Apostilas

Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula I (Parte II)

Apostila do Seminário de Filosofia

PRIMEIRA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 15 de março de 1994.

Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Augusto Madeira
e Kátia Torres Ribeiro

2a parte

Na primeira parte da aula, dei uma idéia geral sobre Aristóteles e sobre nossos motivos para estudá-lo. Agora vou expor o método a ser usado neste curso. Mas antes devo responder à pergunta que um aluno me fez no intervalo, a respeito da natureza matemática dos arquétipos platônicos, questão que é importante para o que estudaremos mais tarde, porque veremos que uma das principais modificações introduzidas por Aristóteles foi justamente a de desgeometrizar, ou desmatematizar, a teoria do conceito, fazendo do pensamento lógico menos uma estrutura formalmente pura do que um método para o conhecimento da realidade efetiva. A explicação da natureza matemática do “mundo das Idéias” encontra-se sobretudo no Timeu, um dos livros mais difíceis e mais interessantes de Platão. O ensinamento de Platão se dividia em duas partes, escrita e oral. O escrito era usado como instrumento de divulgação, sendo o melhor de sua filosofiia reservado para o ensinamento oral. Durante quase dois mil anos, este ensino oral constituiu um dos maiores enigmas da história da filosofia e só muito recentemente, com os progressos da documentação, é que foi possível esboçar uma reconstituição do que teria sido o ensinamento oral de Platão. Reconstituição feita a partir dos testemunhos e depoimentos deixados, e mediante comparação desses materiais com os textos de Platão. Como tudo isto ficou disperso ao longo da história, não havia muitos meios de reunir esse material. No século XX, quando o sistema internacional de documentação chegou a uma perfeição quase luxuosa, foi possível fazer esta reconstituição, empreendida sobretudo por um grande historiador da filosofia italiano chamado Giovanni Reale. Por uma coincidência, um filósofo brasileiro chamado Mário Ferreira dos Santos havia tentado a mesma reconstituição, não por meios histórico-filológicos como Reale, mas sim por meios puramente filosóficos e especulativos, e seus resultados foram singularmente idênticos aos de Reale, só que apresentados quinze anos antes! Mário Ferreira é o único grande filósofo que este país produziu, para o meu gosto o maior dos brasileiros, mas infelizmente o nosso meio universitário continua a ignorá-lo, por um misto de ignorância presunçosa e despeito. Tanto os resultados de Mário Ferreira como os de Reale permitem colocar Platão, com bastante segurança, como herdeiro da escola pitagórica. Em suma, a famosa doutrina das idéias somente se esclarece se entendermos que, para além do mundo das idéias, Platão admitia uma terceira instância, que seria o mundo dos princípios ou leis — o mundo dos modelos matemáticos que estruturam a realidade. Neste caso teríamos não dois, mas três planos: primeiro, o da realidade sensível; segundo, o mundo das idéias, e, terceiro, o mundo das leis ou princípios ( relações matemáticas, basicamente, mas no sentido não-quantitativo das matemáticas, isto é, como lógica pura ). Esta interpretação de Platão é bastante recente na historiografia. Existe em português uma resenha do livro de Giovanni Reale feita pelo Pe. Henrique Lima Vaz na revistaSíntese, de Belo Horizonte. Os estudos filológicos a respeito de Platão e Aristóteles evoluíram muito no século XX. Os estudiosos recentes que deram contribuições substantivas são em grande número. Mas isto nos leva de volta à questão do método.

Progressos da compreensão e progressos da incompreensão: história e filologia.

À medida que nos afastamos, no tempo, de um autor antigo, existe um duplo processo de transformação das idéias que temos acerca dele. Por um lado, nos afastamos das preocupações reais que constituíram o ponto de partida para ele. Na medida em que vivemos uma outra situação social, cultural e psicológica distinta e cada vez mais diferente, temos muitas vezes dificuldade em nos situarmos na motivação de onde o filósofo partiu. Temos outros problemas e outras perguntas — não aquelas de onde partiram Platão e Aristóteles. Neste sentido, tendemos a ver as obras deles como um conjunto de respostas sem as respectivas perguntas. É claro que todo e qualquer texto que se estude subentende uma situação humana, real, de onde emergiu, por necessidade e não por capricho, a sua indagação filosófica, e de onde o autor partiu e para a qual ele apresenta uma reação pessoal, ou uma resposta pessoal. De modo que cada livro antigo é a metade dele mesmo — a outra metade está subentendida na situação, que não vem reeditada junto com o texto. E esta, à medida que o tempo passa, vai-se tornando cada vez mais difícil de imaginarmos com verossimilhança, com uma imaginação vívida. Ou seja, a situação do autor antigo vai-nos parecendo cada vez mais algo mitológico, e nossa compreensão do texto se torna deficiente, na medida em que os atos humanos destituídos de sua motivação nos parecem postiços, esquisitos, sem sentido. Por outro lado, à medida que o tempo passa, os meios de pesquisa, de reconstituição dos textos e dos fatos históricos progridem assustadoramente. Hoje temos uma idéia muito mais correta do que é o conjunto dos textos de Platão ou Aristóteles do que tínhamos quinhentos anos atrás. Hoje em dia existe uma precisão muito maior com relação à cronologia dos escritos. E até certo ponto, saber a ordem cronológica da produção dos escritos é importante para a compreensão da obra. Principalmente no caso de obras que chegaram até nós em estado mais ou menos fragmentário, como é o caso das obras de Aristóteles. No caso de alguns de seus textos, não sabemos bem como eles foram montados. O livro conhecido como Metafísicaresulta de vários enxertos de textos feitos em épocas distintas. Ora, se temos um texto escrito pelo autor aos 28 anos e outro aos 60, tratando mais ou menos do mesmo assunto, podemos subentender uma continuidade de argumentação que na realidade não existe, que foi projetada ali pelo leitor. Do mesmo modo, textos que estão desconectados no seu conteúdo podem ser contemporâneos e corresponder mais ou menos a um idêntico fundo de preocupações. A ciência da filologia, que procura a reconstituição, a ordenação e a compreensão profunda dos textos, referidos à cronologia, à situação histórica etc., é a ciência que vem em nosso socorro neste sentido.

À mesma medida que o decurso do tempo nos torna um filósofo mais ou menos incompreensível, também os progressos da filologia nos fornecem os meios de restaurar artificialmente esta compreensão que vai nos faltando. É uma espécie de compensação artificial da perda natural. Como vitaminas que retardem o envelhecimento. À medida que os textos envelhecem, a filologia trata de rejuvenescê-los.

A incompreensão histórica: historicismo e desistoricismo.

Mas ao mesmo tempo existe outro desgaste mais profundo que nos dificulta a compreensão. A nossa civilização é a primeira que tem acesso a documentos da história de todas as outras civilizações e todos os outros tempos. Desde que começa a se constituir a ciência histórica, a partir do século XVIII, e a moderna filologia que já vinha desde o Renascimento, vamos conseguindo reunir uma documentação cada vez melhor, cada vez mais extensa, cada vez mais depurada a respeito de todas as épocas, lugares e civilizações. A partir do começo deste progresso da ciência histórica é grande a tentação de forjar imaginativamente uma espécie de esquema da unidade do desenvolvimento da história humana, com base nesta documentação reunida. À medida que começa a progredir a ciência histórica, também começa a progredir a filosofia da história ( séculos XVIII e XIX ), que propõe uma visão global do desenvolvimento humano, no sentido, por exemplo, de um progresso em uma determinada direção. É aí que o progresso da ciência histórica é compensado também por um progresso do erro. Porque as primeiras grandes generalizações que a história da filosofia faz são evidentemente erradas, já que sua documentação é insuficiente e não há métodos ou critérios maduros. E à medida que a documentação nos séculos seguintes ( XIX e XX ) progride, tendemos a receber esses documentos já com uma perspectiva viciada pelas primeiras filosofias da história que surgiram. De modo que, por exemplo, a idéia de um progresso linear do conhecimento está tão arraigada na nossa mente hoje, que dificilmente conseguimos ver uma filosofia antiga, exceto como algo que está “situado no seu tempo” e que já não nos diz nada exceto como documento histórico. Como se Aristóteles ou Platão tivessem falado apenas para os gregos, na situação grega, e não para nós. Esta perspectiva é denominada historicista. Situa cada idéia no seu contexto histórico, cultural, social, e fazendo isto, ao mesmo tempo ela nos ajuda a compreender essas idéias em função dos seus motivos, mas por outro lado, ela distancia de nós estes textos, na medida em que os refere às preocupações imediatas das quais brotaram, e distingue radicalmente estas preocupações das nossas: os antigos ficam presos no “seu tempo” e nós no “nosso tempo”, como se os seccionamentos do tempo, na verdade invenções artificiais dos historiadores, fossem distinções reais e como se não houvesse, por trás da irreversibilidade do calendário, sutis intercâmbios de afinidade entre tempos distantes entre si.

A perspectiva historicista, que surge no século XVIII e vai-se afirmando ao longo de todo o século XIX e que está profundamente embutida na nossa mente —- como uma espécie de dogma no qual acreditamos sem exame —- acredita que situar as coisas na sua devida perspectiva temporal é a melhor ou única maneira de compreendê-las. Ora, na medida em que você situa os fatos e as idéias num tempo histórico, você também os relativiza, os torna relativos a esse tempo, e atenua ou diminui a importância, a significação, o valor e a eficácia que possam ter para nós hoje. A compreensão historicista torna-se, por isto, uma verdadeira descompreensão, um afastamento artificial do sentido das mensagens. Ao invés de reviver os valores do passado, ela os enterra no “seu tempo”, deixando-nos fechados na atualidade do presente como numa redoma de sombras.

Este é um problema de método da maior importância para o que vamos ver depois. Faça um modelo em miniatura e imagine que todas as idéias e sentimentos que você teve ao longo de sua vida você referisse exclusivamente e absolutamente à etapa da sua vida onde essas idéias e sentimentos surgiram, negando-lhes qualquer eficácia ou importância na sua vida presente. Por exemplo, se certas crenças ou sentimentos que surgem na infância, você os referisse inteiramente à situação de infância, e os explicasse exclusivamente em função daquele momento, como se a criança que você foi estivesse morta e enterrada. Isto quer dizer que cada idéia que você tem só seria válida para aquele momento, não conservaria nenhuma importância para os momentos seguintes. Por exemplo, na infância ou na adolescência, todos temos certas idéias e valores. A infância cultiva mitos, lendas, heróis, amores. Na adolescência temos grandes ambições e planos. Se depois, aos cinqüenta anos, digamos, fazendo nossa autobiografia, estudando-a “cientificamente”, referimos estas idéias exclusivamente às etapas em que surgiram, tiramos a validade atual que elas possam ter, julgamos a nossa infância com olhos do homem maduro, considerando-o um juiz absoluto de uma infância que já não não pode falar, e que será condenada sem ter sido ouvida, assim como mais tarde olharemos a idéia do homem maduro com a perspectiva do velho que seremos, e esse homem maduro, já não tendo nada o que dizer ao velho, será condenado por este num tribunal onde o réu está sempre ausente. Se, das épocas que vão passando, nada conserva a validade sempre atual de uma primavera que não passa, nossa vida não passa de uma coleção de cadáveres —- ou, pior ainda, de uma sucessão de traições e abandonos. Isto significa que situar as idéias na sua perspectiva histórica, por um lado, é compreendê-las em função do momento, mas por outro lado é chutá-las para aquele momento, e tirar delas a vitalidade que possam ter neste momento. O historicismo, por um lado, nos dá a compreensão da história, mas se ele eleva a história, isto é, o desenvolvimento temporal, a supremo ou único critério do entendimento, ele situa cada idéia no seu tempo e cada idéia só é válida no seu tempo. Ora, se as idéias só fossem válidas no seu tempo, na realidade não seriam válidas para tempo nenhum, porque representariam apenas imagens que passaram pela mente humana e que somente expressam aquele momento, cuja duração pode ser de um século como pode ser de um dia. Ora, se fosse assim, se as idéias expressassem exclusivamente aquele momento, sem nenhuma validade para os momentos seguintes, não poderíamos nem sequer compreendê-las. De modo que o historicismo que cria este afunilamento e refere as idéias aos momentos e situações históricas tem de ser compensado por uma operação inversa, uma espécie de “desistoricismo”, que julgue estas idéias não pelo momento onde surgiram, mas pelo que elas exigem e cobram de nós hoje. Isto é válido para a história do mundo como para a nossa história pessoal. Lembro-me de uma sentença de Alfred de Vigny, grande poeta do Romantismo francês, segundo a qual “uma grande vida é um sonho de infância realizado na idade madura”. Sim, se o homem maduro já não recorda os seus sonhos de infância, ou se, recordando-os, já não sente o apelo da sua mensagem, então como ele irá julgar e compreender a trajetória da sua vida, exceto como uma sucessão de imagens que, não tendo sentido umas para as outras, não formam, juntas, sentido nenhum? Um outro grande escritor, Georges Bernanos, quando lhe perguntaram para quem escrevia, respondeu: “Para o menino que fui.” O menino é o juiz do homem, porque aquilo que vem depois é a realização, ou o fracasso, das expectativas e sonhos de antes.

Ora, se julgarmos a nossa personalidade de hoje à luz das nossas aspirações de infância ou de juventude, freqüentemente o resultado deste julgamento será negativo. Neste sentido, o historicismo é uma espécie de analgésico da consciência, porque ele nos dispensa de prestar satisfações às nossas idéias e projetos antigos, ele secciona a vida de tal modo que ela perde a unidade. Ora, o sentido dos meus atos e da minha vida agora só existe se eu os confrontar com os meus sonhos e projetos do passado. Porque você só pode entender aonde chegou se comparar com aonde queria ir.

Na sua maneira de compreender o pensamento antigo, a maior parte das pessoas ainda está hoje sob o domínio do historicismo. Ou seja, hoje compreendemos muitíssimo bem as idéias de Aristóteles ou de Platão, em função de seu momento e lugar de origem. Mas ainda não realizamos a operação desistoricista, que nos levaria a compreendê-los em função daquilo que eles têm a dizer, não para os gregos, mas para todos os homens, inclusive nós. Conseguimos julgar as suas idéias em função do ponto onde viemos parar, mas ainda não fizemos a operação contrária que é a de julgar a nós mesmos em função de Platão e Aristóteles, ou da antiguidade em geral. Fazemos do nosso tempo o juiz da Antiguidade e jamais convocamos a Antiguidade a depor sobre o nosso tempo. Julgamos, como dizia Karl Kraus, para não sermos julgados. Para corrigir isso, devemos desligar-nos da perspectiva unilateramente temporal e evolutiva, e, invertendo o historicismo, julgar o presente com os critérios do passado.

Esta operação de vai-e-volta foi realizada, por exemplo, em outro sentido —- não temporal, mas espacial —-, na ciência da antropologia. A antropologia começa a surgir no século passado com os viajantes, sobretudo ingleses. Inglês tem esta mania de viajar e se instalar em tudo que é lugar exótico do mundo. Os ingleses vão desenvolvendo a antropologia na medida em que mandam para a Sociedade Científica de Londres informações sobre os hábitos, costumes, valores de todas as sociedades do mundo. Graças a este imenso acúmulo de informações sobre as outras sociedades foi possível de surgir no campo da antropologia o relativismo antropológico. Isto significa que não devemos olhar as outras culturas somente com os olhos da nossa, mas tentar fazer o contrário: olhar-nos também com os olhos da outra cultura. Se o antropólogo inglês está entre os pigmeus da Nova Guiné, não interessa só o que o inglês pensa sobre eles, mas o que eles pensam do inglês. Isto se chamou relativismo antropológico. Também não deve ser absolutizado, transformado num dogma da equivalência de todos os valores, mas é um método útil, porque ajuda a compreender os outros povos nos seus próprios termos.

O nosso historicismo precisa ser compensado por uma espécie de relativismo, não no sentido geográfico, como fizeram os antropólogos, mas no sentido temporal, de olhar o nosso tempo com os olhos de outros tempos. Se existe um relativismo cultural, tem de existir um relativismo histórico também. O próprio historicismo realiza uma relativização, mas no sentido de encaixar cada idéia no “seu tempo” e fazer uma coleção de “idéias-tempo”, cada qual no seu vidrinho cronológico, bem fechadinha e sem contaminação de outros tempos, isto é, todas igualmente neutralizadas e “relativizadas”. Mas, como este tipo de relativismo neutralizante é próprio do nosso tempo e resulta de uma ideologia cientificista que é bem da modernidade, praticá-lo é impor uma perspectiva moderna aos outros tempos, fingindo respeitá-los nas suas respectivas especificidades estanques. Não é isto o que proponho. Proponho julgar o nosso tempo com os olhos de outras épocas, não a título de diletantismo relativista, mas como um meio de autoconhecimento e uma exigência prévia do método científico em história. Neste sentido, a antropologia, que muitas vezes, com base em valores de outras culturas, fez críticas profundas à nossa cultura presente, tem sido mais sensata do que a História, ou pelo menos do que a História do pensamento, onde os valores do presente continuam a medida de todas as coisas.

Se achamos que para ter uma descrição objetiva de uma outra cultura precisamos olhar com uma espécie de dupla via, do nosso ponto de vista e do ponto de vista dela, é evidente que o julgamento de uma outra época implica também esta dupla via. Não olhar apenas o lugar que Platão e Aristóteles ocupam dentro de uma evolução cultural que chegou até nós, mas inverter esta evolução e perguntar o que Platão e Aristóteles diriam vendo o ponto a que chegamos. Esta é uma exigência sine qua non do método científico. A esta fase, os estudos sobre a antiguidade ainda não chegaram. Anuncio isto como ideal futuro. Por enquanto, a quase totalidade dos livros conseguiu apenas reconstituir o mundo grego, situando-o na perspectiva do seu tempo. Mas na mesma medida em que se aperfeiçoa esta visão histórica, esse mundo grego vai-se tornando distante e diferente do nosso, e com isto ele perde gravidade, presença, realidade. É o mesmo que dizer: “Que importância tem a opinião sobre você de um sujeito que mora longe, que você nunca encontrou, e ademais já morreu há muito tempo?” Agora, se o fantasma deste sujeito ressurgir e começar a julgar os seus atos neste momento, ele ganha atualidade, adquire gravidade. As outras culturas — culturas indígenas, por exemplo — ganharam da antropologia este privilégio de poderem julgar a nossa cultura. As consequências práticas disto foram imensas, como se vê pelo crescimento do movimento indigenista e pela incorporação de valores indígenas na cultura atual. Por que este privilégio deveria ser concedido apenas no sentido geográfico, e não no sentido histórico? É simples: por que então certas idéias e valores que decretamos “ultrapassados” mostrariam todo o seu vigor, todo o esplendor da sua juventude imperecível, e cobrariam de nós um dever de perfeição a que o historicismo nos ajuda a fugir.

O método filológico da compreensão dos textos só se tornará completo e perfeito quando à perspectiva historicista acrescentarmos este giro desistoricista. Ou seja, quando o afunilamento que remete o passado para longe for invertido e colocarmos diante de nós esses antigos, como nossos juízes.

Esta será nossa preocupação permanente neste curso. Não entender somente Aristóteles como um fenômeno que aconteceu há 2.400 anos, mas olhar a nós mesmos como um fenômeno que aconteceu 2.400 anos depois de Aristóteles.Como poderíamos reviver a perspectiva dos antigos e torná-los nossos juízes? É muito simples. Pela mesma maneira pela qual você julga sua vida de adulto em função dos seus projetos de criança e adolescente. Você revivifica estes projetos, estes sonhos e pergunta: o que a criança que fui diria de mim hoje? E é somente a partir daí que você pode saber se sua vida foi um fracasso ou um sucesso. Temos de verificar esta perspectiva dos antigos e perguntar: Naquele tempo, o que eles esperavam que acontecesse, ou o que desejavam que acontecesse no futuro? Quais eram os sonhos, projetos, ambições e valores que eles projetavam nas gerações futuras? Que é que eles esperavam da sua posteridade que somos nós? Se sabemos, graças à filologia, à interpretação dos textos e ao historicismo, julgar nossos antepassados, podemos, graças a um esforço de imaginação fundado no mesmo historicismo, tornar atuais novamente as expectativas que os antigos fariam sobre seus descendentes, que somos nós.

Como Aristóteles julgaria a nossa visão do aristotelismo?

Às vezes penso que se Aristóteles visse que, 2.400 anos depois dele, ainda estamos lutando para ver se conseguimos organizar as ciências num sistema orgânico, que ainda estamos discutindo “holismo”, ele acharia que somos muito lerdos e atrasados. Ele diria: “Por que se afastaram tanto desta idéia para ter de voltar a discuti-la 2400 anos depois?” Aristóteles provavelmente apreciaria muito as obras de Edgar Morin, mas estranharia que tivessem sido escritas só no século XX, e não no II ou III. Aristóteles provavelmente julgaria que o progresso na história das idéias é muito tortuoso, muito lento e muito problemático.

Também creio que ele ficaria muito surpreso com a maior parte dos debates que surgiram em torno dele ao longo da História. Ele diria talvez: “Nenhum desses que vocês estão discutindo sou eu. Todos estes Aristóteles que vocês discutiram são sua própria invenção, uma sucessão de Aristóteles imaginários, uns diferentes dos outros, nos quais uns projetam o seu herói e outros o seu antagonista. Uns o divinizam e outros o diabolizam. E ficam lutando com estas sombras. Mas eu não tenho rigorosamente nada a ver com isto. Não sou nem cristão nem anticristão, nem racionalista nem empirista, nem materialista nem idealista, não sou nem um pré-Hegel nem um neo-Platão, nem um anti-isto nem um pró-aquilo, e nada tenho contra nem a favor dos partidos que surgiram depois de mim. Sou apenas um homem de ciência buscando compreender o real e esperando que meus sucessores façam o mesmo com igual empenho.”

Por isto mesmo, concebi este curso e achei que, para chegarmos ao Aristóteles real, de carne e osso, para presentificá-lo de alguma maneira, temos de partir do exame dos Aristóteles imaginários. Algumas das próximas aulas analisarão as “imagens de Aristóteles”. Imagens não são Aristóteles, mas o que cada época pensou que Aristóteles fosse, e as discussões que estabeleceu com este estereótipo, o qual coincide em parte com o Aristóteles real, mas em parte se afasta dele. Hoje podemos ter toda esta perspectiva graças à imensa documentação acumulada, graças aos prodígios da ciência histórica e filológica que nos coloca à disposição um imenso material (ver Documentos Auxiliares II ). Nosso estudo vai começar como uma investigação dos equívocos humanos. No mundo da filosofia e da ciência também impera, muitas vezes a fantasia, a ignorância, a imaginação projetiva, e isto nos obriga a começar o nosso estudo aristotélico com uma espécie de psicanálise das imagens de Aristóteles. Só isto nos dará uma idéia aproximada das relações que temos e das que podemos ter com ele hoje.

Na medida em que Platão e Aristóteles formam uma espécie de paternidade da civilização ocidental, é natural ainda que esta civilização faça sobre eles todas as projeções edípicas a que a neurose tem direito. Muitas vezes, na luta pela auto-afirmação, o homem acredita dever exorcizar a imagem paterna que no seu entender limita, restringe etc. etc. Lutas contra a imagem paterna são algo em que todo mundo se envolve numa certa etapa da vida. Mas um dia essa etapa chega ao fim, e você tem de entrar num acordo com a imagem paterna, absorvendo os seus valores positivos e perdoando, com bondade, os negativos. No entanto, nossa civilização ocidental prosseguiu neste conflito edípico com Platão e Aristóteles, e principalmente com Aristóteles, até pelo menos o século XIX. Não sei se ainda estamos nele, mas me parece que hoje em dia a tendência é para uma atitude mais compreensiva.

Alguns exemplos de imagens mutiladas, frutos do do desconforto permanente —- ou cíclico —- que Aristóteles causa há dois milênios:

  1. Na Igreja Ortodoxa Russa, Platão e Aristóteles foram tidos —- e em certas circunstâncias ainda são —- como dois verdadeiros demônios. Sua leitura é considerada prejudicial para a salvação das almas — hoje. A Igreja Russa surge no século VIII; são doze séculos de preconceitos.
  2. No mundo islâmico, existem algumas correntes esotéricas que consideram Platão e Aristóteles como profetas e até mesmo como anjos do Senhor — algo assim como uma dupla de Hermes Trimegistos, descidos ao mundo para trazer uma revelação. Uma outra corrente os olha mais ou menos como a Igreja Russa.
  3. No Ocidente cristão, as primeiras reações contra Platão e Aristóteles foram do mais incompreensivo desprezo. Alguns, como Tertuliano, logo identificaram a filosofia grega como a “sabedoria mundana” de que fala a Bíblia. Os mais moderados, como Clemente de Alexandria, aceitaram a filosofia como uma introdução ao cristianismo, mas nada além disto.
  4. Enquanto isso, no lado pagão, a escola epicúrea, mesmo depois da edição dos textos de Aristóteles por Andrônico de Rodes, continuava a difundir, com mecânico servilismo, as opiniões de seu fundador a respeito de Aristóteles, baseadas apenas nos escritos publicados em vida do autor e de natureza puramente literária.
  5. Após a edição de Andrônico, os escritos de Aristóteles desapareceram do Ocidente pela segunda vez, só retornando dez séculos depois, por intermédio de traduções latinas feitas de versões árabes ( vocês podem imaginar com quantos erros, saltos e interpolações ).
  6. Divulgados em tradução latina, os escritos de Aristóteles causaram escândalo, porque pareciam contrariar de frente os dogmas cristãos. Muitas teses de Aristóteles foram formalmente condenadas pelos concílios, antes mesmo que alguém se desse o trabalho de procurar assegurar-se do sentido dos textos.
  7. Foi só com Sto. Alberto e Sto. Tomás, já no século XII, que a Igreja, muito cautelosamente, se reconciliou com Aristóteles. É um casamento que vem durando quase oito séculos, com alguns percalços. Esta reconciliação, longe de ser aceita unanimemente logo após formalizada, continuou sendo combatida e discutida dentro da própria Igreja até o século XIX. Hoje em dia todos sabem que Sto. Tomás de Aquino é um discípulo e um seguidor cristão de Aristóteles. Todos vêem o império que Santo Tomás de Aquino exerce sobre o pensamento cristão e imaginam ingenuamente que as coisas sempre foram assim. Mas a posição de que Santo Tomás de Aquino desfruta hoje dentro da Igreja só foi estabelecida no século XIX, meia dúzia de séculos depois de sua morte. Mesmo assim, muitos somente o aceitaram porque o Papa mandou. O famoso aristotélico-tomismo só existe no mundo como posição estabelecida a partir do século XIX, depois de uma bula de Leão XIII, o qual era pessoalmente um filósofo aristotélico e seguidor de Tomás, resultando que a mera obediência a esse Papa acabou virando uma escola filosófica sob o nome de aristotélico-tomismo, nome que o próprio Tomás sem dúvida acharia um tanto cômico.
  8. Outra imagem de Aristóteles é aquela que se formou com os debates do Renascimento em torno da astronomia. Aristóteles formulou, na física, os rudimentos de uma astronomia onde as órbitas dos planetas seriam circulares. Esta imagem foi refutada pelos cálculos de Kepler, e chegou-se à conclusão de que a física de Aristóteles, neste ponto, estava errada. A partir daí, Aristóteles virou um símbolo de todo o saber medieval, que alguns autores nesta época pretendiam derrubar, na ilusão de que um tiro em Aristóteles acertaria na cabeça da Igreja Católica, sem que jamais lhes tivesse ocorrido que a Igreja vivera perfeitamente bem sem Aristóteles durante doze séculos. Pode-se ler em quase todos os livros de história da ciência — livros populares — a idéia de que Aristóteles imperou sobre a ciência medieval e foi derrubado na Renascença. Esta sentença é uma idéia de senso comum, hoje repetida a torto e a direito. É uma idéia totalmente errada. Em primeiro lugar, Aristóteles começa a conquistar algum lugarzinho na ciência medieval somente a partir de Sto. Tomás de Aquino, já na última fase da Idade Média, e mesmo assim não obteve uma repercussão e aceitação imediatas, tanto que várias de suas teses foram também impugnadas por concílios, na época. Depois se retirou a impugnação. De outro lado, existe um fenômeno muito esquisito que é o de que um dos livros de Aristóteles — a Poética — fica desaparecido desde o século I até o século XVI, e quando é reencontrado, traduzido e comentado, serve de molde à criação de tudo o que hoje chamamos estética do classicismo, da qual são amostras o teatro francês de Racine, Corneille e Voltaire. A poética de Aristóteles começa a exercer um império absoluto sobre o gosto literário do mundo moderno, justamente no mesmo instante em que a física aristotélica estava sendo rejeitada. E os escritores e poetas, a partir da Renascença, seguiram Aristóteles com mais subserviência do que todos os físicos medievais. A idéia de que Aristóteles imperou na Idade Média e de que nos livramos dele na Renascença é verdadeira, portanto, só se for olhada do ponto de vista da história de uma ciência em particular, que é a astronomia. Do ponto de vista da história literária, é exatamente o contrário. Como se vê, as generalizações que dividem a história em etapas são muito falhas.
  9. Nos séculos XIX e XX surge um novo debate aristotélico, desta vez no campo da biologia, em torno da idéia de uma causa final (finalidade do mundo). Segundo Aristóteles, os fenômenos biológicos, além de serem suscitados por causas eficientes que os provocam, também obedecem a um sentido finalístico, a um senso de propósito fundado na unidade cósmica. Há cem anos prossegue um debate dentro da biologia em torno deste ponto. O livro de Jacques Monod, por exemplo, O Acaso e a Necessidade, é uma vasta discussão com Aristóteles.
  10. Cada nova descoberta importante, cada nova escola filosófica, logo cria uma discussão com Aristóteles, desde o exclusivo ponto de vista dessa descoberta em particular, como se o ponto que é central para seus autores fosse central também para Aristóteles e como se o pensamento deste pudesse ser reconstruído tomando esse ponto como base. Assim, pró ou contra, novas imagens de Aristóteles foram produzidas desde o ponto de vista da evolução biológica ( para saber se Aristóteles era darwinista ou não ), do marxismo ( para alguns marxistas, Aristóteles é um precursor do materialismo, para outros é um idealista incurável ), da nova lógica matemática ( para decidir se Aristóteles adiantou ou atrasou o descobrimento dela ), e assim por diante. Isto é para vocês terem uma idéia de como estes temas aristotélicos —- deformados o quanto sejam pela parcialidade dos interesses que levam a buscá-los em cada caso —- voltam obsessivamente e de certo modo são a gasolina que vem movendo a máquina das idéias há dois mil anos.
  11. O que vamos fazer, então, é passar em revista primeiro estes vários Aristóteles, ou pedaços de Aristóteles, contra e a favor dos quais surgiram debates, para ver se por trás deles encontramos um Aristóteles real e inteiro. É evidente que se os debates em torno de um filósofo, durante um certo tempo, se concentram num determinado ponto, este ponto passa a ser considerado o centro do seu pensamento. Isto pode se prolongar por dois, três, quatro séculos. Por exemplo, quando os cristãos lêem Aristóteles pela primeira vez e vêem que ele afirma que o mundo é eterno, ficam escandalizados, porque na perspectiva cristã Deus criou o mundo numa certa data. Antes o mundo não existia, e depois do “Fiat Lux” passou a existir. Aristóteles dizia que o mundo sempre existiu, o que produziu séculos de encrenca no mundo cristão. Resultado: todos esses cristãos, desde os primeiros até o tempo de Sto. Tomás de Aquino —- dez séculos —- constroem a sua interpretação de Aristóteles, pró ou contra, tomando como ponto de partida este ponto de discordância. Todas as demais teses de Aristóteles ficam referidas a esta, como as consequências são derivadas da causa, e o resultado é que as teses mais importantes de Aristóteles ficam jogadas para a periferia, obscurecidas pelo debate da eternidade do mundo. Mais tarde, quando, num contexto completamente diferente, surge a discussão em torno da circularidade das órbitas planetárias, a Renascença constrói sua imagem de Aristóteles tomando como centro este ponto que estava em debate. Isto é tão absurdo como tentar construir o retrato do indivíduo tomando como centro as objeções que outros tiveram contra ele, por exemplo o trocador do ônibus que ele pagou com uma nota alta, o bedel que ralhou quando ele chegou atrasado para a aula, o motorista cujo caminho ele fechou num cruzamento, etc. Nunca se chega a nada — a não ser uma coleção de retratos que têm como centro de perspectiva não o personagem, mas o interesse acidental que este ou aquele aspecto dele suscitou para este ou aquele indivíduo. A história das imagens de Aristóteles, ou de Platão, e de muitos outros filósofos é assim: você vem andando por um caminho e tropeça com um filosofo; ou adere a ele ou se opõe a ele em algum ponto, e o conjunto de imagens que você forma dele é construído não a partir dele, mas a partir do seu calo que ele pisou acidentalmente. É inevitável que seja assim —- o que não quer dizer que seja justo. É inevitável que o conhecimento do filósofocomece assim, ao sabor dos encontros e desencontros acidentais. Mas algum dia é necessário fazer uma revisão do todo e tentar fazer justiça, adotando um ponto de vista que abarque, transcenda e unifique todas estas perspectivas parciais, acidentais e desencontradas. É mais ou menos esta a ambição deste curso.

Limitações da minha perspectiva pessoal sobre Aristóteles.

Este curso transmite o resultado de uma convivência de mais ou menos quinze anos com Aristóteles. Tenho de reconhecer que também eu me defrontei com ele movido por algum interesse pessoal meu que talvez não tivesse nada de aristotélico, e comecei a reconstruí-lo desde aquilo que ele representou para mim. A diferença é que estou perfeitamente consciente de ter feito isto e estou consciente de que a minha perspectiva sobre Aristóteles é acidental. E sobretudo estou consciente de que, se tenho uma visão dele, ele também tem o direito de ter uma visão de mim. Isto quer dizer que toda a vez que eu examinar uma idéia dele e tentar expô-la, tenho de procurar ver a coisa dos dois pontos de vista. Tenho de estar consciente de por que esta idéia me chamou a atenção, de qual o momento da minha vida intelectual em que aquilo entrou nas minhas cogitações. Mas também tenho a obrigação de tentar olhar com olhos de Aristóteles, o qual pode eventualmente me dizer: “Esta pergunta que você lançou a meu respeito é absolutamente irrelevante, não interessa para a interpretação do meu pensamento.” Só olhando por este duplo lado podemos ter, não digo uma certeza, mas uma probabilidade de alcançar, se não uma visão científica objetiva e certeira, pelo menos uma opinião justa e razoável.

No dia-a-dia, julgamos as pessoas das maneiras mais apressadas e levianas. Porém, uma figura como esta que influenciou a humanidade inteira durante 2400 anos, e que continua sendo discutida até hoje, merece um esforço de objetividade. O estudo das obras de um filósofo —- que não é filosofia ainda, é filologia, é estudo de textos, é uma preparação filológica à filosofia — deixa para nós um resíduo que é de alto valor. Consiste na consciência das dificuldades que temos para entender o que uma outra pessoa pensa, e que não é maior no caso de Aristóteles do que no caso do nosso vizinho, da nossa empregada, dos nossos parentes e amigos. O sentido de uma frase isolada, no instante em que foi dita, é uma coisa. Entender o que esta frase significa no contexto da vida de quem a disse, e com o valor e a intenção precisos com que a disse, é outra muito diferente.

A filologia é a compreensão dos textos. Os textos são expressões privilegiadas da mente humana. A filologia é, neste sentido, o estudo do ser humano, a disciplina que nos habilita à compreensão de outros seres humanos. E por isso foi considerada sempre a rainha das humanidades. Um escritor medieval, Marciano Capella, fez dela a esposa do deus Mercúrio, o deus dos intercâmbios, do encontro, da conversação e do entendimento. Humanidades é o estudo que faz você situar-se dentro da espécie humana, compreender-se como membro da espécie a que pertence. Ensinando você a entender que não é melhor que nenhum dos outros, que seu pensamento é pelo menos tão obscuro e errado como o dos outros, e que somente um longo trabalho de compreensão pode colocá-lo em condição de discutir a validade ou não das idéias de um outro, a filologia é um treino de paciência e tolerância, no sentido em que diz Spinoza: “Não rir, não chorar, nem condenar — mas compreender.”

Ainda uma palavra, sobre objetividade e neutralidade A idéia de que a compreensão científica deve ser neutra pode ser compreendida em dois sentidos. Estar neutro pode querer dizer não estar interessado num ou noutro dos lados que o desenlace de uma questão pode tomar. Mas também pode significar a ausência de amor, de paixão pela verdade, a crença errônea de que se pode compreender a realidade sem amá-la, e como que por um olhar distante e blasé. Mas o juiz justo, se é neutro ante os interesses da partes, não é neutro ante o processo. Ele deve ter a paixão de encontrar a solução correta. É somente esta paixão de encontrar a verdade que nos poderá por na pista para um dia podermos ter a certeza de haver inteligido razoavelmente alguma coisa, tanto quanto o melhor da tradição milenar de ciência e filosofia que nos antecedeu poderia esperar de nós.

Antes de encerrar, eu gostaria de dar algumas explicações sobre a lista de nomes no Documento Auxiliar II: Marcos na História dos Estudos Aristotélicos. Com base nesta lista é que obteremos uma idéia sobre os progressos e retrocessos que a compreensão de Aristóteles foi tendo na história do pensamento. Dos autores aqui citados temos basicamente três tipos de estudiosos, que abordam o tema aristotélico desde três perspectivas e com três interesses diferentes.

  1. O filósofo que expõe, comenta e discute os textos de Aristóteles, desde o ponto de vista da sua importância propriamente filosófica. No século II, há, por exemplo, Alexandre de Afrodísia, que produziu um comentário de Aristóteles que vale até hoje. Com o mesmo interesse filosófico são redigidos os comentários de Sto. Tomás de Aquino.
  2. O filólogo, às vezes misto de historiador da filosofia; um sujeito que, sem ter a ambição pessoal de fazer uma filosofia própria ou de fazer avançar a filosofia, põe em ação um conjunto de recursos científicos que lhe permite estabelecer comparações históricas, avaliar o peso de cada palavra, reconstituir o texto na sua materialidade e no seu sentido. No século XX, um dos grandes exemplos é Werner Jaeger, homem a quem devemos um esplêndido trabalho de reconstituição biográfica da evolução do pensamento de Aristóteles. Com isso Jaeger mostrou que em nem todas as suas idéias Aristóteles acreditou ao mesmo tempo. Ou seja, que nem tudo o que está escrito nos seus textos pode ser exposto todo numa lousa como se fosse um sistema coerente e chapado, mas que algumas das idéias que estão nesses textos foram pensadas e depois abandonadas, refutadas pelo próprio Aristóteles. O filólogo faz o trabalho mais humilde e apagado, mas sem ele jamais poderíamos chegar à compreensão dos textos antigos.
  3. O sujeito que não é nem um filósofo expondo idéias de Aristóteles, nem um filólogo que procura aprofundar o conhecimento científico dos textos — mas apenas um filósofo que está desenvolvendo as suas próprias idéias e que acidentalmente esbarra em Aristóteles e, em função da sua filosofia pessoal, se posiciona, a favor ou contra. Como exemplo cito aqui John Locke, famoso chefe da escola empirista inglesa. Ele não discute propriamente Aristóteles, mas, desenvolvendo a sua própria filosofia, reforça certos aspectos da filosofia aristotélica e enfraquece outros, disso resultando que as gerações seguintes passam a ler Aristóteles de uma nova maneira, isto é, à luz das idéias do pensador mais recente. Na época de Locke surge o grande debate da filosofia entre racionalistas e empiristas. Para a escola racionalista (Spinoza), a razão, o puro raciocínio é a principal fonte do conhecimento, e a experiência real pouco nos revela sobre a realidade das coisas. Para a escola empirista, exatamente o contrário: a principal fonte de conhecimento é a experiência e os padrões racionais com que julgamos a experiência são, eles mesmos, produtos da experiência. Estas duas escolas, que dominam o debate filosófico durante dois séculos, como se verá em qualquer livro de História da filosofia, são como duas metades de uma laranja aristotélica, porque Aristóteles era as duas coisas ao mesmo tempo — empirista e racionalista. Só que, a partir dessa época, a laranja é partida, e os dois lados que em Aristóteles estavam tão bem sintetizados se separam de maneira antagônica. Tanto racionalismo quanto empirismo são filhotes de Aristóteles, mas filhotes hostis entre si, repetindo um Leitmotiv da história humana, o motivo dos gêmeos inimigos, como Esaú e Jacó. Estudando a filosofia deste período de John Locke e Spinoza, século XVII, não na perspectiva geral da história mas na perspectiva dos estudos aristotélicos, entendemos que esta bipartição entre racionalismo e empirismo determinou uma mudança na visão que a cultura européia tinha de Aristóteles.

Dentro desta categoria dos que fizeram de temas aristotélicos um aproveitamento próprio dentro de seus objetivos filosóficos pessoais, é bom destacar uma subespécie:

  1. O sujeito que pega alguma idéia aristotélica, citando ou não a origem, e a aplica a um setor determinado do conhecimento, no qual essa idéia se torna dominante. Por exemplo, quando, na entrada da Idade Moderna, alguns juristas procuravam separar os domínios do Direito e da Religião, era natural que buscassem em Aristóteles os fundamentos da idéia de direito natural. Só por este fenômeno, representado por exemplo por Hugo Grotius, vocês vêm como é errada a visão que identifica aristotelismo com Idade Média: a importância da contribuição de Aristóteles para o pensamento medieval não é maior nem menor do que a que ele deu às novas idéias científicas, jurídicas, estéticas, criadas a partir do Renascimento. Há, enfim, um Aristóteles para cada gosto, e, querendo ou não, ele tem dado e tirado reforço a praticamente todas as escolas de pensamento há vinte e tantos séculos. Para encerrar, espero que vocês tenham compreendido que este curso não será somente uma introdução ao pensamento de Aristóteles, mas também aos estudos aristotélicos, seja do ponto de vista filosófico, seja histórico-filológico. Espero que este curso abra para vocês um leque de caminhos para esses estudos.

Aula II – Parte I

 

Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula I (Parte I)

Apostila do Seminário de Filosofia

PRIMEIRA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 15 de março de 1994.

Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Augusto Madeira
e Kátia Torres Ribeiro

 

1a parte

Nesta primeira aula, serão colocadas as premissas e métodos que vamos desenvolver em seguida. Tudo o que vamos expor aqui é baseado não só nos textos de Aristóteles como nos dos autores de estudos aristotélicos já relacionados no Documento Auxiliar II.

O esquema-padrão das introduções a Aristóteles.

Existem muitas maneiras de fazer uma exposição introdutória da obra de um filósofo. Mas, com relação a Aristóteles, existe uma certa fórmula que é adotada em quase todos os livros: colocar uma introdução biográfica, uma segunda introdução de ordem filológica que dá a composição da bibliografia do autor, e depois a exposição de sua filosofia de acordo com uma ordem que está consagrada há mais de dois mil anos:

1) Obras e doutrinas lógicas.

2) Obras de Física — de um lado a filosofia da natureza de um modo geral, na qual o que hoje chamamos de Física seria apenas uma parte, abrangendo também Geografia, Geologia, Astronomia, Meteorologia etc.; de outro a Biologia, com a Psicologia como uma sua parte ou extensão.

3) Tratado de Metafísica — por ele chamada de Teologia, e também de Ontologia e Filosofia Primeira.

4) Ética e Política.

5) Poética e Retórica.

Muitos livros sobre Aristóteles seguem na sua exposição rigorosamente esta ordem. É a que foi adotada no século I a.C. para a ordenação dos escritos aristotélicos por Andrônico de Rodes.

Desde o momento em que essa ordem se consagrou, foi adotada não só para todas as reedições dos escritos mas também para a maioria das exposições da filosofia aristotélica.

Sempre que um esquema desses se consolida, vira uma espécie de cacoete e nos induz a ver as coisas sempre pelos mesmos lados. Aristóteles estaria completando, se vivo, 2400 anos de idade, tempo mais que suficiente para se consagrarem a seu respeito erros e confusões de toda espécie que, sacramentados pela antiguidade, podem se tornar verdades inabaláveis.

A filosofia, atividade da consciência individual.

À medida que passa o tempo e que as várias tradições vão cristalizando a nossa maneira de ver o filósofo, se torna mais difícil sair de dentro delas para encarar esse filósofo com uma visão pessoal. Ora, em filosofia tudo o que não é visão pessoal não tem valor nenhum. Se há alguma coisa que distingue a filosofia das demais formas de saber, é o caráter radicalmente pessoal, individual das suas especulações. Nisto, ela difere totalmente de todas as demais formas de conhecimento, nas quais o consenso coletivo tem uma importância decisiva. Não concebemos uma ciência, no sentido em que hoje se emprega esta palavra, exceto como um sistema que vai sendo construído aos poucos, com contribuições de várias proveniências, e que vai se fechando numa espécie de edifício, num sistema das verdades científicas admitidas ou consagradas. De modo que, se num determinado momento um indivíduo enuncia uma tese, uma teoria que contrarie flagrantemente o sistema admitido, ele terá de argumentar muito bem, pois estará desafiando o consenso, compartilhado por toda a comunidade científica. É claro que nem todas as teorias científicas admitidas gozam de um consenso assim unânime, mas em geral é assim que as coisa se dão nesse setor.

Se formos para outro setor do conhecimento — a religião —, esta também é uma elaboração coletiva, e toda e qualquer prática religiosa subentende que um certo corpo de crenças é aceito como verdade uniformemente por toda a comunidade dos crentes. Subentende-se que o dogma — católico, judeu, mussulmano etc. — é entendido e admitido de maneira mais ou menos uniforme. O dogma é uma interpretação consensual do sentido das Escrituras.

Sócrates e o protesto da consciência individual ante o consenso social

Comparada ao que hoje chamamos de ciência, ou de religião, a filosofia se destaca por não haver nela a necessidade desse tipo de consenso e por requerer uma participação individual muito mais profunda. Desde o início, vemos que a filosofia nasce como o protesto de um indivíduo contra um consenso estabelecido. Este indivíduo chama-se Sócrates. Ele defronta-se com um conjunto de crenças e hábitos mentais e intelectuais, admitidos como válidos no seu meio e cultivados pelos indivíduos que eram a máxima expressão da cultura do tempo — aqueles que hoje chamamos sofistas. Eram professores de Retórica que iam de cidade em cidade procurando os jovens membros da classe dominante para lhes ensinar a arte da Retórica, com a qual poderiam ingressar na carreira política.

A educação grega consistia fundamentalmente de três coisas: ginástica, música e retórica. O ensino da retórica, prosseguindo durante séculos, tinha consagrado na classe dominante grega uma série de convicções e hábitos mentais. Um indivíduo isolado, que não dispõe de qualquer projeção pública peculiar, não exerce cargo público, não participa da política, que era apenas um soldado aposentado e se dedicava à arte da construção civil, um pequeno empreiteiro — este é Sócrates. Na juventude tinha sido mais ou menos famoso como soldado, algo como um herói de guerra. Mas, na maturidade, era um mero cidadão privado, que não era professor de nada, que não era político e estava rigorosamente fora da vida intelectual da época. É este indivíduo que, falando exclusivamente em seu próprio nome e sem poder alegar nenhuma autoridade, começa a questionar certas convicções estabelecidas, e não só questiona, mas desenvolve um método para interrogar as crenças estabelecidas e mostrar, ou que são contraditórias, ou que não têm base suficiente. O sentido da frase famosa “Só sei que nada sei” é irônico — significa que, se ele nada sabe, os outros sabem menos ainda.

Duas maneiras de dar coerência às nossas crenças.

A filosofia surge desse esforço de um indivíduo em particular para dar coerência às suas crenças. Podemos estabelecer a coerência de um corpo de crenças por duas maneiras contrárias. Uma delas é quando, pela prática repetida e pelo hábito, vamos harmonizando estas crenças com os nossos atos, com nossos hábitos e expectativas, também com as expectativas e hábitos dos outros e sobretudo com a nossa auto-imagem. De modo que, estando habituados a viver dentro dessas crenças, elas se tornam coerentes com o tom geral da nossa vida e por isto nos parecem coerentes em si mesmas e coerentes umas com as outras. Isto é, da unidade da nossa auto-imagem costumeira deduzimos erroneamente a unidade das nossas crenças.

A outra maneira de coerenciar as crenças é a filosófica. Significa confrontá-las teoricamente umas com as outras. Quando começamos a fazer isto, vamos ver que a nossa prática se assenta numa série de pressupostos contraditórios, que se desmentem uns aos outros. Isto, evidentemente, pode nos causar um certo espanto e nos deixar inseguros, derrubando uma auto-imagem tão laboriosamente construída.. De fato, Sócrates deixava as pessoas tão inseguras, que o compararam a uma enguia, um peixe-elétrico. Quem encostava nele levava um choque, pois ele demonstrava que as crenças mais comuns, tidas como coerentes e admitidas por todos, eram contraditórias umas com as outras e frequentemente autocontraditórias, quer dizer, intrinsecamente absurdas. Ele mostrava, por trás de uma ordem prática, uma desordem teorética.

Como a contradição se introduz nas crenças que sustentam a nossa prática? Através da nossa própria vontade. Quando queremos acreditar em determinadas coisas, porque nos interessam ou nos fazem bem psicologicamente, tratamos de forçar as idéias para que convivam umas com as outras, ainda que, pelos seus conteúdos respectivos, sejam de fato incoerentes entre si. Fazemos isto constantemente. Quem já se submeteu a algum tipo de psicanálise tem um idéia de até que ponto podemos mentir a nós mesmos, para sustentar um falso sentimento de coerência e integridade da nossa auto-imagem, justamente nos momentos em que nossa personalidade está mais dividida. Quanto mais incoerentes são nossas crenças, maior é o esforço de nossa vontade no sentido de dar um simulacro de coerência àquilo que não tem. Ora, se um indivíduo consegue fazer isto, quanto não conseguirá a coletividade? Nesta, você recebe o reforço de seus semelhantes e é protegido pela idéia de que, se erra, não erra sozinho, e de que tantos juntos não poderiam errar de maneira alguma. O auto-engano coletivo é mais eficiente do que o individual.

Quando vemos, no decurso do tempo, as mudanças de orientação da mentalidade coletiva, surpreendemo-nos com a sua volubilidade, com a sua leviandade. Como as pessoas mudam rapidamente de crenças sem sequer examinar as anteriores! Quantos ex-comunistas não gerou a queda do muro de Berlim, que, sem se sentirem abalados, giraram o botão da sua máquina de opinar e saíram com um novo discurso, falado com o mesmo tom de certeza do anterior discurso comunista? O sujeito abandona uma crença por outra sem um exame pessoal, mas apoiando-se em um novo consenso público. O consenso também tem suas mudanças, oscila entre a força do hábito e a força da moda, e quando simplesmente nos acomodamos às novas modas temos a impressão de estar nos renovando ou tornando mais autênticos, mas na verdade consenso é consenso, é sempre coletivo e fundado na imitação. Sempre que nos apoiamos no consenso público, velho ou novo, recorremos a uma espécie de reforço psicológico que ajuda a dar uma impressão de coerência àquilo que não tem nenhuma.

É justamente face a esse consenso coletivo — que pode ser político, religioso, ideológico, moral etc. — que se levanta a exigência filosófica. Ela parte de uma necessidade interior, de um impulso de honestidade fundamental no sentido de dar às idéias uma coerência efetiva e uma fundamentação mais sólida. É essa exigência de uma fidelidade mais profunda à nossa consciência de veracidade que é representada por Sócrates.

Este movimento inicial do qual nasce a filosofia é repetido de tempos em tempos, onde quer que surja uma nova filosofia vigorosa e digna de atenção. Cada novo filósofo que seja digno do nome se defronta inicialmente com uma perplexidade que nasce da constatação da incoerência do consenso. Ele vivencia esta insegurança de perceber que talvez todos estejam enganados, e ele também junto com todos. Novamente faz a experiência de saber que não sabe, face a um consenso social que finge que sabe. Entende-se aqui que este consenso não abrange literalmente todos os membros da coletividade, mas apenas a intelectualidade, isto é, aqueles que representam publicamente o papel de porta-vozes do consenso. Isto quer dizer que nem sempre há um acordo explícito entre o consenso —- a ideologia reinante —- e a vida social, as leis e instituições, as formas de organização da economia, etc. As épocas em que existe esse acordo são épocas de conservadorismo, de tradicionalismo; inversamente, as épocas de conflito entre o consenso ideológico e a esfera da vida prática são épocas de renovação, ou de revolução. A renovação do consenso , e a luta para mudar a sociedade em nome do novo consenso, fazem parte da história ideológica da sociedade, e, não devem ser confundidos com o movimento da consciência individual que reage ao consenso para buscar a verdade. O consenso, de fato, é menos limitante e escravizador para a consciência individual nas épocas de tradicionalismo do que nas de renovação, porque o consenso tradicional se apresenta declaradamente como uma força conservadora, fácil de identificar e criticar, ao passo que o consenso renovador ou revolucionário funciona como um Ersatz, um sucedâneo do autêntico pensamento filosófico, oferecendo aos homens, em lugar da vida intelectual, as modas intelectuais que os desviam de todo esforço pessoal. Nossa época é tão canalha que não apenas confunde maliciosamente a busca da verdade com o esforço de renovação social, fazendo da adesão a certas modas políticas a conditio sine qua non da vida intelectual, mas houve até mesmo um sujeito tido como filósofo, Antonio Gramsci, que chegou a propor formalmente a redução de toda vida intelectual à moda intelectual, à produção coletiva da ideologia revolucionária.

Cada época da história tem um corpo de crenças que é admitido pela classe letrada, tal como ela aparece na ocasião. Na Idade Média, essa classe é constituída fundamentalmente de clérigos. Hoje em dia, é a chamada comunidade acadêmica, o pessoal das ciências, somado à turma das comunicações: imprensa, TV, movimento editorial. A comunidade tem sempre um corpo de crenças que não é discutido e que serve como padrão de julgamento das novas idéias que surjam. A filosofia aparece no instante em que algum indivíduo percebe, nesse corpo de crenças, uma incoerência profunda e se sente inseguro e na necessidade de reconstruir aquilo em novas bases. Esta é uma atividade perene do espírito humano, não pára nunca. A filosofia só parará quando chegarmos a um corpo de crenças absolutamente certo a respeito de tudo o que existe. Como isto é evidentemente utópico, só Deus podendo realizar algo assim, continuaremos sempre formando novos corpos de crenças, que terão novos pontos de incoerência que necessitarão de um exame filosófico. Isto quer dizer que o movimento filosófico é inicialmente um movimento crítico, o movimento de uma crítica que deverá servir de base a uma reconstrução de novas crenças. Quando um filósofo faz isto com sucesso, os novos parâmetros que ele estabelece duram algum tempo, mas perdendo o seu teor crítico e tendendo a cristalizar-se em pensamento rotineiro, em mera ideologia. Até que, com o crescimento da humanidade, a ampliação do círculo de informações, as crenças começam a entrar novamente em contradição, e surge a necessidade de uma nova filosofia. Isto quer dizer que, embora a filosofia seja uma atividade interminável, ela não é ininterrupta, mas intermitente. A filosofia aparece e desaparece de tempos em tempos.

Raridade das filosofias autênticas

Se procurarmos na História, veremos que o número de filosofias verdadeiramente criadoras é relativamente pequeno. Colocaremos, evidentemente, o aristotelismo entre elas. Podemos considerar que este movimento que vai de Sócrates até Aristóteles, passando por Platão, é como se fosse uma curva única, o desenvolvimento de uma filosofia única, que se fecha, por assim dizer em Aristóteles e consegue durar um certo tempo. Eu colocaria como outros marcos na história do pensamento, depois de Aristóteles, Sto. Tomás de Aquino, Leibniz, Schelling e Edmund Husserl, fundador da fenomenologia. Se fosse necessário resumir toda a história da filosofia em poucos nomes, eu destacaria estes, onde todos os problemas discutidos por todos os demais estão embutidos. Cada um desses teve uma sombra, ou complementar oposto, cujo contraste ajuda a compreendê-los: o trio Sócrates-Platão-Aristóteles tem Agostinho; Tomás tem Duns Scott; Leibniz tem Kant; Schelling tem Hegel e Husserl tem Heidegger. Nos intervalos entre eles entram os estóicos, Descartes, Locke, Wronski, e isto é rigorosamente tudo: o repertório essencial das idéias. O resto é comentário ( descontando, é claro, as idéias que vêm desde fora da filosofia, por exemplo da tradição religiosa, do pensamento político, da ciência, etc. ).

Isto quer dizer, também, que a filosofia não surge a qualquer momento. Nas horas em que as crenças coletivas estão funcionando perfeitamente bem e onde as contradições internas que possam existir nelas estão ainda latentes e não chegam a causar perplexidade, — nestas horas a filosofia decai, torna-se, por assim dizer, desnecessária. É o que acontece, por exemplo, nos primeiros séculos da era cristã, quando o surgimento de um novo tipo de crença, o Cristianismo, bastou para atender às necessidades intelectuais das pessoas durante alguns séculos. Com o tempo, o próprio Cristianismo começa a perceber suas deficiências internas —- sobretudo lacunas e contradições na interpretação das Escrituras —- e começa a tentar completá-las. Daí surge um movimento filosófico dentro do Cristianismo.

A filosofia e o pensamento coletivo.

Sendo então a filosofia um movimento essencialmente crítico, que nasce da perplexidade, e sendo um movimento que parte de uma consciência individual, poderíamos perguntar: Seria possível uma filosofia coletiva? A resposta é decididamente não. Porque a filosofia parte da tentativa de unificar a totalidade da experiência humana, e isto só pode ser feito dentro do indivíduo que tem em si, juntas e coesas, todas as dimensões da vida humana e que é capaz de imediatamente confrontar, por exemplo, suas idéias com sua conduta — sua conduta com suas crenças estabelecidas — estas com seus sentimentos — estes com suas sensações corporais etc. etc. Ou seja, o movimento de que parte a filosofia supõe que exista, dentro de você, a possibilidade de unificar perante umaconsciência o conjunto das informações acessíveis naquele momento a um ser humano. Não haveria tempo de fazer isto coletivamente. Embora o diálogo, a troca de idéias, possam ser importantes na filosofia, a título de estímulo, de critério de verificação e de correção, o movimento decisivo se dá sempre no âmbito de um só indivíduo. Um dos motivos disto é que a filosofia é coerenciação, é unificação, e só o indivíduo tem em si uma unidade real, a unidade de um organismo vivente, ao passo que toda coletividade é um aglomerado de parcelas bastante separáveis, e algumas delas incomunicáveis. “Consciência coletiva” é uma força de expressão, e não o nome de um ente real. A tendência a hipostasiar a sociedade, a nação, a classe, etc., fazendo delas entes quase que fisicamente reais, nos torna cegos para a importância decisiva da consciência individual, e acabamos esperando passivamente que a “consciência coletiva” faça o serviço em nosso lugar.

A filosofia como instituição e meio social.

Aí temos um outro problema. A filosofia não é só o nome de uma prática intelectual como esta que estou descrevendo, mas é também o nome de uma disciplina escolar, acadêmica, que se registra em textos que vão sendo acumulados, formando uma vasta bibliografia, que por sua vez vai necessitando de uma tradição de interpretação e de um conjuntto de esquemas de transmissão daquilo às novas gerações. Isto faz com que a filosofia também se torne, com o tempo, uma atividade coletiva. As formas socialmente consolidadas dessa atividade influem, então, sobre o próprio conteúdo do pensamento filosófico. Por exemplo, numa faculdade de filosofia hoje, você vai ver a elaboração de uma espécie de pensamento coletivo. Penetrar no universo desta filosofia universitária é mais ou menos como penetrar em qualquer outro meio social: partido político, igreja, grupo de psicoterapia. Logo se vê que as pessoas que estão ali dentro têm certos hábitos mentais, certas reações reflexas, modos de falar, cacoetes que marcam aquela comunidade, distinguindo os de dentro e os de fora. Assim também o meio filosófico universitário. O leigo que vem de fora vai gastar bons anos de sua vida somente para adquirir este conjunto de reações que fará com que ele se sinta um membro da comunidade, e ao fazer isto estará crente de estar aprendendo filosofia, quando está apenas assimilando a casca sociológica necessária a que a filosofia como prática social continue existindo. E o que isto tudo tem a ver com filosofia? Rigorosamente nada, porque embora a filosofia sempre necessite de algum veículo social para existir, a história prova que ela não depende de nenhum deles, que tanto se faz boa e má filosofia numa hierarquia de clérigos como num grupo informal de amigos, numa organização acadêmica como numa sociedade esotérica, e que, enfim, o dinamismo da filosofia independe da sua forma social de organizar-se.

É por influência dessa base social de atuação que se formarão estilos coletivos de pensamento, que aprisionarão as mentes individuais dentro de certos esquemas de que não poderão livrar-se nunca, porque o que deveria livrá-los disto é exatamente a filosofia, ou seja, a reflexão pessoal, a que o império dos meios sobre os fins os impede de chegar. Se a reflexão pessoal é desde o início canalizada por um conjunto de reações mentais quase inconscientes, que equalizam o indivíduo com os demais membros da comunidade, então a reflexão pessoal fica impossibilitada. Por exemplo: saiu recentemente um livro cujo autor é Paulo Arantes, sobre o Departamento de Filosofia da USP. O livro chama-se Um Departamento Francês de Ultramar — título de assombrosa exatidão. Ele mostra que cinco décadas de reflexão filosófica na USP na verdade foram um eco de um conjunto de cacoetes mentais aprendidos com os primeiros professores que por ali passaram, todos de origem francesa. Alguns, aliás, excelentes filósofos, como Etienne Souriau, homem de primeira grandeza. Mas não interessa que o mestre seja grande. Interessa é que na hora em que o ensino se organiza coletivamente, se institucionaliza através de institutos, faculdades etc., corre-se o grande risco de fazer com que o ingresso nesse meio requeira um investimento psicológico demasiado grande, tão grande ou maior do que o necessário para chegar à filosofia mesma. Não é fácil você se integrar num novo meio. Quando este meio é, por sua vez, mais ou menos internacional e a convivência não é direta, é feita mais através de papéis que se trocam —- de artigos de um que são lidos por outro, que escreveu um livro que é lido pelo primeiro —-, a absorção dos cacoetes é mais difícil, porque se trata de cacoetes, por assim dizer, abstratos, e a aquisição disto é muito mais trabalhosa para a psique humana do que a cópia direta do que é visto. Mas evidentemente tudo isto não tem rigorosamente nada a ver com filosofia, assim como a embalagem de pizza não tem nada a ver com pizza.

E Sócrates, quando filosofava, a quem podia copiar? Em que meio ele estava procurando integrar-se? Que hábitos mentais ou cacoetes verbais ele estava procurando aprender para parecer filósofo? Ele simplesmente fazia o melhor que podia, usando a sua cabeça para refletir sobre certos assuntos. Isto não o tornava um indivíduo mais aceitável em determinado meio, e é por isto mesmo que ele podia filosofar livremente.

A partir do momento em que se forma um ensino mais ou menos regular de filosofia — o que acontece nessa época, na Academia Platônica e depois no chamado Liceu de Aristóteles (que na realidade veremos que não existiu efetivamente como entidade autônoma, sendo apenas um novo setor da Academia, dirigido por Aristóteles após a morte de Platão) —-, a filosofia começa a constituir um meio social, e surgem as invejas, as fofocas, a competição mesquinha, etc. Toda uma gordura mental que cerca a carne e o sangue da filosofia, e que passa por filosofia. Estes aspectos geralmente são desdenhados, mas eles nos dão o tom do pensamento do nosso tempo, onde a organização acadêmica da atividade filosófica chegou a um máximo de abrangência, eficácia e poder. Essa organização constitui uma máquina, estreitamente ligada ao meio editorial, que às vezes promove a filosofia, às vezes a sufoca. Em todo caso, a competição no meio profissional não é propícia ao desenvolvimento da filosofia, pois o decisivo nela não são as qualidades que fazem um filósofo, e sim as que fazem um hábil manejador social. Dois jornalistas que fizeram um estudo a respeito do meio acadêmico e editorial parisiense disseram que a organização moderna da vida intelectual criou um novo tipo de intelectual, o intelocrata. É o sujeito que tem poder ou influência sobre o meio acadêmico, a imprensa cultural, a indústria editorial, e que funciona como um guarda de trânsito, abrindo ou fechando o caminho às novas ambições. O intelocrata pode ser também um intelectual de valor, mas isto não é necessário para o exercício da função, que é de natureza política sobretudo. Nesse meio, os melhores saem quase sempre perdendo, pois dedicam suas energias à filosofia em detrimento da carreira. Raymond Aron diz, por exemplo, que no seu tempo só havia dois legítimos espíritos superiores entre os universitários franceses: Alexandre Kojève e Éric Weil. Mas o prestígio deles não se compara ao de um Sartre, de um Merleau-Ponty, ou mesmo ao de cabeças-de-toucinho como Althusser ou Bernard-Henry Lévy. Se isto se passa assim num país de tradição filosófica como a França, imagine então no Brasil.

A Retórica de Aristóteles no ambiente mental grego.

A influência do meio social imediato no destino das filosofias é importante para compreendermos o lugar de Aristóteles no ambiente grego. Veremos que no destino do aristotelismo pesaram muito esses fatores que mencionei.

Quando Aristóteles entrou para a Academia Platônica, com dezoito anos de idade, logo se destacou como um dos melhores alunos e foi incumbido de dar uma parte das aulas, o curso de Retórica. Este sucesso inicial foi recebido como um insulto pessoal por muitos dos seus colegas. Mais ainda; sendo a Retórica — curso que ele dava — a ciência teorética que investiga a arte da persuasão, ele logo dominou esta ciência, muito disseminada na época, e foi um dos primeiros a fazer dela uma especulação teórica. Porque a Retórica até então era apenas transmitida como técnica, como prática, e alguns levavam a vida inteira para dominar esta arte, que era a chave das ambições políticas. Aristóteles domina-a prontamente e começa a especular teoricamente. Isto consiste em perguntar: “Por que o argumento persuasivo é persuasivo?” e mesmo: “Por que um argumento logicamente fraco ou absurdo convence as pessoas, e outro que é razoável não as convence?” Aristóteles começa sua carreira examinando a Retórica, exatamente como Sócrates havia feito. Sócrates via que os oradores, políticos, conseguiam persuadir as pessoas às vezes de coisas perfeitamente absurdas. Sócrates limitou-se a demonstrar que essas idéias eram absurdas, por mais persuasivas que parecessem. Aristóteles já dá, na juventude, um primeiro passo além. Começa a investigar as causas dessa persuasividade, e formula a ciência da Retórica como uma verdadeira Psicologia da Comunicação. O livro de Retórica de Aristóteles é um dos grandes livros livros de Psicologia que a humanidade conheceu. Ora, conhecendo por um lado a técnica, e já tendo, por outro, algumas idéias científicas sobre o fenômeno da persuasividade, Aristóteles não apenas sabia produzir argumentos persuasivos, mas também conhecia os princípios teóricos em que se baseava a persuasividade dos adversários. Isto significa que, com vinte e poucos anos, ele tinha-se tornado uma espécie de terror dos retóricos, que desmontava todos os argumentos deles com a maior facilidade. Aristóteles sintetizou na sua pessoa, muito jovem, os dois papéis que mais tarde seriam denominados retor e retórico: o praticante da arte, o homem que escreve ou fala bem, e o cientista que estuda e formula a teoria da Retórica. Seus escritos de juventude, literários e retóricos na maior parte segundo parece, não chegaram até nós, mas o maior retor e retórico do mundo romano, Marco T. Cícero, os cita como exemplos de elegância e persuasividade. Tudo isso, aliado à mordacidade de certas réplicas de Aristóteles, ajuda a explicar o ambiente de hostilidade que se formou em torno dele desde muito cedo, e não consigo conceber que esta hostilidade não tenha pesado em alguma coisa entre as causas da dissolução do aristotelismo logo após a morte de Aristóteles.

Personalidades de Platão e Aristóteles. O Deus de Aristóteles.

Por outro lado, Aristóteles não tinha ambições políticas, ao contrário de Platão. Este sempre tentou interferir na política, tentou reformar o mundo, inspirou revoluções e golpes de Estado, e na sua famosa Carta Sétima declara que a obra de sua vida seria uma reforma política da Grécia. Mas Aristóteles era um temperamento completamente diferente. Aliás, esta confrontação de temperamentos é uma das coisas mais esclarecedoras quanto a todo o rumo posterior do pensamento ocidental. Porque, como disse um grande historiador da Filosofia, Arthur Lovejoy, “toda a história do pensamento ocidental não é nada mais que um conjunto de notas de rodapé a Platão e Aristóteles”. Sendo assim, desde que o nosso pensamento é sustentado por estas duas grandes colunas, confrontá-los é uma das principais ocupações da mente ocidental há dois mil anos. Nesta confrontação, os traços de personalidade são muitíssimo importantes. Duas personalidades de imensa envergadura que marcarão não apenas dois estilos de pensar, mas dois estilos de ser. Nesta confrontação, vemos que Aristóteles difere de Platão e se aproxima muito de Sócrates, pela sua total falta de ambição de interferir na ordem das coisas deste mundo, e pela sua total dedicação ao saber enquanto tal. Para Aristóteles, não havia ocupação mais digna do homem do que buscar conhecer, buscar compreender. Ele colocava esta atividade teorética —- a palavra “teorético” vem do verbo theorein, que quer dizer olhar, ver, contemplar — tão acima das outras que, no entender dele, era a única atividade do próprio Deus. O Deus aristotélico é um Deus cuja atividade é inteiramente de ordem teorética. Deus olha, vê, contempla, compreende, e nós vivemos dentro desta atmosfera intelectual divina, somos pensamentos divinos, de algum modo. Deus age, mas na forma da pura contemplação, e portanto, a ação de Deus tem aquela rapidez, aquela instantaneidade própria da inteligência — o ato de intelecção é instantâneo, e assim também os atos divinos, pois não supõem a mediação de um instrumento.

Posição social de Aristóteles. Hostilidade do meio ateniense.

Prosseguindo na confrontação, vamos ver que Platão era um filho da nobreza grega, um homem que desde a juventude foi cercado de admiração, não só por sua origem — família riquíssima — mas também pela beleza pessoal. Era um homem grande, atlético, rico, bonito, cheio de ambições. Aristóteles, ao contrário, era de origem estrangeira. A cidade de Estagira, onde nasceu, era uma colônia macedônica. Ele chega a Atenas, por volta dos dezoito anos, depois da morte dos pais. Herdou certa quantidade de dinheiro que lhe permitiu ser independente, sem chegar a ser um milionário. Tinha dinheiro para se sustentar sem precisar trabalhar, podendo se dedicar totalmente ao estudo. Entra na Academia ainda aos dezoito anos e por volta dos 23, 24 já é um sucesso lá dentro. Mas em primeiro lugar, num meio aristocrático o dinheiro, por si, não dá ingresso nas classes superiores. Para piorar, Aristóteles era um estrangeiro. Fica difícil imaginar, num país como o Brasil onde o estrangeiro é tratado como príncipe e o compatriota como um cachorro, a intensidade, a força do preconceito grego contra o estrangeiro. Este, em Atenas não tinha direito a nada. Estava pior do que um turco em Berlim. O simples fato de poder estar ali já era considerado um grandissíssimo favor; mas o estrangeiro não votava, não participava da política, não tinha direito a nada. Além disso, Aristóteles não era membro da nobreza, mas apenas descendente de uma família de médicos. Seu pai tinha sido médico do rei Felipe da Macedônia e se dizia que sua família descendia do próprio deus Esculápio, ou Asclépio — o deus grego fundador da medicina — pelo fato de terem tido muitos médicos no correr de gerações; mas todas as famílias de médicos alegavam a mesma coisa. Os médicos tinham posição de certo prestígio, mas não se comparavam à classe dominante. Eram apenas servidores de luxo. Aristóteles, então, do ponto de vista do meio ateniense, era um homem de origem plebéia, estrangeira, e que tinha entre suas características pessoais um senso de humor particularmente ácido, sarcástico. Também não tinha a beleza física —- era de baixa estatura, magro, e embora andasse muito elegantemente vestido jamais seria confundido com um membro da jeunesse dorée ateniense. Este estrangeiro incômodo, muito jovem se torna o dominador da ciência da retórica e é nomeado para dar os cursos na Academia.

As Artes Liberais na Academia platônica. Lugar da Retórica.

Nesse tempo o ensino já tinha começado grosso modo a se organizar segundo uma fórmula que duraria mais de mil anos, onde as matérias introdutórias consistiam no Trivium e no Quadrivium (conjunto de três disciplinas que lidam com a linguagem —- gramática, lógica ou dialética e retórica —-; e de quatro que lidam com números —- aritmética, geometria, música e astrologia ou astronomia). As matérias elementares eram estas. Quando Aristóteles é nomeado professor de retórica, a importância deste fato não deve ser hipertrofiada, já que a retórica é apenas uma das ciências elementares. O domínio destas sete disciplinas foi considerado desde a fundação da Academia de Platão até quase o ano de 1500, isto é, por quase dois mil anos, como condição básica para o ingresso nos estudos filosóficos. Na Idade Média européia, o sistema adquirirá uma grande estabilidade. Os estudos começavam na adolescência, pelo Trivium e Quadrivium, que duravam mais ou menos dez anos de aprendizado, depois o sujeito entrava numa das três faculdades — Direito, Medicina ou Filosofia. Nesta, o tempo de aprendizado até o aluno chegar a um estado comparável ao que hoje se chama professor pleno era de aproximadamente vinte e cinco anos —- o tempo que um professor universitário brasileiro leva para chegar à aposentadoria. Esse sistema começa a se formalizar no tempo de Platão, e não vejo a menor chance de um sujeito entender a filosofia antiga e medieval se não partir de um estudo das Artes Liberais —- Trivium e Quadrivium —-, que, constituindo a base do ensino, expressavam o fundo comum da cosmovisão mais claramente do que as formas superiores de atividade intelectual. Também não se pode esquecer que, nesse panorama, as sete disciplinas não tinham individualmente os significados que têm hoje, mas eram carregadas de nexos simbólicos e mitológicos que dão o seu verdadeiro sentido na cultura antiga. Por isto é que simplesmente não posso levar a sério um historiador de filosofia antiga ou medieval que, por exemplo, não conheça a fundo o simbolismo astrológico, que constituía então como que uma chave da cosmovisão. E não se trata só de conhecê-lo desde fora, porque o autêntico simbolismo, como a autêntica poesia, não se rende a um estudo meramente exterior, mas requer uma compreensão personalizada. Os melhores historiadores da filosofia antiga e medieval costumam ser, por isto, aqueles que também têm interesses religiosos e estéticos, que facilitam a penetração naquele universo.

Dentro da Academia, a retórica não estava entre as disciplinas mais nobres, pois cedia lugar às disciplinas filosóficas propriamente ditas. Aliás, considerando-se que a filosofia nasce de um movimento de oposição aos sofistas —- professores de retórica —-, esta tendia a ser, dentro da Academia, um pouco desprezada. Ela é a arte de persuadir, não a de encontrar a verdade; o que torna o argumento persuasivo não é ele ser verídico, mas é ele encontrar uma ressonância no público. A ressonância ou persuasividade do argumento depende exclusivamente de fatores psicológicos e sociológicos que predispõem o público a aceitá-lo, e depende também de que o retórico conheça minuciosamente esta predisposição e saiba usá-la. A persuasão retórica nada tem a ver com a veracidade. Mas Aristóteles não se limita a dominar a retórica, e faz as primeiras especulações científicas a respeito. A especulação científica sobre uma técnica é ao mesmo tempo uma defesa contra esta técnica. Uma coisa é dominar uma técnica. Outra é ter a noção teorética de como ela funciona, de por que funciona. Com isto você fica sabendo também quais são os limites da técnica. Esta especulação que Aristóteles começa muito cedo e que o leva depois a constituir o primeiro tratado científico de retórica, o torna também um grande retor, um escritor elegante e persuasivo. Isto estabelece uma distinção que será mais tarde consagrada. Retor é aquele que domina a técnica da retórica, que sabe fazer um discurso e ser persuasivo. Retórico é aquele que estuda cientificamente a técnica do retor, podendo ele próprio ser um retor ou não. Mas é evidente que o estudo teorético desta técnica e a sua aplicação têm resultados completamente diferentes. Seria mais ou menos como dominar, hoje em dia, a arte da propaganda e fazer um estudo científico de por quê a propaganda penetra e é aceita nas consciências. Evidentemente o estudo teorético levaria a ver esta técnica “pelas costas” e a compreendê-la melhor do que o mero praticante, e a saber também, portanto, neutralizá-la. Suponho que, na linha de uma investigação iniciada por Sócrates, o próprio Platão tenha determinado a Aristóteles o estudo científico dos procedimentos retóricos, de modo a completar a superação da retórica na dialética, dando uma forma acabada ao que Sócrates tinha feito informalmente. De modo que há, na Academia, um esforço de dar mais rigor à demonstração, a ir da persuasão à certeza apodíctica, e, neste movimento, Aristóteles representará o ponto culminante.

Platão e Aristóteles ante a opinião pública ateniense.

Como resultado, então, em parte por seu sucesso, em parte por esta orientação que está imprimindo a seus estudos, em parte por ser um estrangeiro metido onde não devia, e ainda por motivo de intrigas e invejas entre os discípulos de Platão, Aristóteles viverá maus bocados em Atenas. Platão também enfrentou dificuldades, mas no Exterior, onde se meteu em conspirações, sendo preso, vendido como escravo e resgatado por seus discípulos. Mas em Atenas ele sempre gozou de grande prestígio e, ao morrer, era como que um herói nacional, uma celebridade cercada de honras, e que praticamente não tinha inimigos. Aristóteles, ao contrário, enfrenta inimizades, oposição, desde o início de sua vida, jamais chega a formar um círculo de discípulos capaz de prosseguir sua obra num sentido fiel ao seu intuito e digno do seu nível, exceto um único, que é Teofrasto. Nunca encontra em Atenas senão um ambiente de relativa hostilidade, morre no exílio e nunca encontra uma repercussão pública muito grande. Claro que ele não dava importância, a isto pelo seu próprio temperamento, alheio à atividade política. O ideal dele seria viver relativamente isolado, podendo prosseguir seus estudos sem ter que se defrontar com a política do dia. No entanto, os conflitos políticos o perseguem ao longo de toda a sua vida. Principalmente porquê, originário de uma colônia macedônica, sendo filho do médico do rei da Macedônia e tendo-se tornado preceptor de Alexandre, filho de Felipe, imperador macedônico, quando se instala mais tarde uma guerra entre Atenas e a Macedônia, Aristóteles, embora já não tivesse nenhuma ligação com a Macedônia há algum tempo, fica evidentemente numa posição suspeita; é perseguido e tem de fugir para o exílio. De modo que não foi uma vida fácil, e um elemento constante desta vida é o contraste entre o interesse puramente intelectual deste homem e a hostilidade política e social que o cerca durante mais ou menos toda a vida, e contra a qual ele não deixa uma única palavra de lamentação ou de recriminação. Não porque fosse insensível às injustiças, já que muitas vezes protestou contra perseguições sofridas por amigos seus. as talvez ele fosse muito discreto para lamentar em público suas desventuras pessoais.

A intuição básica de Aristóteles: totalidade e organicidade.

O espírito mais reflexivo e científico de Aristóteles faz com que ele imprima ao seu ensinamento, desde o início, um sentido de pesquisa que torna o seu Liceu um depósito de conhecimentos sobre todas as disciplinas possíveis e imagináveis e o torna o primeiro centro organizado de pesquisa que conhecemos na história do ocidente. Após ter sido preceptor de Alexandre, Aristóteles recebe dele um dinheiro considerável, que lhe permite contratar um exército de pessoas para que viajem e tragam para ele as informações de que necessita: sobre geografia, geologia, vida dos animais, política e leis dos demais países, etc. etc.. Nesse sentido, Aristóteles pôde materializar o intuito que é central em toda a sua obra — o de organizar o conhecimento e fazer com que o conjunto das ciências se torne um sistema das ciências. Busca, assim, desde o princípio, um padrão de coerência na organização dos conhecimentos, infinitamente mais rigoroso do que o que tinha sido exigido por Platão. Quando estudamos a obra de Platão, vemos que tudo que ele escreveu vem de inspirações que teve na juventude e que lhe foram, por assim dizer, inoculadas por Sócrates bem pela herança pitagórica. A intuição básica de Platão, como a de Sócrates e dos pitagóricos, é a do contraste entre dois tipos de objeto do conhecimento: 1) os objetos dos sentidos que estão em permanente mutação e se fazem e desfazem diante de nós, dia a dia, como de resto, nós mesmos mudamos, nos fazemos e desfazemos, nosso corpo cresce, muda, envelhece e morre; 2) os objetos da geometria, das matemáticas, que tinham a característica da perenidade, estabilidade, constância, obediência à regularidade de leis que determinam implacavelmente, e imutavelmente, as duas relações. Uma vez estabelecida uma relação matemática, constataram esses filósofos, ela se reproduzia infinitamente sem que nada pudesse alterá-la ou abalá-la. Este contraste, uma da primeiras noções transmitidas por Sócrates, desperta em Platão a noção de que o mundo físico estaria envolvido numa rede de leis e proporções matemáticas que constituiriam o verdadeiro segredo da realidade, a estrutura invisível, mas rígida, do inconstante mundo visível. Esta é a intuição básica em Platão. As relações matemáticas constituem a parte superior do que ele chama de mundo das idéias. Esta idéia platônica penetrará tão fundo na consciência humana que dois mil anos depois, quando surgia a física moderna — Newton, Galileu, Descartes, Kepler — é novamente a mesma idéia de encontrar o fundo matemático no qual se apóia a realidade sensível que inspirará os cientistas. Por mais rico que seja o universo platônico, vemos que todo ele não passa de uma vasta especulação em torno desta idéia que é, no fundo, de origem pitagórica: de que os números e relações matemáticas são a verdadeira essência da realidade. De que o mundo, tal como se apresenta a nós, é de certo modo ilusório ou falso — não totalmente, mas apenas uma expressão parcial de um segredo que, na sua essência, é matemático. Toda a obra de Platão é uma construção feita em torno desta idéia básica.

A obra de Aristóteles obedece desde o início a outro intuito. Ele percebe que não é possível existirem apenas dois mundos — um mais ou menos ilusório, e outro um pouco mais real — mas que existem muitas faixas de realidade, formando um tecido enormemente complexo mas dotado, sempre, de unidade e coesão. E será esta complexidade do real, ao mesmo tempo múltiplo nos seus nos seus planos, aspectos, níveis etc. e constituindo um todo coeso, será esta idéia da unidade na variedade que orientará todos os esforços de Aristóteles desde o início. Daí sua idéia de um sistema do conhecimento. O conhecimento tem de ser um sistema, ou até, mais propriamente um organismo. Um organismo é um conjunto de órgãos diferentes entre si mas que são todos coordenados para uma certa função. Separados desta função do organismo total, não fazem sentido algum. Também Aristóteles concebe a idéia de que esta totalidade orgânica, que é o mundo, deveria por outro lado ser refletida no sistema das ciências, de modo que o conhecimento formasse uma unidade que, como um organismo vivente, pode crescer e transformar-se sem perder sua unidade. E com isto, inventa outra idéia que penetrará muito fundo na mente humana — talvez mais que a idéia dos padrões matemáticos de Platão — que é o que podemos chamar de evolução orgânica, complementar à de totalidade orgânica. Tão fundo como a idéia platônica penetrou no setor da astronomia e da física, a idéia de Aristóteles penetrará fundo nas ciências da natureza terrestre, na biologia, na História, na Estética e mais tarde no que hoje chamamos de ciências humanas ou ciências sociais. Praticamente todos os esforços das ciências humanas, desde que existem, é no sentido de conseguirem se organizar como totalidade orgânica, mais ou menos no sentido em que Aristóteles organizou o conjunto das ciências no seu tempo. A idéia platônica dos padrões matemáticos rende o seu máximo, alcança o seu pleno rendimento na física clássica e na nova astronomia de Kepler. Kepler, Galileu, Newton representam o auge da matematização da realidade. Mas a idéia aristotélica da totalidade orgânica, se bem que exerça grande influência, até hoje ainda não rendeu todos os seus frutos. Hoje em dia, o holismo é uma nova tentativa de organizar o sistema das ciências segundo a idéia da totalidade orgânica. Esta idéia não está realizada ainda. Por isto este curso se chama “Pensamento e Atualidade de Aristóteles”. Quando vemos hoje um esforço gigantesco no sentido de emendar as ciências humanas com as naturais, como se vê, por exemplo, na obra deste grande antropólogo Edgar Morin, todo o esforço dele e de toda a corrente que representa não é nada mais que a tentativa de devolver ao sistema das ciências aquela organicidade sistêmica que Aristóteles tinha lhes imprimido no começo, e que para nós se perdeu de crise em crise. Sendo assim, vemos que a obra de Aristóteles ainda está rendendo frutos e este é o motivo principal por que temos de estudá-la. Praticamente tudo o que está acontecendo no mundo das ciências hoje só pode ser compreendido como eco distante desta inspiração aristotélica do sistema das ciências, de dar às ciências uma organicidade enciclopédica ( kyklos = círculo, que representa totalidade, e paidos = educação, cultura, formação da mente humana ), todas concorrendo para um mesmo fim, como ocorre com os órgãos do nosso corpo.

Mas tudo isso não quer dizer que o legado aristotélico seja por toda parte bem recebido com afetuosa gratidão. Esse legado parece que não pode ser adquirido senão através do conflito —- dialeticamente, no sentido hegeliano do termo. Do mesmo modo que Aristóteles foi muito combatido em vida, vamos ver que uma discussão com Aristóteles, muitas vezes amarga e cheia de recriminações tem acompanhado a história do pensamento ocidental há dois mil anos. Mas nem todas as discussões foram construtivas. As tentativas de destruir Aristóteles, de suprimir o seu legado da memória humana também foram muitas, ao longo da história. Aí já não se trata da legítima contestação científica, que Aristóteles apreciava tanto que fez dela uma técnica ( a dialética ), e sim de manifestações de ódio irracional à inteligência mesma. Mas quando crêem tê-lo matado de um lado, ele ressurge de outro. De certo modo, Aristóteles tem constituído para a civilização ocidental um fantasma, como o de Merlin, “um sonho para alguns e um pesadelo para outros” , do qual ninguém se livra completamente e que, mais dia menos dia, cruzará o caminho de quem busca a verdade, para ajudá-lo mas também para testá-lo. Daí o sentimento ambíguo, de amor-ódio, que ele inspira a muitos. Na verdade, isso não acontece só no Ocidente, mas também no Oriente. No mundo islâmico há escolas de espiritualidade que vêem Aristóteles como um profeta, um enviado de Deus, e outras que o consideram um tentador diabólico. A Igreja ortodoxa russa chegou a proibir a sua leitura, enquanto Sto. Tomás o considerava o príncipe dos filósofos. Após dois mil anos, é melhor tentar achar com ele um modus vivendi. Para mim, a questão está resolvida: considero-o o melhor dos mestres, o mais honesto, o mais sincero, o mais sensato, o mais humano, inclusive em seus defeitos mais óbvios.

Aula I – Parte II

Comentários a Simone Weil

Olavo de Carvalho

Seminário de Filosofia, 9 de janeiro de 1994

A linguagem da mística recorre com freqüência aos paradoxos, que não podem expressar verdade alguma exceto metaforicamente, o que vale dizer: ambiguamente. E quantas vezes, ao longo da História, o amor a Deus não tem se pervertido num amor à ambigüidade, numa rejeição das verdades mais patentes, num rebuscamento de contradições artificiais e desnecessárias! Que esta sofística piedosa tenha o alto propósito de indispor o descrente contra sua própria razão para atraí-lo aos braços da fé, ninguém nega. Que, porém, ela arrisque ter os resultados mais decepcionantes, entre os quais o de confundir o pregador mesmo, é também um fato, ainda que quase nunca reconhecido. Que, enfim, ela possa servir ao demônio tanto quanto pretende servir a Deus, eis aí o que soará como um escândalo, mas que a história do pensamento Ocidental confirma em toda a linha, e que aliás já fora anunciado por Jesus, ao advertir: “Seja o vosso discurso: sim, simnão, não — o mais é conversa do maligno.”

Todos os desvarios da dialética hegeliana, marxista e nietzscheana foram assim prefigurados pela teologia apofática1.

Deus, afirma a Bíblia, confunde a sabedoria dos sábios. Mas será lícito que os sábios se ponham a confundir-se a si mesmos, a pretexto de arrebatamento religioso?

Não bastam, para deslumbrar-nos, os mistérios supremos cuja solução Deus guarda para si? Será preciso semear de paradoxos artificiosos o caminho dos homens sobre a Terra? E que valeriam os mistérios supremos, se não tivessem solução nem mesmo para Deus? Os mistérios valem pelo Sentido, não pela misteriosidade. Eis aí o véu sutilíssimo que separa a mística da mistificação. E todo escrito místico, por natureza, contém sementes de mistificação — os de Simone Weil como qualquer outro. Cabe ao comentário filosófico separar o joio do trigo.

Nas páginas que seguem, vou citando e comentando, sem um plano prévio, as passagens de escritos místicos de Simone Weil onde essa separação é necessária.

Começo pelo trecho que diz:

O bem é impossível. — Mas o homem tem sempre a imaginação à sua disposição para ocultar de si essa impossibilidade do bem em cada caso particular (basta, para cada caso particular que não nos esmague, velar uma parte do mal e acrescentar um bem fictício — e alguns podem fazê-lo, mesmo se eles mesmos são esmagados) e, no mesmo ato, para ocultar de si “quanto a essência do necessário difere da do bem” e impedir-se de verdadeiramente encontrar Deus, que não é outra coisa senão o bem mesmo, o qual não se encontra em parte alguma neste mundo2.

Se não existe um bem em nenhum caso particular, e se de outro lado Deus é “o bem mesmo”, isto é, o bem essencial, então todos os bens particulares são ilusórios e o único bem autêntico é o universal. Mas este universal, se não se encarna em nenhum bem particular, é mera forma conceptual vazia.

Ou existe algum bem neste mundo, ainda que parcial e provisório, ou Deus é uma Idéia platônica.

Simone confunde o parcial com o ilusório, o impermanente com o irreal, o temporal com o nada. Ou faz que confunde, para confundir o descrente, e acaba por se confundir a si mesma.

O desejo é impossível; ele destrói seu objeto. Nem os amantes podem ser um, nem Narciso ser dois. Don Juan, Narciso. Porque desejar alguma coisa é impossível, é preciso desejar o nada3.

Dizer que os amantes buscam a unidade é mera figura de linguagem, que só pode ser levada ao pé da letra por alguém totalmente alheio à experiência do amor carnal. O amante deseja dar-se à amada ao mesmo tempo que a recebe; não desaparecer nela enquanto ela desaparece nele. O amor carnal não é extinção, mas conservação, revigoramento: conservação da espécie, revigoramento do indivíduo e dos laços conjugais. Nem Don Juan nem Narciso têm a menor idéia do que seja o amor carnal. Nem Simone.

A desaparição mútua é precisamente a definição do desejo perverso, isento da mínima parcela de generosidade e sentimento de proteção4.

Nossa vida é impossibilidade, absurdidade. Cada coisa que queremos é contraditória com as condições ou as conseqüências que lhe estão ligadas, cada afirmação que colocamos implica a afirmação contrária, todos os nossos sentimentos estão mesclados a seus contrários. É que somos contradição, sendo criaturas, sendo Deus e infinitamente outros que Deus5.

A resposta é, naturalmente: sim e não. Se nossa vida é impossibilidade, absurdidade, segue-se, pelo princípio de que cada afirmação implica a afirmação contrária, a conclusão de que por isso mesmo nossa vida é possibilidade, sentido.

A realidade é que passamos constantemente do sentimento de absurdidade ao sentimento de propósito e sentido, e esta oscilação mesma não pode ser compreendida como absurdidade, sob pena de não podermos mais conceber a idéia de sentido nem mesmo na acepção platônica de uma aspiração extramundana.

“Sentido” e “absurdo”, tomados como expressões de conceitos abstratos universais, são termos contraditórios. Mas, quando aplicados a qualquer conteúdo concreto — mesmo à expressão da totalidade da nossa experiência vivida —, tornam-se apenas contrários, o que permite dialetizá-los como o faz Simone. Apenas, a conclusão desta dialética — conclusão que Simone rejeita, com plena inconseqüência — é que toda coisa tem dois lados, um sensato, outro absurdo, e que a olhamos por um ou por outro conforme uma inclinação passageira nossa. Não havendo um conceito-síntese entre sensato e absurdo, então somos levados à seguinte alternativa: se procuramos resolver a questão pelo lado ontológico e universal, os conceitos voltam a ser contraditórios e, neste caso, somos obrigados a resolver o absurdo no sensato ou a proclamar a absurdidade da questão mesma; se, porém, pretendemos permanecer no plano da expressão de sentimentos pessoais, podemos, conforme a inclinação do momento, proclamar que tudo é absurdo, mas estaremos apenas universalizando arbitrariamente uma impressão que será fatalmente passageira e será seguida por sua contrária.

O Sentido, enfim, é uma necessidade absoluta, e a existência mesma do sentimento de absurdidade é a sua maior prova.

Só a contradição fornece a prova de que não somos tudo. A contradição é nossa miséria, e o sentimento de nossa miséria é o sentimento da realidade. Pois nossa miséria, não a fabricamos. Ela é verdadeira. Eis por que é preciso adorá-la. Todo o resto é imaginário6.

Se a primeira dessas sentenças parecia resolver a questão colocada no parágrafo anterior, a segunda põe tudo a perder novamente ao absolutizar a impressão passageira de absurdidade, impressão que, como vimos, só é tornada possível pela sua alternância com a impressão contrária, e que, enfim, somente nesta se resolve. Se o sentimento de nossa miséria é o sentimento da realidade, de toda a realidade, e se tudo o mais é imaginário, então também Deus é imaginário.

A impossibilidade é a porta para o sobrenatural. Não se pode senão bater. É um outro quem abre7.

Só há dois tipos de impossibilidade: impossibilidade lógica, ou absoluta; e impossibilidade física, ou relativa. O sobrenatural não viola os limites da impossibilidade absoluta, os limites da identidade, pois é ele mesmo a Identidade, isto é, a absoluta possibilidade (é neste sentido que Sto. Tomás diz que Deus não pode revogar a lógica de Aristóteles). Quanto à impossibilidade física, só a conhecemos de maneiras parciais e transitórias, simbólicas, na verdade; não podemos experimentá-la extensivamente e só a vivenciamos em pura imaginação.

Logo, só há duas maneiras de atingir o limite da impossibilidade: ou nos chocamos realmente contra umaimpossibilidade particular e contingente (o paralítico, por exemplo, que tenta mover-se), ou concebemos imaginativamente uma impossibilidade geral e universal. Em qual dessas duas portas é preciso bater? Se é nesta, então Deus é a solução imaginária a um problema imaginário. Se é naquela, então o fato de alguém abrir a porta é realmente um milagre, a dissolução sobrenatural de uma impossibilidade física determinada. Se é assim, somente um milagre no sentido físico do termo — uma superação de limites físicos naturalmente intransponíveis — pode nos abrir a porta que leva a Deus; e, se assim é, o chamado “milagre da fé” é apenas uma metáfora, um modo de dizer, pois é a superação subjetiva de um obstáculo imaginário e não há milagre real em mudar simplesmente de idéia. De outro lado, Cristo condena com veemência aquele que exige milagres. Logo, não é possível, ou pelo menos é fundamentalmente anticristão, que o confronto com a impossibilidade seja a única porta para o sobrenatural.

É preciso tocar a impossibilidade para sair do sonho. Não há impossibilidade em sonho8.

Novamente, a primeira sentença enuncia uma verdade psicológica de experiência corrente, para, na segunda, saltarmos para uma generalização falsa.

É verdade que o senso da impossibilidade falta em certas pessoas que vivem em sonho, e que a admissão da impossibilidade pode libertá-las do sonho.

Mas há sonhos que expressam diretamente nosso sentimento de impossibilidade, como por exemplo quando uma distância se multiplica à medida que corremos para alcançá-la. Não se trata aí de mera impotência ocasional, mas de uma viva experiência de impossibilidade física.

O que falta no sonho não é o sentimento de impossibilidade, mas a avaliação das gradações e transições entre o possível e o impossível; é o senso da probabilidade, ou plausibilidade, ou razoabilidade.

Inversa e complementarmente, o sentimento de impossibilidade geral, quando vivido em vigília, é apenas um sonho, um sonho mau do qual procuramos sair mediante o apelo a um sonho bom chamado Deus. Novamente, a solução imaginária de um problema imaginário. Os depressivos vivem num perpétuo sonho de impossibilidade, e nem por isto são mais realistas do que os maníacos e os visionários.

Extinguir o senso da plausibilidade para levar o homem ao desespero e em seguida oferecer-lhe a saída de emergência denominada “fé” pode ser um expediente retórico piedoso, mas filosoficamente é inadmissível; ademais, é um artifício gurdjieffiano: chegar à verdade através da mentira, como se isto fosse possível, como se a verdade assim encontrada não estivesse viciada pela origem espúria. Os pregadores católicos abusam desse expediente, sem notar que corrompem a fé. Bilinguis maledictus, afinal de contas. Da minha parte, prefiro o mandamento corânico: Chegarás à verdade através da verdade.

“Nosso Pai, que está nos céus.” Há nisto uma espécie de humor. É vosso pai, mas tentai um pouco ir buscá-lo lá em cima! Somos tão exatamente incapazes de decolar quanto um verme da terra. E como, da Sua parte, viria Ele até nós sem descer? Não há maneira nenhuma de representar uma relação entre Deus e o homem que não seja tão ininteligível quanto a Encarnação. A Encarnação faz esplender essa ininteligibilidade. Ela é a maneira mais concreta de pensar esse descenso impossível.9

É uma ofensa à dignidade da inteligência humana que um pensador cristão nos peça para acreditar na Encarnação como fato, ao mesmo tempo que nos proíbe de aceitá-la como possibilidade. O real é, por definição, possível. A Encarnação é possível, uma vez que aconteceu. Mas, mesmo que não tivesse acontecido, não teria cabimento negar sua possibilidade teórica, e isto por duas razões esmagadoras: primeiro, ela é exigida pelo conceito mesmo de Onipotência; segundo, ela é anunciada pelo Antigo Testamento.

A Encarnação compreendida — ou mal compreendida — como fato impossível é a negação do mundo criado, e não sua perfeição. Se jogamos o fato da Encarnação contra o senso da possibilidade lógica, destruímos, no ato, toda metafísica cristã e, de quebra, toda semente de uma cosmologia cristã. Da noção verdadeira de um Deus supracósmico, passamos à de um Deus anticósmico, um monstro absurdo a espumar de ódio contra a obra de suas mãos e a proclamar-se tanto mais infalível quanto mais peca contra si mesmo. Há uma semente de diabolismo num supracosmismo levado às últimas conseqüências — e a Encarnação é ela mesma a resposta cabal de Deus a toda revolta anticósmica10.

A Encarnação não somente é possível, como é possível eminenter: ela é a condição de possibilidade mesma da existência cósmica. Se Deus não pode ser homem, simplesmente não pode haver homens. A analogia com a mais vulgar experiência humana basta para ilustrá-lo: que é que impede um autor de fazer-se personagem entre os personagens que cria?

“En la tarde del 5 de enero, de pie en el umbral del café de Guido e Junín, Bruno vio venir a Sabato…”11

O sentimento de implausibilidade que o ateu experimenta ante a idéia de Encarnação é tomado por Simone como expressão plena e final da concepção humana do cosmos, numa ampliação universalizante de impressões passageiras, tão típica aliás do modus eloquendi francês em geral. E de um simples modo oblíquo de falar tiram-se, muito francesamente, as mais portentosas conseqüências filosóficas…

Não vejo o menor sentido em confundir o sublime com o impossível, a não ser a título de figura de linguagem. Imagens do sublime que para o ateu representam impossibilidades são, aliás, freqüentes na simbólica religiosa em geral. Não é menos implausível para o ateu no meio cristão a idéia de Encarnação — no seu duplo aspecto de parto virginal e de nascimento do homem-deus — do que, no mundo islâmico, a possibilidade de um analfabeto escrever o mais belo dos livros e de este livro ter-lhe sido ditado por Deus. Mas, para quem tem um pingo de senso metafísico, nenhuma dessas coisas tem de ser impossível para ser sublime, nem tem de ser absurda para ser verdadeira.

Roma, é o grande animal ateu, materialista, que não adora senão a si. Israel, é o grande animal religioso. Nem um nem o outro são amáveis. O grande animal é sempre repugnante.12

O Ocidente cristão é o grande animal que se faz de crucificado e tomba com todo o peso da sua cruz salvadora sobre os ombros de povos que não pediram para ser salvos de nada exceto do invasor cristão.

O cristianismo sempre culpa as demais religiões pelos males das civilizações não-cristãs, mas joga seus próprios males na conta dos resíduos pré-cristãos ou anticristãos da civilização do Ocidente. Se os muçulmanos cortam as mãos dos ladrões, é porque sua religião é bárbara e cruel. Se Afonso de Albuquerque corta orelhas e narizes de persas inofensivos, é porque não é suficientemente cristão ainda que seja o braço armado da Igreja. A Inquisição é um desvio acidental, mas a queima da biblioteca de Alexandria manifesta a essência do Islam.

É sempre assim no pensamento coletivista, sempre falso ainda quando fundado em verdades reveladas. Cito meu próprio Diário:

“Princípios auto-evidentes para o estudo comparativo das religiões:

“1. Comparar ideais com ideais, fatos com fatos. O sectário, em vez disto, compara os ideais de sua religião com os fatos históricos da outra, o que vale dizer: a essência de minha religião está nas suas intenções elevadas, e os erros cometidos em seu nome são acidentes humanos que não a comprometem; a essência da outra religião está nos erros cometidos em seu nome, e seus elevados ideais são apenas um disfarce ideológico.

“É assim que as violências cometidas pela Igreja são absolvidas como acidentes irrelevantes, e as praticadas pelos muçulmanos tornaram-se expressão direta da natureza sanguinária da fé islâmica. Do mesmo modo, S. H. Nasr, em Ideals and Realities of Islam, não compara o mundo tradicional islâmico à civilização moderna, mas os sublimes ideais do primeiro à deprimente realidade histórica da segunda.

“2. Pelos frutos os conhecereis. Sociologicamente, pelo menos, importa menos o dogma explicito e genérico do que sua interpretação prática pelos grupos que, na História, representam essa religião em cada fase. Por exemplo, no início do século XIX, um homem podia ser aceito como bom católico sem que demonstrasse qualquer amor ao próximo; mas não o seria sem demonstrar, ao menos em palavras, fidelidade à monarquia e ódio à Revolução. O catolicismo dessa fase consiste em reacionarismo principalmente. Do mesmo modo, pode-se ser um bom “irmão muçulmano” sem aceitar — a exemplo do Profeta — os cristãos como irmãos de crença; mas não se pode sê-lo sem ódio ao “grande Satã” norte-americano.”13

Para respeitar por exemplo as pátrias estrangeiras, é preciso fazer da própria pátria, não um ídolo, mas uma escala em direção a Deus.14

O mesmo princípio vale para as religiões e civilizações: se não respeito as religiões estrangeiras tanto quanto a minha, é porque faço da minha um ídolo em vez de uma escala em direção a Deus15. A religião torna-se um fim em si, com seus ritos, suas pompas, sua retórica mística adornada de paradoxos rutilantes, e já não aceita Deus quando entra pela porta da inteligência metafísica, sem licença eclesiástica, ou simplesmente pela porta das outras religiões. Mas “aquilo que fizerdes ao menor destes, a Mim o fizestes”.

Tudo o que é apreendido pelas faculdades naturais é hipotético. Só o amor sobrenatural põe.16

Logo, o sentimento de absurdidade é meramente hipotético, e o amor sobrenatural o resolve pela restauração do Sentido. Mas trata-se aí do amor sobrenatural que Deus tem por nós, e não do que nós temos por ele, e muito menos daquele que toma a forma específica da fé cristã — pois Deus deu o entendimento intuitivo do Sentido a todos os homens, pela ação do Espírito Santo, e não só aos cristãos. Do contrário, todos, menos os cristãos, naufragariam na absurdidade até a chegada do primeiro pregador cristão.

O amor aos paradoxos é uma forma de idolatria bem querida dos místicos. Em nome do amor a Deus, eles se persuadem de não entender aquilo que entendem perfeitamente bem, para poderem deleitar-se no sentimento de absurdo e desfrutarem de um alívio factício adornado do prestígio de um milagre da fé.

Não é o erro que constitui o pecado mortal, mas o grau de luz que está na alma quando o erro, qualquer que seja, é cometido.17

Sim, porém mais perigosa que o pecado mortal não será a tentação de livrar-nos da luz para evitar que o pecado se torne mortal? Da minha parte, prefiro um milhão de pecados mortais ao pecado contra o Espírito; em caso de não poder sem grave dilaceração interior vencer uma tentação vulgar, prefiro pecar conscientemente, e arrepender-me conscientemente, do que reprimir a consciência moral para poder pecar com inocência — aquele tipo de inocência perversa que, como bem viu Igor Caruso, está na origem das neuroses e psicoses (índices, neste sentido, de ruptura com o Espírito). E se a humanidade, por dois milênios, ouviu graves advertências contra o pecado mortal, sem receber uma quota nem de longe equivalente de ensinamentos quanto ao pecado contra o Espírito, não será quase inevitável que a rejeição da luz acabe prevalecendo?

Tome-se, por exemplo, o falso testemunho. Não será melhor perante Deus uma pessoa mentir conscientemente, perfidamente, maquiavelicamente para prejudicar a um inimigo do que, para o mesmo fim, corromper e obscurecer a própria consciência até o ponto de persuadir-se de que diz a verdade? A neurose resultante — a atmosfera de fraude e auto-engano que pervade então toda a personalidade — é apenas o índice superficial de um profundo ódio ao Espírito.

Talvez Simone vivesse numa época em que os pecados mortais vulgares — roubo, adultério — ainda fossem mais generalizados do que a rejeição do Espírito, hoje o mandamento número um da vida em sociedade.

O irracionalismo arrebatado de alguns místicos cristãos (mas também muçulmanos, segundo observei) acaba por nos abrir a via abissal de uma mística sem sabedoria.

 

9 jan. 98

 

NOTAS

  1. Leszek Kolakowski, Las Principales Corrientes del Marxismo. Su Nacimiento, Desarrollo y Disolución, trad. Jorge Vigil, Madrid, Alianza, 1976-78, vol. I, pp. 19-87.
  2. La Pésanteur et la Grâce, avec une introduction par Gustave Thibon, Paris, Plon, 1948, p. 111. — Todas as citações remetidas apenas a um número de página, sem indicação de título, são extraídas deste livro. Todas as citações em itálicoe em parágrafo estreito são de Simone Weil, deste livro ou de outro, que se indicará na ocasião.
  3. , ibid.
  4. Se, como diz Sto. Tomás, “o amor é o desejo de eternidade do ser amado”, então não se trata de extinção mútua, e sim de mútua salvação. Talvez seja mais fácil compreender isto desde o ponto de vista islâmico, onde o ato sexual aparece como um sacramento e não como o mero exercício de um direito outorgado por um sacramento prévio (tanto que no Islam não existe noção de “casamento religioso”). Esta concepção não é aliás estranha de todo ao cristianismo, onde os nubentes, e não o sacerdote, são os oficiantes do sacramento do matrimônio. A rigor, qualquer par de homem e mulher que, no intuito de união indissolúvel, se entregue ao ato do amor deve ser considerado casado, segundo a interpretação mais profunda do dogma. Apenas, a contingência histórica desviou o foco da questão, fazendo com que a idéia de matrimônio se associasse cada vez mais a um ritual público e cada vez menos à efetiva união carnal — com o que se perdeu todo senso primordial da relação homem-mulher e o casamento se tornou uma espécie de salvo-conduto para a prática do mal menor.
  5. , p. 112.
  6. , ibid.
  7. , ibid.
  8. , ibid.
  9. , pp. 112-113.
  10. O desaparecimento das ciências cosmológicas — alquimia, astrologia — do panorama da civilização cristã foi um dos efeitos mais devastadores do supracosmismo, que parece ter-se entronizado na mentalidade católica após o concílio de Trento e os abusos da Inquisição. Esse desaparecimento, por sua vez, ocasionou a proliferação de doutrinas cosmológicas materialistas que vêm preencher a seu modo o hiato aberto pela omissão católica e terminam por expulsar da alma humana toda concepção de Deus (v., a respeito, o esplêndido livro de Seyyed Hossein Nasr, Man and Nature. The Spiritual Crisis of Modern Man, London, Allen & Unwin, 1976, trad. brasileira de Raul Bezerra Pedreira Filho, O Homem e a Natureza, Rio, Zahar, 1977). A Igreja tem no seu passivo o pecado de haver colocado entre o homem e Deus, em vez do cosmos, um abismo, um nada devorador; e ainda agrava essa culpa ao buscar um “diálogo” com as doutrinas materialistas, em vez de restaurar simplesmente a cosmologia cristã. E é evidente que esta cosmologia tem de tomar como fundamento absoluto e apodíctico a possibilidade da Encarnação. É verdade que o pressuposto contrário, o da impossibilidade, tem um efeito retórico mais contundente; mas vale a pena destruir toda a civilização cristã para depois buscar em figuras de retórica um abrigo contra o avanço da civilização anticristã?
  11. Ernesto Sabato, Abbadon el Exterminador, Buenos Aires, Sudamericana, 7ª ed., 1977. p. 11.
  12. P. 185.
  13. Páginas de um Diário Filosófico (inédito). Entrada de 10 de dezembro de 1991.
  14. P. 168.
  15. E poucos povos caíram na adoração da religião como fim em si como caíram os cristãos, a ponto de sobrepor a letra do dogma às evidências mais óbvias, como por exemplo faz Simone ao pedir que aceitemos a Encarnação como fato ao mesmo tempo que a negamos como possibilidade.
  16. P. 38.
  17. P. 142.

 

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