Olavo de Carvalho
Apostila do Seminário de Filosofia
25 de junho de 1993
Baixe o arquivo: As Doze Camadas da Personalidade
Olavo de Carvalho
Apostila do Seminário de Filosofia
25 de junho de 1993
Baixe o arquivo: As Doze Camadas da Personalidade
Olavo de Carvalho
Apostila do Seminário de Filosofia
20 de maio de 1993
Baixe o arquivo: O que é psique
Olavo de Carvalho
Aula do curso Introdução à Vida Intelectual
Setembro de 1987. Reproduzida sem alterações.
Quando as palavras saem da moda, as coisas que elas designam ficam boiando no abismo dos mistérios sem nome; e como tudo o que é misterioso e inexprimível oprime e atemoriza o coração humano com uma sensação de cerceamento e impotência, é natural que a atenção acabe por se desviar desses tópicos nebulosos e constrangedores. Pois o que desaparece do vocabulário logo acaba por desaparecer da consciência: o que não tem nome não é pensável, o que não é pensável não existe — tal é a metafísica dos avestruzes. Só que a coisa desprovida do direito à existência continua a existir numa espécie de extramundo, inominada e inominável, tanto mais ativa quanto mais secreta, tanto mais temível quanto mais envolta nas pompas tenebrosas do nada. A restrição do vocabulário povoa o mundo de temores e presságios. Desprovido da capacidade de nomear, eis o homem devolvido a todos os terrores que ele imaginava primitivos, mas que são uma pura criação da mais avançada e requintada decadência: o barbarismo artificial.
Se a coisa desprovida de nome é, por acaso, alguma realidade espiritual elevada, um valor excelso ou aspiração suprema da alma — uma dessas coisas essenciais que se pode expulsar da consciência, mas não da existência —, é natural que sua reencarnação obscura assuma, mais ainda, as feições do terrível, do informe, do monstruoso.
É algo assim que acontece com aquela coisa designada pela palavra “ideal” — uma palavra obviamente fora de moda, cujo significado perde realidade com a rapidez com que perde sangue um decapitado.
Denomina-se “ideal” a síntese em que se fundem, numa só forma e numa só energia, a idéia do sentido da vida e a do preço de sua realização: diz-se que um homem tem um ideal quando ele sabe em qual direção tem de ir para tornar-se aquilo que almeja, e quando está firmemente decidido a ir nessa direção.
Complexo de impulso e de esquema, o ideal atrai como um imã e coordena como um eixo. Pela unidade de sua forma, convoca o sinergismo da vontade: a concorrência de todas as forças para a consecução da meta. Pelo seu caráter de síntese projetada para o futuro, ergue-se como um tribunal soberano e neutro para a arbitragem de todos os conflitos do presente, que ali se resolvem e superam de modo que mesmo as tendências mais antagônicas da alma possam convergir num só ímpeto ascensional.
O ideal é, por isto, condição indispensável para a coesão da personalidade, que sem ele se dispersa em aspirações fortuitas e esforços estéreis. Miragem e emblema, sua visão nos dinamiza, nos eleva e enobrece, e é sempre a lembrança do seu apelo que nos reergue após cada erro e cada desengano. O ideal é semente de juventude e revivescência. Tem um poder coordenante voltado para o futuro, um poder curativo voltado sobre o passado.
É ainda pela força do ideal que o homem transcende o sono entorpecido da subjetividade intra-orgânica, das falsas idéias e aspirações que não são senão a secreção passiva da fisiologia, para despertar a um mundo de realidades objetivas que a inteligência discerne e que a consciência moral obriga a reconhecer; é assim que a alma se liberta do poço escuro da individualidade estanque, para elevar-se ao mundo maior da sociedade, da cultura, da vida moral, ao sentimento do universo e ao desejo de Deus.
Sem a síntese, que o ideal opera, entre o impulso de universalidade e os interesses do organismo psicofísico, não haveria meio de fazer um homem sacrificar-se, impor-se restrições, contrariar desejos e reprimir temores, em prol de algum valor moral, social ou religioso, para alcançar sua plena estatura humana e tornar-se, talvez, maior do que ele mesmo. Mas o desejo, que move a alma, não pode ser despertado por uma simples idéia abstrata, por verdadeira que seja; ele necessita de imagens plásticas, sensíveis, que lhe dêem como que uma presença antecipada do seu objetivo. Também não se move, exceto no homem grosseiro, ao simples apelo de uma imagem atrativa; mas aguarda que a inteligência examine e aprove o objeto como desejável e bom. Não basta que a meta seja verdadeira; é preciso que seja bela. Mas não basta que seja bela; é preciso que seja verdadeira e justa. É a síntese desta tripla exigência, intelectual, estética e moral, que se denomina “ideal”. Ele concilia, no homem, o desejo de auto-afirmação, de autodefesa, de permanência, com o impulso de crescimento, de doação e de superação de si. Ele dá uma significação universal às tendências individuais, e põe estas a serviço daquela. Spencer falava dos sentimentos “ego-altruístas”, intermediários entre o egoísmo e o altruísmo; neles, uma satisfação dada a si mesmo é, indireta porém voluntariamente, ocasião de benefício para os outros. O ideal extrai grande parte do seu dinamismo dessa pulsação ego-altruísta, em que a felicidade de um homem se identifica com o bem dos demais1. O ideal é como o fogo em que se transfunde, no forno alquímico da alma, o egoísmo em altruísmo, a paixão reflexa em ação refletida.
Mas não é só por isto que o ideal dá força, equilíbrio e consistência à personalidade. A escola junguiana tinha razão ao ver no ideal do eu uma instância superior, capaz de absorver e neutralizar os conflitos entre o id e o superego, entre as pulsões primárias do organismo psicofísico e o esquema de proibições e deveres introjetado inconscientemente pelo hábito imposto, automatizado depois numa constelação de rotinas impeditivas. De fato, quanto mais elevado, nítido, intenso e querido é um ideal, mais o homem é capaz de, em favor dele ele, se impor sacrifícios inteligentemente, contornando as exigências do id; porém, na mesma medida, o ideal o capacita a contrariar, se preciso, as imposições de uma moralidade meramente exterior e convencional, a reformar e elevar seu padrão de valores, a superar a obediência servil a exigências repressivas irracionais. Destituído do ideal, no entanto, o homem abandona-se à luta cega entre a paixão egoísta e o temor da represália do superego2.
Embora nascida na nossa consciência subjetiva, a imagem de perfeição expressa no ideal aponta para uma qualidade objetiva: pelo ideal, as qualidades latentes do homem tendem a orientar-se para fora e transformar-se em atos e obras no mundo. O ideal é o caminho pelo qual as aspirações individuais de felicidade distribuem-se nos sulcos já abertos da realidade exterior, saem da redoma do sonho e ganham um corpo no cenário maior dos fatos e das coisas. Sem um ideal definido, todas as melhores aspirações não passam de sonhos, porque não há um dever moral imanente a exigir que se amoldem à realidade, que se limitem em extensão para realizar-se em intensidade. Só o homem idealista é realista; os demais são sonhadores ou cínicos. Não tendo uma medida do que as coisas deveriam ser, vêem-nas melhores ou piores do que são.
Ademais, para que as qualidades latentes possam se manifestar, é necessário um esforço constante numa direção definida; sem ideal, o esforço gasta-se em gestos reativos, momentâneos e sem proveito. O ideal é a bússola que assinala para a alma uma direção firme e constante por entre as incertezas. Por isto, o sentimento de insatisfação, de vazio e de tédio que experimentamos quando traímos ou esquecemos o ideal é o sinal de alarma que nos permite corrigir o rumo e reencontrar o sentido da vida. Se o sentido é aquilo a que se orienta a nossa vida e a que ela tende com todas as suas forças, então, deve estar colocado num outro tempo ou num outro espaço que não os do presente e do imediato num futuro ou num plano mais abrangente de realidade. O ideal é a presença deste futuro no presente, deste outro espaço no aqui e no agora. Uma presença incompleta e, por isto, dinâmica e tensional. Por ela, medimos nossa aproximação ou afastamento do sentido da vida. O ideal é a medida efetiva do tempo existencial, o padrão de intensidade e profundidade da significação dos momentos. Sem ideal, os instantes e os lugares se homogeneizam na massa do indiferente, após a breve excitação casual que os torna interessantes. O ideal é a coluna mestra e a força da personalidade. Traí-lo ou esquecê-lo é entregar-se, de ossos quebrados, nas mãos da contingência e do absurdo.
Quando, porém, a traição é demasiado grave, extensa, profunda, o sinal de alarma já não soa mais: o clamor da consciência moral imanente tornou-se tão penoso que a alma o reprime, lacrando-o sob a tampa do subconsciente, ao mesmo tempo em que procura inventar toda sorte de razões, de pretextos factícios e ocasionais, para justificar o mal-estar e o tédio, ou encontra um bode expiatório sobre o qual despejar seu rancor de si mesma. A repressão da consciência moral, como demonstrou Igor Caruso3, está na base de muitos distúrbios neuróticos. A neurose apóia-se num complexo jogo de racionalizações e compensações que falseia completamente a posição existencial do indivíduo, como uma bússola viciada. E, já que a consciência, por definição, é coesão — com + scientia = reunião da ciência4 —, e uma lei constitutiva impede que suas partes funcionem separadas, logo o escotoma defensivo se alastra para outros campos e acaba por obliterar toda a visão, mesmo em áreas que nada têm a ver diretamente com o conflito que lhe deu origem. O empenho de conservar então um mínimo indispensável de realismo, necessário à vida social e prática, é obstaculizado pelo esforço de não enxergar uma determinada área, circunscrita como tabu; o curto-circuito daí resultante produz considerável perda de energias, enfraquecendo a capacidade intelectual e decisória. A vítima torna-se cada vez mais inepta para o ato de humildade que lhe devolveria o ideal perdido e o sentido da vida ( ser humilde não é outra coisa senão aceitar a realidade; como diz Schuon, “ser objetivo é morrer um pouco” ).
Na psicologia e psicoterapia de Paul Diel5, a divindade é a imagem ideal que orienta todos os esforços para a auto-realização das qualidades superiores do homem. Pouco importa que, teologicamente, ela seja muito mais do que isto, pois, para o indivíduo, a divindade real e objetiva só é acessível através da sua imagem pessoal de Deus, e é justamente esta é a base da qual tem de partir todo ensino religioso que não seja mera lavagem cerebral. Psicologicamente, porém, o interesse maior não reside na veracidade teológica da imagem, porém na sua ação catalizadora sobre a massa das forças psíquicas. Encarado psicologicamente ou teologicamente, o ideal de perfeição humana sugerida pela imagem do divino é a meta obrigatória e universal da existência humana sobre a terra, e a perda deste ideal é, segundo Diel, a causa das neuroses. O ideal da perfeição pode ser corrompido ou desviado, basicamente, de duas maneiras. Diel chama-as exaltação imaginativa e banalização. São processos opostos, sucessivos e complementares.
A exaltação imaginativa é um estado em que a mente, embevecida com o seu ideal, se identifica mais ou menos inconscientemente com ele e atribui a si as perfeições que a ele pertencem, como se já as tivesse realizado. Para Diel, o símbolo por excelência da exaltação imaginativa é o vôo de Ícaro. As asas de cera representam a força da imaginação, que só pode elevar aos ares um corpo imaginário. O exaltado toma o potencial por atual, imaginando possuir as perfeições a que aspira. Por isto mesmo, sua alma experimenta, como num choque de retorno, um sentimento de estranheza e de impotência perante o mundo, que não cede, como ele esperava, aos seus encantos ou poderes. Acuado pelas exigências da realidade, ele exacerba ainda mais sua adoração de si mesmo diante de um mundo que ele julga vil, mesquinho e incompreensivo, quando na verdade é ele mesmo quem não compreende o mundo e, por não compreendê-lo, está impotente para agir nele. É a síndrome do “jovem incompreendido”, que, pela simples razão de ter aspirações elevadas — ou que lhe pareçam elevadas — já se sente ipso facto superior ao seu ambiente e, portanto, limitado ou coagido pela mesquinhez real ou aparente dos pais, da escola, da sociedade, do emprego, etc6. Nem sempre ele declara seu sentimento em voz alta; uma vaga intuição do caráter doentio do seu estado pode envolver este sentimento numa complexa rede de disfarces, atenuações e racionalizações muito difícil de deslindar. Também é certo que seu diagnóstico depreciativo sobre o mundo em torno pode ser, em si mesmo, objetivamente verdadeiro, sendo falso apenas o lugar e a função que ocupa na sua alma, já que a degradação do mundo lhe aparece, por vezes ao menos, como uma espécie de contraprova de suas próprias qualidades excelsas7.
Não raro o doente alia-se a outros jovens imbuídos do mesmo sentimento, em busca de apoio e confirmação de suas queixas contra o mundo. A comunidade de sentimentos e a repetição das queixas, criando uma atmosfera de comprovação intersubjetiva, parece dar consistência real ao diagnóstico distorcido e subjetivista que cada um dos membros do grupo faz quanto ao estado do mundo, legitimando seu discurso contra a mediocridade e grosseria das pessoas “de fora”. “Estar dentro” do grupo é então sinal de uma espécie de eleição, a prova de uma qualidade excelsa e incomunicável. O sentimento de ter acesso a algo misterioso, profundo, especial, pode exacerbar a exaltação imaginativa ao ponto de provocar uma verdadeira ruptura com a realidade ambiente, incapacitando o indivíduo para o cumprimento dos deveres sociais mais elementares8. Quando a exaltação imaginativa chega a efeitos tão profundos, é que o doente já se encontrava à beira de um colapso intelectual e social, contra o qual provavelmente terá sido advertido pelos pais, por amigos, ou por uma infinidade de sinais diretos e indiretos. Estes sinais, por sua vez, aguçam a sensação de estar afundando no completo isolamento e na impotência; e o pressentimento de abandono, às vezes mesmo de loucura e morte, contrasta tão dolorosamente com os primeiros vôos de exaltação imaginativa, que o doente é então tentado a buscar às pressas, como tábua de salvação, algum tipo de reintegração forçada no mundo que desprezava9. Como, porém, isto implicaria a humilhação de voltar atrás nas críticas e a renúncia à independência afetada, a mente só consegue a reintegração forçada mediante o artifício de operar uma inversão de valores: ao invés de abandonar somente a atitude de auto-exaltação, passando a uma postura de humildade perante o ideal, ela vai, ao contrário, desidentificar-se do ideal para poder abandoná-lo sem perder o sentimento de sua própria superioridade. Conserva, assim, sua auto-exaltação, mas sob uma forma destituída de conteúdo pretensamente idealístico, e revestida, agora, de uma pose de “realismo” terra-a-terra, e não raro de maquiavelismo, carreirismo profissional, cinismo, materialismo, etc. É a esta atitude que Diel denomina banalização.
A inversão banalizante só pode ocorrer mediante uma mutação súbita, longamente preparada no subconsciente. O processo é bem conhecido e foi descrito por Pavlov, muito antes de Diel, no que toca às suas bases neurofisiológicas. O acúmulo de contradições necessário para sustentar uma posição existencial artificiosa e falsa leva à proliferação de tensões contraditórias e produz situações novas, incompreensíveis, que ultrapassam a capacidade de resposta racional e as habilidades de adaptação do organismo. Quebram-se, assim, inúmeras cadeias de reflexos condicionados que constituíam a base subconsciente do comportamento, e o homem se vê num estado de indeslindável confusão. A inversão súbita de valores pode então sobrevir, porque, segundo demonstrou Pavlov, a “inibição prolongada dos reflexos adquiridos suscita angústia intolerável, da qual o sujeito se livra mediante reações opostas às suas condutas habituais. Um cão, por exemplo, se apegará ao funcionário do laboratório, que detestava, e tentará atacar o dono, de quem gostava”10. As tensões provenientes de vários lados, impondo ao cérebro “provas intoleráveis”, produz então uma inibição protetora que “desorganiza os reflexos adquiridos, destrói as suas camadas mais recentes e determina, no sujeito, o abandono de suas crenças”11. O conhecimento técnico deste mecanismo permitiu a sua utilização sistemática nos processos de lavagem cerebral e “reforma da opinião”, nos campos de prisioneiros da China e da União Soviética12. Porém, o mesmo fenômeno, atenuado ou disfarçado, observa-se disseminado na vida social contemporânea, graças ao abuso das pressões psíquicas da propaganda, da persuasão subliminar, dos exercícios psíquicos, das experiências psudomísticas. Sabe-se hoje que esta mutação pode afetar não somente este ou aquele grupo de crenças e atitudes, mas a personalidade total; o crescimento assombroso da incidência destes fenômenos, nos Estados Unidos, levou alguns psicoterapeutas a falar de uma “epidemia de mutações súbitas de personalidade”, que constitui talvez o mais grave capítulo de psicopatologia social conhecido na história do Ocidente13.
A facilidade com que este processo se desencadeia, mesmo fora do cenário das seitas pseudomísticas e de toda experimentação de “poderes” psíquicos, pode ser explicada pelo fato de que, “quando o cérebro é submetido a tensões ainda mais fortes, a fase de inibição cerebral pode ser sucedida por uma fase paradoxal. Nesta, estímulos fracos e antes ineficientes podem causar respostas mais acentuadas do que estímulos mais fortes”14. ISto significa que basta uma fase de acúmulo tensional para que o processo de inversão possa seguir atuando no subconsciente, movido doravante por estímulos insignificantes e ocasionais. Então, “no terceiro estágio da inibição protetora, a fase ultraparadoxal, as respostas e o comportamento positivos começam, de repente, a se transformar em negativos, e os negativos em positivos”15. As mudanças de opinião nesta fase, e as justificativas aparentemente lógicas que o doente oferece a si mesmo e aos outros, não são senão o disfarce exterior de um processo que tem suas raízes numa sobrecarga de estimulação neuronal; são um “vestido de idéias” em torno de motivos reflexos, que permanecem subconscientes.
Na banalização, o indivíduo amortece então sua sensibilidade para todas as deficiências, injustiças e feiúras que, no seu tempo de idealismo exaltado, lhe pareciam revoltantes e intoleráveis. É que antes ele via as feiúras somente no mundo exterior e, como não as enxergava em si mesmo, as condenava “desde cima”. Agora, ele as admite dentro de si; porém, como são suas e se identifica com elas, ele as defende como sinais de superioridade; não raro afeta uma atitude de soberano desprezo por aqueles nos quais se mantém viva a antiga sensibilidade moral; e, acusando-os de rancorosos, frustrados ou coisa assim, ele se compraz no seu novo estado de “homem ajustado” e — no seu entender — adulto. A banalização consiste neste nivelamento-por-baixo do sentimento moral e estético. Ela permite que o indivíduo adote, como normais e indiferentes, atitudes e opiniões que antes lhe pareciam imorais e desprezíveis. Não raro a mutação apaga blocos inteiros da memória, de modo que o indivíduo, para sustentar com alguma coerência o seu novo padrão de comportamento, chega a negar os fatos mais óbvios e patentes que presenciou. George Orwell, no seu romance 1984, descreve um caso em que, passando por este gênero de mutação, as testemunhas mesmas da inocência de um acusado depõem pela sua condenação. A mutação pode resultar então em total atomização do comportamento e acarretar, com a perda da integridade psíquica, a dissolução dos padrões morais mais elementares, produzindo o cinismo, a amoralidade, o descaramento, aliados, às vezes, a boas doses de autopiedade.
Analisando os conceitos de Diel com os critérios de Caruso16, vemos que a neurose do idealista exaltado tem sua origem na soberba, pois o ego, ao identificar-se com a imagem do ideal, atribui a si mesmo, atual e efetivamente, qualidades que só lhe pertencem de modo virtual e por espelhismo. É uma forma de autolatria. Quando os teólogos dizem que a soberba é a raiz de todos os pecados, é isto o que eles têm em vista: o idealista exaltado corrompe o bem na sua própria raiz, corrompe-o na medida em que tem por ele um amor egoísta. Sto. Agostinho diz que “todos os vícios se apegam ao mal, para que se realize; só a soberba se apega ao bem, para que pereça”. A passagem da exaltação à banalização perfaz então a mudança, acarretando uma inversão total de valores, instalando o mal no lugar do bem. Na exaltação, os valores reais ainda são afirmados, apenas como uma localização falseada; na banalização, a negação dos valores é afirmada ela mesma como valor. A banalização é o momento mais grave do processo corruptivo. É claro que a alma doente só consegue operar esta transformação na medida em que não conscientiza todos os passos do processo e todas as implicações de seus atos e decisões, mas se enreda numa trama de racionalizações e sofismas, destinada a erguer ante seus próprios olhos um simulacro verossímil de inocência, no instante mesmo em que, traindo a vocação humana, trai o sentido da vida17.
É interessante observar que, quando o doente vai da exaltação à banalização, ele passa a representar perante si mesmo o papel de homem realista e “maduro”, revestida de pose de segurança afetada, destinada a reforçá-lo no novo papel. Daí que ele seja o último a perceber que a sua aparente superação da revolta juvenil vem acompanhada, não de um acréscimo de equilíbrio e força, porém de um decréscimo das capacidades intelectuais e de uma degenerescência nervosa similar à que se vê na involução senil. De fato, uma das conquistas que assinalam uma evolução objetiva do homem na entrada da adolescência é a passagem dos sentimentos puramente egoístas e orgânicos às tendências ideais ou suprapessoais: nesta fase, “o indivíduo experimenta um sentimento de imperfeição, de insuficiência, trata de sair de si, de dar-se”18. A evolução da vida afetiva “segue a ordem que vai do simples ao complexo: necessidades, inclinações egoístas, inclinações ego-altruístas, inclinações altruístas, inclinações ideais”19. Porém, em certas enfermidades da evolução lenta, como a paralisia geral dos sifilíticos e também da degenerescência senil, observa-se um movimento inverso. Escreve Ribot : “A lei de dissolução consiste numa regressão contínua que desce do superior ao inferior, do complexo ao simples”20.
“Em alguns enfermos — assinala Challaye — pode-se comprovar a desaparição momentânea das tendências ideais, altruístas, e mesmo ego-altruístas. Isto é comprovado sobretudo na maioria dos anciãos ( fora do caso, é claro, dos seres superiores, nos quais esta degenerescência sentimental pode não se produzir ). Sua vida afetiva se restringe cada vez mais. Os sentimentos impessoais são os primeiros que desaparecem. Logo em seguida, as diversas formas da simpatia; e as necessidades ( econômicas, orgânicas, etc. ) são as que subsistem por mais tempo. O ancião começa a preocupar-se menos com a ciência e a arte… torna-se menos generoso… as emoções que persistem maior tempo estão ligadas à conservação pessoal, à cólera e ao medo. Enfim, o ancião pode já não ter nada mais que necessidades ; ele recai no estado do menino pequeno”21.
No homem banalizado, a nova sensibilidade que ele desenvolve pelo seu interesse material imediato, aliada ao temor da perda e ao crescente desinteresse pelos ideais, atestam, fora de toda dúvida, que aquilo que lhe parece ou que ele tenta fazer parecer uma superação é na verdade uma queda, uma degenerescência que se estende, até mesmo, ao domínio corporal.
Do ponto de vista causal, entram em jogo, no processo de banalização, fatores endógenos e exógenos. Os endógenos — aqueles que já estão dados na alma do indivíduo no instante em que o processo se instala — são os fatores clássicos levados em conta pela análise psicológica corrente: tendências hereditárias, defeitos constitucionais, traumas de infância, falhas da educação, etc. De um lado, estes fatores não exercem senão um papel predisponente, que em nada pesa se não é valorizado pela interferência dos fatores exógenos; de outro lado, eles são bem conhecidos na literatura psicológica.
Os fatores exógenos consistem, essencialmente, nos estímulos com que a sociedade em torno favorece ou desfavorece a manutenção dos ideais e a realização humana. Uma sociedade voltada para a busca de um ideal religioso, moral ou cultural universal, e dotada dos instrumentos educacionais capazes de viabilizar a realização humana de seus membros, produz, certamente, uma esplêndida floração de individualidades vigorosas e ricas que, por sua vez, contribuem para o progresso e o brilho da sociedade. A história atesta períodos assim brilhantes, como por exemplo, a Grécia de Péricles, a renascença escolástica dos séculos XII e XIII, a Idade de Ouro espanhola, a era elisabetana na Inglaterra, o Califado do Ocidente sob Harum-al-Raschid, e muitos outros. Em escala menor, pode haver curtos períodos de vigor moral e cultural mesmo em países pobres e isolados. O que quer que pensemos do conteúdo das idéias dominantes nestes períodos, o que importa é que neles o desenvolvimento da personalidade é realmente favorecido. Nem sempre esses períodos coincidem com épocas de riqueza e progresso material; o que os caracteriza não é a riqueza, mas o fato de que neles as tarefas econômicas são inseridas e transfiguradas no quadro maior dos fins e valores éticos ou religiosos que orientam a vida social como um todo.
Quando, ao contrário, a sociedade perde de vista os valores e princípios universais e se emaranha na busca obsessiva de soluções para problemas econômicos imediatos, estes parecem não somente multiplicar-se no campo dos fatos, mas invadir as almas dos indivíduos, ocupando todo o espaço que poderia ser dedicado aos valores ideais. Automaticamente, os indivíduos refluem as suas energias para a busca de interesses que são conflitantes com os de outros indivíduos e grupos — com os quais somente os valores ideais poderiam estabelecer uma base de colaboração — e a sociedade se dispersa numa atomização que pode beirar a anarquia, a guerra de todos contra todos, a deslealdade generalizada. É evidente que, neste caso, os instrumentos para a realização da vocação humana simplesmente desaparecem do cenário social, com o que justamente as pessoas de maior sensibilidade ética, não encontrando vias de realização, passam a constituir uma horda de fracassados e desajustados. É nessa horda que os falsos ideais, criados de improviso para atender a interesses de grupos ou organizações, encontram seus mais fervorosos recrutas, oferecendo-lhes uma miragem de valores e uma falsa promessa de ajustamento social e de participação.
A situação torna-se ainda mais grave em Estados totalitários ou pré-totalitários, quando a mobilização de massas inteiras da população para colaborar na “solução” de problemas econômicos recorre ao expediente de tentar sintetizar, em proveito dos fins do Estado ou das forças políticas que o disputam, as duas correntes de força tendentes à exaltação imaginativa e à banalização. As tendências idealísticas são canalizadas em movimentos de massa — seja de caráter abertamente político, seja pseudomístico ou pseudocultural —, ao mesmo tempo que as promessas de sucesso na vida social e profissional postas em circulação pelos planejadores da operação garantem um eficaz retorno das tendências de banalização em proveito dos mesmos objetivos.
Isto se observou não somente nos Estados descaradamente totalitários, como a URSS e a Alemanha nazista, mas também em todo o mundo Ocidental. As ligações, hoje em dia patentes, entre certas seitas pseudomísticas e organizações multinacionais mostra que a sociedade moderna tem um de seus principais esteios numa complexa máquina de “reciclagem” do idealismo juvenil, que esta máquina primeiro perverte pelo incentivo à exaltação ( mediante lisonjas às aspirações artísticas, políticas e espirituais mais descabidas ) e depois reverte no sentido de um enquadramento social banalizado. O caso mais eloquente é o do jovem filho de banqueiro que abandona a mediocridade do materialismo familiar para ingressar no “ensinamento espiritual” de Rajneesh, e depois é reenquadrado “por baixo” ao ser mobilizado para trabalhar na gigantesca empresa de limpeza de sedes de bancos, de propriedade do mesmo Rajneesh. O número destes mecanismos circulares em operação na nossa sociedade é muito elevado. Eles operam de maneira ubíqua e sorrateira, primeiro excitando, lisonjeando, pervertendo, depois desviando, reciclando e reaproveitando para seus próprios fins todos os ideais juvenis, mesmo os que lhes são mais hostis em aparência. É evidente que, nestas circunstâncias, um simulacro de auto-realização tende a oferecer uma falsa alternativa de solução para o conflito entre as tendências de exaltação e banalização. A alma, colocada sob a pressão esmagadora e multilateral das forças que, pela lisonja ou pela acusação, pelas promessas ou ameaças, a comprimem e a dilatam, ora para a exaltação imaginativa, ora para o ajustamento banalizado, pode agarrar-se a este simulacro, com toda a fúria e o desespero de um náufrago. Numa sociedade empobrecida, fortemente empenhada em reduzir à proletarização a totalidade dos seus membros e na qual, ademais, todos os instrumentos de defesa espiritual e religiosa foram substituídos pelas multinacionais da pseudomística e todos os instrumentos de defesa cultural pelo vozerio onipresente e obsedante das comunicações de massa, nesta sociedade, o drama acima descrito atinge um máximo de intensidade que deixa entrever nada menos que um desenlace trágico, com a desumanização brutal da população e a redução da vida social a um jogo cego de interesses mesquinhos em disputa, ocultamente orquestrado e dirigido, desde o topo, por um sinistro grupo de planejadores sociais.
Por todos os meios, esta sociedade espremerá como entre os dois dentes de um alicate todos os talentos e ideais nascentes, até esmagá-los e subjugá-los à bestialidade dominante.
No entanto, apesar das pressões maciças e de todos os atrativos corruptores, a inteligência humana, por sua natureza mesma, continua essencialmente livre e capaz de objetividade e universalidade. E se é fato que “chegará o momento em que cada um, sozinho, privado de todo contato material que possa ajudá-lo em sua resistência interior, terá de encontrar em si mesmo, e só nele mesmo, o meio de aderir firmemente, pelo centro de sua existência, ao Senhor de toda Verdade”22, não é menos verdade que está somente nas mãos de cada qual dizer a este mundo sedutor e ameaçador: Latrare potest, mordere non potest, nisi volentem: “Podes latir, mas não podes morder, a não ser que eu o deseje”. Mesmo as pressões mais formidáveis que o universo concentracionário impõe à alma humana, na mais temível das tiranias já conhecidas, não eximem o homem de sua responsabilidade individual.
Todos aqueles em quem ainda reste um grão de consciência das metas reais e superiores da existência humana têm o dever imediato e indeclinável de estudar, conhecer e desmascarar os mecanismos do processo corruptor aqui descrito, para escapar aos falsos conflitos em que ele nos joga e às falsas alternativas que ele nos oferece.
NOTAS