de Hollywood que tinham participado das passeatas pró-Iraque. Um caso concreto de perseguição política era assim encoberto sob densa camada de especulações futuras, ao mesmo tempo que a vítima se transformava em bandido por obra de uma testemunha que admitia nada saber contra ela.

O leitor pode estar se perguntando: por que dar tanta importância a essa desprezível trapaça de jornalistas de Terceiro Mundo e terceiro time, mais uma entre milhares? Já não está provado que essas criaturas são apenas idiotas úteis, ou pelo menos ambicionam sê-lo quando crescerem?

É que a utilidade da idiotice, no caso, é maior do que seus próprios portadores imaginam.

Hier não fala pela comunidade judaica. O mais eloqüente defensor de Gibson na celeuma tem sido um escritor judeu, James Hirsen, da revista Newsmax. E a atriz principal do filme, no papel da Virgem Maria, é a judia romena Maia Morgenstern, que mereceria o Oscar de desatenção se depois de todos esses meses de trabalho em “The Passion” não tivesse ali percebido sinais de anti-semitismo caso os houvesse realmente.

Mas o próprio rabino também não é unanimidade. Ele tem recebido pesadas críticas de judeus por recusar-se a usar de sua influência nos altos círculos em favor de Jonathan Pollard. Pollard é um judeu americano, analista de inteligência da Marinha, que um dia passou ao Mossad, ilegalmente, dados do serviço secreto americano sobre armas químicas e bacteriológicas fabricadas por países árabes para ser usadas contra Israel. Encrencado com a justiça, acabou se refugiando em Tel-Aviv. Toneladas de petições a três presidentes ainda não conseguiram trazê-lo de volta para casa. É difícil dizer se Pollard é um traidor ou um herói. O que é certo é que até hoje ele é uma batata quente nas relações EUA-Israel, e Hier é o último que desejaria segurá-la: teme passar por chato entre os figurões republicanos, e sua omissão o torna odioso aos milhares de fãs do espião exilado. Ora, acontece que o principal sustentáculo político e cultural de George W. Bush é a aliança, já velha de muitas décadas e cada vez mais forte, entre conservadores judeus e cristãos. Hier é um ponto fraco nessa aliança, pela sua atitude no caso Pollard. Mais vulnerável ainda ele se torna porque, além de rabino, é também homem do show business: produtor e roteirista. Vive num meio infestado de fãs de Saddam Hussein, os Martin Sheens e Sean Penns da vida. Imaginem, portanto, de onde lhe vieram as dicas falsas sobre o filme que não viu e o artigo que não leu. E imaginem por que foi ele o escolhido para assar a reputação de Mel Gibson até fazer dela uma batata tão quente quanto Jonathan Pollard. Que maravilha, para os inimigos dos EUA e de Israel, poder usar um rabino direitista como instrumento para espalhar a cizânia entre judeus e cristãos, ameaçando debilitar a aliança conservadora no instante em que a esquerda mundial precisa com toda a urgência varrer o assunto “armas químicas e bacteriológicas” para baixo do tapete! Mais adorável ainda é que façam isso a pretexto de combater o anti-semitismo, quando eles próprios acabam de lançar a maior onda de propaganda anti-semita que já se viu no mundo desde a década de 30. E chega a ser sublime que mostrem tal desvelo em proteger a comunidade judaica contra o temível Mel Gibson, ao mesmo tempo que, nas ruas, marcham contra Sharon e Bush ao lado do líder nazista David Duke.

E Mel Gibson? Gibson só desempenhou nesse imbróglio o papel bíblico do bode expiatório, com a diferença de que o sacrifício deste era usado para reconciliar a comunidade, enquanto o dele foi planejado para dividi-la.

Já dos jornalistas brasileiros, com sua tradicional subserviência canina aos ditames da moda esquerdista chique de Hollywood e Nova York, não se pode dizer sequer que fizeram o papel de Judas. São, na melhor das hipóteses, aspirantes a Judas. Pois Judas, ao menos, sabia para quem fazia a parte suja do serviço.

A mentira total

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 09 de março de 2003

Ao longo de 37 anos de experiência com os comunistas, nunca topei com alguma denúncia anti-americana ou anticapitalista que, bem examinada, não se revelasse uma farsa completa e um primor de maquiavelismo. Mas às vezes digo isso e as pessoas me respondem apenas: “Você não examinou todas.”

É claro que não examinei. Nenhum ser humano poderia fazê-lo. Dos 500 mil funcionários da KGB, pelo menos a quinta parte trabalhava em propaganda e desinformação, com milhões de ajudantes em todo o mundo. Nenhum governo, partido ou organização anticomunista teve jamais um aparato de propaganda que se aproximasse, nem em sonhos, dessa monstruosidade kafkiana. Qualquer tentativa de equiparar essa coisa com a CIA é ridícula. O orçamento da KGB — sem contar a espionagem militar soviética ou equivalentes chineses — superava o de todos os serviços secretos ocidentais somados. E a moderna e flexível organização em “redes” que a esquerda mundial substituiu às rígidas estruturas partidárias depois da queda da URSS é ainda mais vasta que a KGB. Daí as “marchas pela paz”. Em contrapartida, quase todo mundo ignora que até a II Guerra, 28 anos depois da fundação da Tcheka (antecessora da KGB), os EUA nem sequer tinham um serviço secreto permanente para atuar no Exterior. Para ter uma idéia da diferença que isso faz, basta notar que por volta de 1925 a KGB já tinha sob seu controle as pricipais lideranças intelectuais do Ocidente (há centenas de livros a respeito, mas o melhor ainda é “Double Lives” de Stephen Koch), enquanto a primeira iniciativa anticomunista séria no campo cultural veio só em 1955 com o Congresso pela Liberdade da Cultura, organizado pela CIA em Berlim Ocidental em resposta a um evento muito mais luxuoso que a KGB montara no Hotel Waldorf Astoria, em Nova York.

Para ficar mais perto, aqui mesmo em Porto Alegre, comparem o orçamento do Fórum Social Mundial com o do Fórum da Liberdade e verão como os esquerdistas que se fazem pobrezinhos em luta contra os poderosos estão mentindo. Eles é que são os ricos e poderosos. A desproporção de forças é brutal.

Para complicar ainda mais as coisas, a propaganda comunista jamais teve a preocupação de coerência, desde que Pavlov, na década de 20, descobriu que a estimulação contraditória fomentava a credulidade das massas. O Partido Comunista jamais se inibiu de fazer ao mesmo tempo campanhas nacionalistas e globalistas, pró-judaicas e antijudaicas, ou de simultaneamente incentivar a criminalidade e acusar o capitalismo de ser uma anarquia propícia ao crime. Vindo de lados diversos, o bombardeio de mentiras parecia ainda mais espontâneo, portanto mais confiável.

Tudo isso já era assim no tempo de Stalin. Com a flexibilização em “redes”, a confusão proposital tornou-se mais desnorteante ainda, ao mesmo tempo que as verbas de propaganda soviéticas eram vantajosamente substituídas pelo dinheiro do narcotráfico, de mega-empresas de fachada, dos organismos internacionais superlotados de comunistas.

Por isso ninguém nunca examinou nem examinará criticamente nem mesmo uma parcela insignificante da mentira comunista. O tamanho da máquina que a produz já se tornou inabarcável por qualquer descrição humana. Transcendeu a esfera da política, ganhou dimensões civilizacionais: é a civilização da mentira total.

Os minutos finais de um justo

Olavo de Carvalho

O Globo, 08 de março de 2003

Que as Farc são uma organização terrorista; que vivem do narcotráfico; que são o principal fornecedor de cocaína para o mercado nacional e muito provavelmente também de know how bélico para as gangues que dominam o Rio de Janeiro — são coisas que nenhum cidadão brasileiro pode razoavelmente ignorar.

Se, não obstante, o sr. presidente da República professa ignorá-las, ele o faz com a elevada intenção de não tomar partido numa disputa em que se oferece gentilmente para servir de árbitro. É por isso que, contrariando a solicitação de seu colega colombiano Álvaro Uribe, ele se recusa a chamar de terrorista uma organização terrorista. Arbitragens supõem neutralidade, e o nosso presidente não quer manchar a sua. Quer planar, como Deus no Juízo Final, au dessus de la mêlée.

Pelo menos é o que ele alega, imaginando assim salvar as aparências. Mas não salva nada, só pinta de dourado as grades da arapuca em que se meteu. Pois, se para manter-se neutro ele não pode sequer dizer uma palavrinha contra as Farc, muito menos pode agir contra elas, por mais que saiba do mal que estão fazendo a este país. Para merecer o estatuto de juiz idôneo, deve abster-se de optar não somente entre a Colômbia e as Farc, mas entre estas e o Brasil. E um presidente que alardeasse neutralidade entre seu povo e os narcotraficantes que o destroem seria nada mais, nada menos que um traidor. Não digo que Lula o seja efetivamente. No momento em que escrevo, ainda pode haver dúvida quanto ao que ele vai dizer ao presidente Uribe. Mas, se aí ele insistir que é neutro, terá declarado que não está do lado do Brasil.

No entanto, por baixo dessa dúvida há uma certeza: sua afetação de neutralidade não é sincera e ele sabe que não é. Em dezembro de 2001, como presidente do Foro de São Paulo, reencarnação latino-americana do Comintern, ele assinou um manifesto em que tomava partido das Farc, prometia a elas sua solidariedade incondicional e chamava de terrorista, em vez da organização guerrilheira, o governo da Colômbia.

Ele nunca abjurou de sua assinatura nesse documento obsceno, nem mesmo quando, nestes artigos, assinalei que ela comprometia irreparavelmente a idoneidade da sua candidatura e a confiabilidade de suas promessas de combater o narcotráfico. Amortecida pela mídia a revelação da existência do manifesto fatídico, a candidatura de S. Excia. saiu ilesa e vencedora. Mas as promessas morreram no berço. Tão falecidas se encontram, que aquele que as fez não pode, contra os beneficiários maiores do narcotráfico no Brasil, dizer sequer uma palavrinha mais dura. Tal como anunciei repetidamente e em vão, nosso governante máximo, cuja disposição pessoal de lutar contra o crime não ponho em dúvida, está com as mãos amarradas e a boca amordaçada pela lealdade a um pacto macabro, que a covardia cínica de jornalistas e políticos o ajudou a manter praticamente secreto até agora.

Ora, se ele assinou esse documento e sabe que o assinou, sabe também que ninguém, na Colômbia, acredita na sua pretensa neutralidade. Se sabe disso, sabe também que nunca será aceito como árbitro. E, se até disto sabe, por que a farsa? Por que esquivar-se do pedido colombiano de apoio sob a alegação de ambicionar um posto que não pode ser seu? Será que espera que a mídia internacional, inclusive a de Bogotá, venha a abafar a divulgação do manifesto pró-Farc com a mesma solicitude com que a nossa se prestou ao aviltante papel de censora de si mesma? Tamanho delírio de grandeza já seria loucura demais, e o homem não é louco de maneira alguma. Não, não é possível esconder: a alegação de neutralidade, a pretensa candidatura a mediador, são apenas desculpas. Para recusar o pedido de Álvaro Uribe, ele tem motivos mais sólidos, que não escapariam sequer à percepção dos mais descuidados, se por um instante a mídia consentisse em juntar as premissas de um silogismo simples, em vez de separá-las de propósito para que o público não atine com a conclusão:

Premissa maior: conforme reconheceu o ministro da Defesa, a elite das Farc está escondida no Brasil.

Premissa menor: não há nada na justiça brasileira contra essas criaturas, que só podem ser expulsas do país se as Farc forem reconhecidas oficialmente como organização terrorista.

Conclusão: Lula não quer declarar as Farc terroristas porque isso arriscaria obrigá-lo a expulsar do país os dirigentes da organização, senão a tomar contra ela medidas ainda mais drásticas, e isto ele não quer de maneira alguma. Não quer porque não pode e não pode porque isso jogaria contra ele o Foro de São Paulo inteiro.

Escólio: os maiores fornecedores de cocaína ao Brasil estão abrigados no território nacional com a cumplicidade ao menos passiva do sr. presidente da República.

Tudo isso é tão claro, tão lógico e irretorquível, que mesmo crianças deveriam percebê-lo à primeira vista. Mas, quando me volto para os brasileiros adultos, não vejo no rosto deles senão aquela inconclusividade sonsa, aquela insensibilidade cega que não nasce da falta natural de inteligência, mas da recusa obstinada e torpe de reconhecer uma verdade que todos, por dentro, já sabem. Todo pecado, diz a Bíblia, pode ser perdoado — mas não esse. É o pecado contra o Espírito Santo. Como os condenados do primeiro círculo do inferno de Dante, os brasileiros fugiram da responsabilidade de saber o que sabem — e foram punidos com a perda do dom da inteligência.

Nem tudo, talvez, há de estar perdido. O Brasil não precisaria, talvez, nem de cinco justos para salvá-lo. Bastaria um só: Luiz Inácio Lula da Silva. Bastaria que ele admitisse a verdade, rasgasse o manifesto infame e pusesse acima de compromissos espúrios seu dever presidencial de proteger a nação contra o narcotráfico. Não sei quantos minutos ele viveria depois disso. Mas teriam sido os minutos mais heróicos de toda a nossa História.

Veja todos os arquivos por ano