Apostilas

Kant e o primado do problema crítico

Olavo de Carvalho

Seminário de Filosofia, fevereiro de 1996

Kant e o primado do problema crítico1

 

Se o primado da dúvida metódica é apenas o primado de um equívoco verbal, então fica sob suspeita, igualmente, o primado kantiano do problema crítico. Pois, se o conhecimento humano deve prestar reverência preliminar ante a consciência de seus limites, por que não deveria também submeter-se à exigência de uma justificação preliminar a pretensão de conhecer esses limites?
A motivação imediata que levou Kant a investigar os limites do conhecimento humano foi o estado de profunda irritação em que o deixaram os relatos de Emmanuel Swedenborg sobre visões do céu e do inferno. Os únicos trechos da obra kantiana onde sentimos que a habitual frieza analítica do autor cede lugar a um tom de sarcasmo e de polêmica apaixonada, são aqueles em que Kant procura rebaixar os depoimentos do místico sueco a alucinações de uma mentalidade doente. O escrito Sonhos de um visionário marca justamente a passagem da fase pré-crítica à maturidade do pensamento kantiano. É manifesto que a filosofia crítica tem menos o objetivo de dar um fundamento ao conhecimento científico do que simplesmente de explicitar os fundamentos dados por pressupostos, ao mesmo tempo que nega qualquer fundamento científico aos conhecimentos de ordem mística e metafísica, reduzindo portanto a religião a um conjunto de mandamentos morais sem qualquer respaldo cognitivo.
Mas o curioso é que o filósofo crítico, tão cioso de não se deixar enganar por pressupostos dogmáticos, dá por pressuposta não somente a validade da ciência física, como também a aptidão da razão para conhecer seus próprios limites. Para além do campo dos juízos a priori e da experiência sensível, estende-se apenas, segundo ele, o domínio do incognoscível: pensável, admite Kant, mas incognoscível. No entanto, como se poderia determinar os limites do cognoscível sem algo conhecer do suposto incognoscível cuja borda externa coincide precisamente com esses limites? Se a razão conhece os limites do sensível e, ao mesmo tempo, estatui os seus próprios limites, como poderia ela determinar, igualmente, os limites do terceiro campo, especificamente diferente, que é o da experiência racionalizada, ou ciência, se, conforme diz o próprio Kant, é só a imaginação que conecta o racional e o sensível? Para ser coerente, Kant deveria ter dito que não há limites para a ciência, exceto os da imaginação. Pois, na medida em que opere balizada pela razão e pela experiência sensível, a imaginação, na perspectiva kantiana, não nos dará somente pensamento, mas conhecimento, de pleno direito. E, se é assim, por que rejeitar dogmaticamente a possibilidade de, partindo do sensível, escalar imaginariamente os graus do supra-sensível? Nada, no kantismo, prova que isto seja impossível ou sequer difícil.
Os limites de uma determinada capacidade só podem ser de duas ordens: intrínsecos e extrínsecos. Os limites intrínsecos são aqueles que podem ser conhecidos a priori e analiticamente, por dedução a partir do seu conceito. Ora, segundo Kant, nenhuma dedução a priori pode emigrar, sem mais, para o domínio dos fatos, de vez que o conhecimento deste domínio só tem validade quando é indutivo e fundado na experiência. Logo, os limites intrínsecos do conhecimento humano, caso conhecidos, seriam puramente formais e não se aplicariam ao conhecimento de nenhum objeto real e determinado. Seriam, por assim dizer, limites vazios, hipotéticos, que na prática não limitariam nada.
Quanto aos limites extrínsecos, só podem ser determinados indutivamente, a partir dos vários conhecimentos efetivos concernentes às várias espécies de objetos; e pelo fato mesmo de serem extrínsecos não poderiam jamais ser necessários e incondicionais, mas somente acidentais e contingentes.
Procurando determinar a priori os limites reais do conhecimento humano, o que é impossível segundo o próprio kantismo, ou provar por indução de fatos contingentes que esses limites são necessários e incondicionais, a proposta da filosofia crítica é, para dizer o mínimo, uma falácia em toda a linha.
O primeiro e o mais básico dos limites assinalados por Kant é que o campo da experiência está circunscrito pelas duas formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo. Mas aquilo que está num lugar determinado está também, a fortiori, no infinito supra-espacial; e aquilo que ocorre num instante determinado acontece também, a fortiori, dentro da eternidade — duas necessidades a priori das mais óbvias que, por si, dariam por terra com os famosos limites que a filosofia crítica procurava estabelecer2.
Mais falaciosa ainda é a refutação kantiana do argumento de Sto. Anselmo. Sto. Anselmo diz que a existência de Deus é auto-evidente por mera análise, de vez que o Ser infinito e necessário não poderia ser privado da existência, sendo toda privação uma limitação, contraditória portanto com a infinitude, e a possibilidade mesma de uma limitação sendo uma contingência, contraditória com a necessidade. Kant objeta que os juízos analíticos têm validade puramente racional e não se aplicam aos seres do domínio real, que só podem ser conhecidos por experiência: existir é existir “fora” do pensamento, e portanto a existência nunca pode ser deduzida do mero conceito.
Kant dá por pressuposto, nessa objeção, que nossa mente pode criar como mera hipótese o conceito de um ser absolutamente necessário, ou seja, que este conceito pode ser um mero “conteúdo” do pensamento. Ou seja: o conceito do ser necessário seria apenas hipoteticamente necessário. Só que, para esse conceito ser apenas e exclusivamente uma criação da nossa mente, sem qualquer realidade objetiva, ele teria de ser necessariamente hipotético, ou seja, teria de excluir totalmente a possibilidade de ser mais que mera hipótese. Ora, esta exclusão é autocontraditória. Nenhuma lógica do mundo pode determinar que uma necessidade hipotética seja necessariamente hipotética, pois isto seria o mesmo que negar-lhe, de antemão, todo caráter necessário, afirmado ao mesmo tempo no seu mero conceito. Podemos, é claro, imaginar uma necessidade falsa, mas ao dizermos que é falsa dizemos que não é necessidade de maneira alguma. Uma necessidade hipotética ou é uma necessidade ainda não provada, mas que, se provada, se mostrará necessária, ou é uma necessidade falsa: o que é logicamente impossível é conceber que uma necessidade hipotética seja hipotética necessariamente, que não possa ser verdadeira de maneira alguma, pois isto seria negar sua condição de hipótese e colocar, em seu lugar, o juízo categórico que afirma sua falsidade. O Ser infinito e necessário não pode, portanto, ser concebido como um mero “conteúdo da nossa mente”. Na verdade, concebê-lo assim, dando conteúdo lógico positivo a um conceito autocontraditório, é muito mais difícil do que conhecer algo, positivamente, sobre o Ser absoluto. É mais fácil conhecer Deus do que o “necessário necessariamente hipotético”.
Por outro lado, se a existência real do ser necessário não pode ser deduzida analiticamente do conceito da sua necessidade, se a necessidade exclui a contingência (e portanto a possibilidade de inexistir) e se o real fenomênico está forçosamente submetido às categorias lógicas, então é claro que, para falar na terminologia kantiana, o argumento ontológico é um juízo sintético a priori, e não um juízo puramente analítico: a existência real do ser necessário não está contida em sua mera definição, mas, a priori, sabemos que é exigida por ela, a título de propriedade, exatamente como acontece nos juízos geométricos mencionados por Kant.
Mais que logicamente certo, o argumento ontológico é auto-evidente. Denomino auto-evidente o juízo que não pode ter uma contraditória unívoca, ou seja, cuja contraditória não é sequer formulável sem o vício redibitório da ambigüidade. Que eu saiba, esta característica dos juízos auto-evidentes não tinha sido ressaltada até agora3. No caso, qual a contraditória do juízo “O ser necessário existe necessariamente”? É “O ser necessário inexiste necessariamente” ou “A existência do ser necessário não é necessária”? Impossível decidir. A contraditória do argumento de Sto. Anselmo é informulável. Rejeitar portanto esse argumento é abdicar do senso mesmo da unidade do discurso, é cair na linguagem dupla que terminará por nos levar aonde chegou Kant.
Porém a raiz de todas essas absurdidades está precisamente na fé dogmática que Kant, imitando Descartes, coloca no poder humano de duvidar. Pois como podemos, de fato, duvidar de nossa possibilidade de conhecer o absoluto? Se nada, radicalmente nada sabemos do absoluto, não podemos sequer formular nossa dúvida quanto à possibilidade de conhecê-lo. Daí a necessidade de ter um ponto de apoio no absoluto para formular a dúvida; mas como, ao mesmo tempo, Kant já tomou essa dúvida como um ponto de partida infalível e não pode abdicar dela de maneira alguma, só lhe resta procurar esse ponto de apoio nos limites mesmos do conhecimento, elevados assim a absolutos e incondicionados, por um giro lógico dos mais singulares. Assim, nada podemos saber do absoluto, exceto que ele está “para lá” dos limites do nosso conhecimento, limites estes que, não sendo determinados pelo absoluto (do qual nada sabemos) nem sendo realidades contingentes e revogáveis (de vez que são provados por mera análise, sendo por isto válidos a priori), passam eles mesmos a ser o próprio absoluto! Pois, se o pensamento nada pode deduzir a respeito do que está fora dele, como pode então conhecer os seus “limites”, a não ser que estes sejam necessários a priori? Sendo necessários a priori, são incondicionais; mas são também totais, abarcando o conhecimento humano como um todo e não somente em algumas partes e aspectos: e o todo incondicional é evidentemente absoluto. Logo, a prova de que não podemos conhecer o absoluto sustenta-se no conhecimento que temos do absoluto, com o nome mudado para “limites do conhecimento”. Se isto não fosse atentar iconoclasticamente contra um ídolo da modernidade, eu diria que o único comentário que merece essa tese da filosofia kantiana é que se trata de coisa pueril.
Do ponto de vista teológico, a entronização dos limites do conhecimento como o novo absoluto em lugar do velho Deus tem uma conseqüência das mais nítidas: o absoluto passa a ser definido como o não-humano, o humano como não-absoluto. Este abismo é, por sua vez, absoluto: Deus é tudo quanto está fora dos limites do humano, humano é tudo o que está fora e aquém do reino divino. Ou seja: a exclusão do humano do reino divino torna-se ela mesma um absoluto. Que Kant pretenda em seguida resgatar à força de razão prática e fé pietista a ligação entre homem e Deus, após ter demonstrado que ela é absolutamente impossível, só mostra que ele não tinha muita consciência do que fazia. Pois, se a exclusão do homem do reino divino é uma necessidade absoluta, nem mesmo a graça de um Deus onipotente poderia revogá-la.
Na verdade, não pode haver limites necessários ao conhecimento humano, sendo a condição humana definida precisamente pela contingência e pela liberdade. Todos os limites ao conhecimento humano têm de ser contingentes, e é precisamente isto o que possibilita, de um lado, as diferenças de capacidade cognitiva entre indivíduos e, de outro, o progresso do conhecimento. A tentativa de fundamentar a priori os limites do conhecimento humano é autocontraditória e absurda na base, reduzindo-se portanto a filosofia crítica a uma pretensão insensata, ao “sonho de um visionário”, que imagina poder puxar-se pelos cabelos para fora da água como o Barão de Münchausen e contemplar de dentro os seus próprios limites externos, como aquelas escadas de Escher cujo topo emenda com o primeiro degrau.
Mais ingênua, portanto, do que a confiança dogmática do racionalismo clássico no poder cognoscitivo da razão, mais visionária que a pretensão dos místicos a um conhecimento experimental de Deus, é a confiança no poder humano de por em dúvida aqueles princípios que fundam a possibilidade mesma da dúvida. Mais ingênuo que qualquer dogmatismo é o princípio mesmo da filosofia crítica, que pretende estatuir dedutivamente limites contingentes e indutivamente limites necessários. Mais ingênuos do que nossos antepassados, que acreditavam na revelação e na razão, somos nós, que acreditamos em Descartes e em Kant, supondo que a negatividade do seu ponto de partida seja prova de modéstia metodológica, quando ela oculta, na verdade, a mais sobre-humana das pretensões: a pretensão de estabelecer limites absolutos ao conhecimento humano. Pretensão superior à do próprio Deus, que não cercou de grades o fruto proibido, mas o deixou ao alcance da curiosidade de Eva.

Apêndice

Certas filosofias ignoram suas implicações práticas mais óbvias e por isto desencadeiam efeitos históricos inversos aos pretendidos pelo seus autores, os quais, se os vissem, não poderiam senão tentar jogar sobre a incompreensão de devotos discípulos a culpa que legitimamente deve ser imputada à sua própria e indesculpável imprevidência.
Kant procura subjugar a filosofia à  cristã, obtendo como resultado descristianizar a filosofia e tirar o vigor filosófico do cristianismo. É, tal como Descartes, um carola que fortalece o ateísmo imaginando defender a religião.
Ele realiza uma torção do olhar filosófico, desviando-o do objeto dado para as estruturas cognitivas do sujeito. Estas passam a ser não somente o único território seguro, mas o único objeto digno de interesse.
Paralelamente, toda universalidade deixa de ser universalidade objetiva, para se tornar mera uniformidade das estruturas cognitivas da espécie humana, isto é, subjetividade coletiva ou, como veio a ser chamada, intersubjetividade.
As categorias já não sendo modos de existência do ser, mas modos de cognição nossos, qualquer discurso que façamos já não versa senão sobre nós mesmos, e o objeto permanece eternamente separado de nós na redoma da incognoscível “coisa-em-si”. Não há saída para fora da prisão do mental senão pelo imperativo categórico que nos ordena crer em Deus; mas, como temos de crer n’Ele sem podermos jamais saber se Ele existe, toda tentativa de fundamentar racionalmente a fé não passará jamais de um jogo de palavras. Restaria explicar enfim por que esse Deus, no qual temos de crer e do qual temos de julgar que é bom por imperativo categórico, nos impõe categoricamente uma determinada fé e o uso da razão, ao mesmo tempo que nos proíbe usar a razão para provar a veracidade da fé. A filosofia de Kant é uma cisão esquizofrênica: reúne lado a lado, sem intercomunicação possível, um fideísmo obediencialista e um cientificismo pré-positivista. Ora, entre uma religião irracional e autoritária e a negação de todo conhecimento supra-sensível, qualquer pessoa sensata optaria por esta última, e foi precisamente o que aconteceu: Kant gerou o positivismo, que gerou o materialismo generalizado. Só um ingênuo não preveria esta conseqüência, e foi precisamente por prevê-la que os filósofos escolásticos insistiram em conciliar razão e fé, em vez de justapô-las mecanicamente e sem ligação interna como faz Kant. Kant representa um retrocesso da consciência cristã, que por meio dele recai em dilacerantes contradições já superadas pela escolástica — uma escolástica que Kant desconhecia quase por completo, já que sua única fonte sobre o assunto eram os manuais de Wolff.
Para piorar ainda mais as coisas, as formas a priori da subjetividade, que a Crítica descreve, são universais e necessárias, isto é, abrangem todo e qualquer sujeito cognoscente possível. Não há como excluir disto o próprio Deus, se é que Deus pensa e conhece humanamente, o que a Igreja diz ser justamente o negócio da Segunda Pessoa da Trindade. E aí temos a suprema extravagância do kantismo: nada podendo saber de Deus, ignoramos se Ele pensa, mas, ao mesmo tempo, já sabemos tudo a respeito de como Ele pensa — uma conclusão que Kant não afirma, porque nem sequer a percebe, mas que está implicada logicamente, e sem escapatória, em tudo quanto ele afirma. Em verdade vos digo: parece brincadeira.
Um kantiano roxo pode objetar que conhecer o pensamento humano de Jesus não é conhecer absolutamente nada de Seu pensamento divino — objeção desastrosa, que resultaria em cavar dentro do próprio Cristo o abismo entre homem e Deus que Kant já cavou na alma de todos nós, abismo sobre o qual o Cristo é precisamente a ponte. Algo me diz que, quando Jesus advertiu “Quem não junta comigo, separa”, o piedoso sábio trapalhão de Koenigsberg talvez não estivesse de todo ausente de Suas cogitações.

NOTAS

  1. Aulas do Seminário de Filosofia, fevereiro de 1996.
  2. Para completar, a experiência sensível não é só delimitada pelo espaço e pelo tempo, mas também pela quantidade. Mas, como demonstrou Benedetto Croce (Estetica come Szienza dell’Espressione e Linguistica Generale, Bari, Laterza, 11ª ed., 1965, I:I) podemos perceber espaço independentemente de tempo, tempo independentemente de espaço e quantidade independentemente de uma e outra coisa. Ademais, não poderíamos perceber quantidade sem que tivéssemos também, como bem viu Croce, a percepção da individualidade singular, na sua inespacialidade e intemporalidade. Assim, portanto, não há motivo para que o ser necessário não possa ser percebido com os sentidos, sendo, por definição, impossível que o ser necessário estivesse forçosamente excluído de qualquer possibilidade de manifestação fenomênica.
  3. Explico mais detalhadamente esse conceito no meu Breve Tratado de Metafísica Dogmática, Rio, Seminário de Filosofia, 1996 (apostila).

 

Da contemplação amorosa

Olavo de Carvalho

Apostila do Seminário de Filosofia

25 de janeiro de 1995

Transcrição de três aulas gravadas, corrigida pelo autor.

Et voici que l’amour nous confond à l’objet même de ces mots,
Et mots pour nous ils ne sont plus, n’étant plus signes ni parures,
Mais la chose même qu’ils figurent et la chose même qu’ils paraient.

(Saint-John Perse, Amers, Mer de Baal, 4).

  1. Da Contemplação Amorosa1

A mais remota inspiração intelectual de meu trabalho sobre Aristóteles vem talvez de minha reação a algumas leituras, entre as quais a da Defense of Poetry de Shelley, a da Introduction à la Métaphysique de Bergson, a do Nouvel Esprit Scientifique de Bachelard e a da Estetica come Scienza dell’Espressione e Linguistica Generale de Benedetto Croce — tudo isto mais de vinte anos atrás. Esses autores, por diferentes que fossem entre si, tinham em comum a crença num dualismo insuperável que cindiria a inteligência humana em funções opostas e estanques.

Por uma inclinação pessoal, pertenço à raça daqueles que buscam em tudo a unidade e a conciliação. Considero Aristóteles, Sto. Tomás, Leibniz e Schelling os mais eminentes representantes dessa raça na cultura do Ocidente. No Oriente, Shânkara e Ibn ‘Arabi.

É verdade que a existência humana sobre a Terra é luta, divisão, precariedade, carência, incompletude. Mas fazer da mutilação um princípio metafísico absoluto, ou mesmo uma característica estrutural e imutável da essência humana sempre me pareceu um abuso, uma projeção universalizante de experiências contingentes, ou, pelo menos, é fazer do estado humano médio a régua máxima da perfeição concebível. É a covardia, é a depressão que leva um homem a culpar o universal, fundando sua derrota num princípio metafísico que é apenas a ampliação paranóica da sua própria divisão interior. Quem cede a essa tentação torna-se em breve incapaz de conceber a idéia mesma de universalidade, que casa inseparavelmente a unidade e a infinitude. O universal está, por definição, acima de todas as culpas, porque está acima de todas as divisões.

De outro lado, o esforço de justificar o universal tomou com freqüência o sentido de um racionalismo, buscando demonstrar a racionalidade do real tomado como um todo. Ora, racionalidade, se bem compreendida, não é outra coisa senão proporcionalidade e harmonia (ratio = proportio); e um todo não pode ser dito harmônico e proporcional senão de uma destas duas maneiras: ou em relação a um outro todo, ou na conformação de suas partes constituintes. O universal caía fora da possibilidade de ser captado por uma ou outra dessas categorias, na medida em que, por um lado, era único e sem segundo, e, de outro lado, sua unidade transcendia a de uma mera relação entre partes. Deste modo, atribuir ao universal quer a racionalidade, quer a irracionalidade, me parecia um abuso tão grande quanto o de negar o universal mediante um dualismo irrecorrível.

Desde muito cedo, portanto, se desenvolveu em mim a convicção de que a unidade do universal é metafisicamente necessária e de que, por outro lado, ela não cabe nos nossos conceitos correntes de razão e irrazão.

A contínua meditação do problema tomou logo em mim a seguinte forma: o universal, que se impõe como evidência, não pode no entanto ser conceituado. Invertia-se assim a fórmula de Kant, segundo o qual as realidades metafísicas só podem ser pensadas, mas não conhecidas: o universal pode ser conhecido, mas não pode ser pensado. (Por esta e outras razões, Kant sempre me pareceu apenas um genial trapalhão.)

Aqueles a quem essa conclusão pareça heterodoxa e paradoxal esquecem que poder ser conhecido sem poder ser pensado é a característica mais primária e evidente de todas as coisas reais, a começar por nós mesmos. Conheço-me a mim mesmo por direta evidência que me faz autor de meus atos, sujeito de meus estados interiores, objeto das ações alheias, etc. Sempre que me apreendo intuitivamente, me apreendo como unidade. Mesmo para sentir-me dividido tenho de me apreender como unidade, caso contrário me identificaria com um dos lados e esqueceria o outro, não sentindo a divisão (é o caso das personalidades múltiplas). Conheço-me, portanto, como unidade. No entanto, toda tentativa de me pensar como tal, de produzir um conceito, uma noção ou um símbolo que me abarque e me apresente a mim mesmo como unidade fracassa rotundamente: produzo aspectos, perfis, sinais, e isto é tudo. Na melhor das hipóteses, crio um símbolo que, sem me abarcar efetivamente, indica intencionalmente a minha unidade (como por exemplo a sucessão de episódios de uma narrativa indica intencionalmente a unidade de um personagem, sem realizá-la de fato). Conheço-me como todo, penso-me por partes.

Mas, nessa distinção, “pensar” não designa só o raciocínio discursivo, mas todas as demais funções cognitivas: a imaginação, a memória, o sentimento. Nenhuma delas pode abarcar aquele todo que, não obstante, conheço perfeitamente bem e que sou eu mesmo.

Do mesmo modo, conheço perfeitamente bem minha mãe, a mulher a quem amo, os filhos que gerei, os meus amigos. Conheço-os e reconheço-os imediatamente como totalidades insubstituíveis sempre que se apresentam. A passagem do tempo, as mudanças de aparência, a queda dos cabelos, o emagrecimento, a doença, a velhice, em nada afetam esse reconhecimento: cada um desses seres é sempre o mesmo e não será jamais um outro. No entanto, se procuro pensá-los como conceitos, imaginá-los, recordá-los ou senti-los, já não tenho diante de mim senão um sinal ou símbolo, uma fatia ou fragmento que só pode significar o todo na medida em que de antemão eu conheça esse todo e tenha portanto a aptidão de reconhecê-lo por um indício. Cada ser humano pode ser conhecido como um todo, mas só pode ser pensado (imaginado, recordado, sentido) por partes sucessivas, cuja soma jamais o completa.

O universal, nesse sentido, não é mais nem menos misterioso do que a substância singular a que chamamos “pessoa humana”: cognoscível como todo, impensável exceto em partes e signos.

Ora, pensar (ou imaginar, ou recordar, ou sentir) é produzir em nós, voluntária ou involuntariamente, um signo, uma “figura” para representar algo que ela indica e que a transcende.2 O pensar (sempre no sentido abrangente do termo) é necessariamente precário e subentende uma faculdade cognitiva superior, capaz de reconhecer no todo o objeto que ele indica por partes. Qual a natureza dessa faculdade superior?

O objeto que não pode ser pensado, que transcende a representação subjetiva e jamais nela se esgota é algo que, radicalmente, não depende de nós, não está à nossa mercê, não é invenção nossa e só pode portanto ser aceito, recebido.

Aceitá-lo, recebê-lo, é respeitar sua integridade, nada projetar nele, nada acrescentar nem tirar. Implica, portanto, nada menos que o seguinte: desejar que ele seja o que é, não desejar que seja outra coisa. Esta plena aceitação respeitosa, porém, não pode ser somente passiva, sob pena de deixar amortecer o interesse que temos no objeto e, portanto, de fazê-lo desaparecer do nosso círculo de consciência. Tem de ser, ao contrário, uma aceitação desejosa: ela é um desejo ativo de que o objeto seja o que é, permaneça o que é, exista de per si e persista existindo. Ela não se constitui portanto somente de respeito (de re spicere = olhar e voltar a olhar). Ela é, plenamente, contemplação amorosa.

O objeto se oferece a mim como todo no instante e na medida em que o aceito como objeto de contemplação amorosa e, expelindo de mim toda tentativa de pensá-lo, de abarcá-lo conceptualmente, imaginativamente ou sentimentalmente, deixo e quero que ele exista por si diante de mim, eternamente transcendente à minha subjetividade, eternamente independente de tudo quanto eu faça ou pense ou sinta. A contemplação é o esplendor do objeto ante o olhar da humildade que o deseja como tal e que se recusa a alterá-lo no que quer que seja.

Aí, porém, entra a objeção kantiana: só conhecemos os objetos como objetos de nossa representação, e não em si mesmos. Esta objeção sempre me pareceu tautológica, pois resulta em dizer que só ouvimos o que nosso ouvido ouve, só vemos o que nossos olhos vêem, etc. Mas é preciso passar por ela. Todo objeto é, de fato, objeto de representação — mesmo os sentidos só nos dão esquemas representativos, não objetos “em si”. Porém, aí é que está: uma vez chegado ao nosso conhecimento um objeto — por intermédio da nossa representação —, temos duas alternativas: ou pensá-lo, isto é, fazer dele um signo ou conceito que entrará no rio dos nossos pensamentos para aí ser comparado, transformado, refutado, etc., ou, ao contrário, esperar para conhecê-lo mais e mais, isto é, esperar e desejar que ele nos entregue mais e mais de si mesmo. Qualquer de nossas faculdades representativas pode, a cada instante, submeter-se à sua própria mecânica interna ou ao objeto que se lhe oferece, pode recuar para contemplar-se a si mesma ou continuar a fitar o objeto. À primeira alternativa denomino reflexão (subentendendo que há também uma reflexão imaginativa, sentimental, etc.). À segunda denomino contemplação. Quando persistimos na atitude contemplativa, a faculdade, o canal representativo se torna cada vez mais dócil, mais transparente, até que, chegado um determinado limite, se manifesta com perfeita clareza a diferença entre o que é projeção e o que é pura recepção: mesmo admitindo-se que não atinjo, como diz Kant, o “objeto em si mesmo”, – coisa que de fato não admito, mas que não cabe discutir aqui3 –, capto ao menos a distinção entre o que ele me dá por si mesmo e o que eu, de minha parte, projeto nele. Trata-se evidentemente de um exercício de autoconsciência, onde, na medida mesma em que conscientizo minha própria ação projetiva, consigo distinguir o projetado e o recebido, e atino, enfim, com o objeto como tal, e já não como simples representação (e muito menos projeção) minha. O erro de Kant foi aí o de confundir a percepção vulgar, que é ferozmente projetiva, com a contemplação amorosa, autoconsciente, que termina pelo reconhecimento evidente e apodíctico, da objetividade como tal. A diferença decisiva é a que existe em projetar um desejo subjetivo, alheio ao conteúdo oferecido pelo objeto, ou projetar amorosamente o desejo do objeto como tal.

A contemplação amorosa é, portanto, passiva em relação ao objeto, ativa e crítica em relação ao sujeito. É dominar-se para não interferir, para não macular o objeto. (Há evidentemente algum parentesco entre o que denomino contemplação amorosa e a redução fenomenológica husserliana. A diferença aparecerá com plena clareza mais adiante.)

A contemplação amorosa sempre parte de um objeto da representação (ou mesmo de um objeto de pensamento), para chegar ao ponto em que o objeto fala por si, transcendendo o canal representativo (ou conceptual) que não funcionou senão como o comutador que aciona um mecanismo que em seguida escapa ao seu controle.

Ora, a única diferença que existe, nesse sentido, entre as substâncias corporais e o universal é a do canal pelo qual tomamos notícia inicial da sua presença: os sentidos, no primeiro caso, o pensamento abstrato, no segundo. Os sentidos nos dão, por exemplo, notícia de uma presença humana (a qual em seguida podemos pensar ou contemplar). O pensamento não “capta” o universal, mas nos dá notícia dele através da contradição lógica a que chegamos na tentativa de negá-lo. Esta contradição, que reflete a necessidade metafísica do universal, pode, em seguida, ser simplesmente pensada ou então contemplada. Neste último caso, a necessidade do universal passa a ser aceita, desejada, amada, até que se nos apresente como algo que nos abarca, nos modela, nos estatui e nos conserva na existência e no próprio ato de meditá-la. Não existe hiato, neste sentido, entre o conhecimento filosófico de Deus, a experiência mística de Deus e o puro e simples amor a Deus, mas a perfeita continuidade de uma intensificação contemplativa. O Deus dos filósofos, se fosse apenas dos filósofos, não seria Deus, mas apenas o conceito de Deus, captado e logo em seguida imediatamente pensado, isto é, mutilado, esquecido e negado. O Deus dos filósofos ou é objeto de contemplação amorosa — aceitação, fé, desejo — e é portanto o mesmo Deus de todo o mundo, ou então é apenas um Deus pensado, um simulacro de Deus, e portanto não é o Deus dos filósofos, mas apenas o Diabo puro e simples. Eis o que Sto. Tomás percebeu com perfeita clareza e o que Pascal não quis perceber, movido pela soberba dos humildes e por aquela trágica divisão interior do pensador matemático que, tendo abusado da razão, busca um refúgio no sentimento, sem perceber que transita apenas entre o mental e o mental e que o verdadeiro objeto de sua busca está para além dessa vulgar disputa entre faculdades humanas4.

 

12 de janeiro de 1995.

 

  1. Conhecimento e realidade

Foi por meio dessas considerações que cheguei à conclusão da total inanidade das disputas em torno da pergunta: o pensamento capta ou não a realidade? O pensamento jamais capta realidade nenhuma, nem é essa a sua função. O pensamento refere-se à realidade de uma maneira exclusivamente intencional, mediante signos, cujas combinações não expressam o real, mas o possível. O real como tal é conhecido única e exclusivamente pela contemplação amorosa; o pensamento (sempre em sentido lato) conhece-o somente enquanto objeto de significação intencional. Mas o real que nos chega, e que pode ser conhecido pela contemplação amorosa, constitui-se apenas do universal intensivo (não extensivo) e dos seres singulares que, em quantidade finita (e quer isoladamente, quer em grupos, conjuntos, ordens, hierarquias etc.), ingressam no círculo da nossa experiência. Mesmo supondo-se que estendêssemos a contemplação amorosa a todos eles, e que chegássemos assim a conhecer uma fatia imensa do real, ainda haveria lacunas infindáveis. O conhecimento que temos sobre o universal intensivo e sobre os seres singulares, todo somado, está muito longe de igualar-se ao universal extensivo. Esse hiato é que é preenchido pelo pensamento, ou melhor, pelo mental em geral (que inclui imaginação, sentimento etc.). Pensar, imaginar, etc., é apenas um esforço de saltar ou preencher o hiato entre o mundo conhecido (universal intensivo + seres singulares) e o universal extensivo. O objeto próprio do mental é o “irreal” possível — em todas as gradações da possibilidade, incluindo a necessidade ou certeza lógica5 — e não o real. O mental dá-nos a estrutura das relações possíveis dentro da qual podemos conceber aquilo que não conhecemos, mas que preenche o intervalo entre o conhecido e o universal extensivo. O conhecimento que temos desse intervalo é necessariamente potencial; por definição, ele jamais se atualiza por completo. Por que não pode atualizar-se? Porque isto seria substituir o todo universal real por um todo universal mental, que absorveria em si o real, o que é obviamente um contra-senso. Os famosos “limites do conhecimento humano” são apenas, enfim, os limites do mental. A contemplação amorosa, em si, não é nem limitada nem ilimitada, pois, só conhecendo os seres (o universal inclusive) na totalidade singular de cada um, não soma nem diminui.

É necessário distinguir agora radicalmente a contemplação amorosa da redução fenomenológica, após ter reconhecido o seu parentesco. Esta visa a captar “essências”, aquela capta a unidade indissolúvel de essência e existência, a que chamamos “ente singular”. Se captamos a singularidade de um ente, captamos, no mesmo ato, sua essência, mas não como unidade lógica separada, e sim como identidade de uma presença que revela imediatamente o que é6. Dito de outro modo, captamos imediatamente gênero, espécie e singularidade num todo indissolúvel: apreender “este lápis” não é apreender “lápis” em geral nem “este objeto” de essência indeterminada, nem é captar um número indeterminado de membros da espécie “lápis”; é captar um determinado membro de uma determinada espécie e é captá-lo como existente aqui e agora. Contemplação amorosa e redução fenomenológica se parecem entre si por serem modos de conhecimento contemplativos, descritivos e não analíticos. Mas a redução fenomenológica dirige-se à essência como coisa distinta da existência, portanto a um “irreal”, ao passo que a contemplação amorosa dirige-se ao real como tal, isto é, à existência de uma essência num ser determinado e presente. A teoria da contemplação amorosa está para a fenomenologia de Husserl assim como o aristotelismo está para o platonismo, mutatis mutandis: os “entes” da minha teoria estão para as “essências” de Husserl exatamente como a “substância” aristotélica está para as “Idéias” platônicas. O apelo de Husserl — “Rumo às coisas mesmas!”, Zu den Sachen selbst — não pode ser atendido plenamente pela fenomenologia mesma porque ela não visa a coisas reais, e sim a essências separadas. A tentativa posterior de Husserl de reintegrar na sua visão filosófica as coisas reais — pela teoria do Lebenswelt — foi tardia e ficou só no programa. É esse programa que, a meu modo, procuro realizar, sendo fiel ao mestre na medida mesma em que me afasto de seu métodosem me afastar de seus ideais, de seus valores, de seus conceitos básicos e de seus critérios de aferição. A teoria do Lebenswelt é a mais meritória tentativa de reintegrar na filosofia o conhecimento pré-filosófico, como raiz filosoficamente válida (ou validada pela reflexão) do conhecimento filosófico mesmo. Meu esforço é no sentido de dar um passo além, discernindo a metodologia implícita do conhecimento pré-filosófico, à qual chamo contemplação amorosa. Por desconhecê-la, os filósofos — com raras exceções — têm substituído o mundo pensado ao mundo dado, ou, como resumiu o poeta Bruno Tolentino, o “mundo como idéia” ao “mundo como tal”7. Enquanto continuar nesse rumo, a filosofia não terá como escapar à falsa disputa entre os que querem abarcar o mundo com o pensamento e os que negam ao pensamento todo alcance exceto o de uma ficção convencional. Os primeiros caem nas decepções periódicas do racionalismo e acabam no ceticismo. Os segundos, não crendo em conhecimento teorético puro, apelam à dialética da ação e, para transformar o mundo, acabam criando uma ideologia totalitária que, tudo explicando, termina num neo-racionalismo absoluto. Esses erros são complementares e giram em círculo, um produzindo o outro.

Mas a teoria da contemplação amorosa requeria, como complemento, uma teoria do discurso, pelas razões seguintes:

Se a contemplação amorosa ou conhecimento pré-filosófico (intensificado ou não pela reflexão filosófica) nos dá o conhecimento da totalidade, isto é, da unidade como tal, o mental nos dá o conhecimento das várias formas de proporcionalidade e harmonia, isto é, das formas indiretas da unidade; formas estas indefinidamente variadas e complexas, tanto quanto o número das espécies e dos entes possíveis.

Neste sentido é que digo que todas as faculdades cognitivas — raciocínio, imaginação, sentimento, etc. — são racionais8: todas fundam-se em princípios de equivalência, proporcionalidade e harmonia, que traduzem em modalidade por assim dizer “quantitativa” a identidade e a unidade.

Colocadas as bases metafísicas na teoria da unidade metafísica (que adaptei de Ibn ‘Arabi); estabelecido o método cognitivo (na minha teoria da contemplação amorosa); estabelecido o fundamento absoluto da objetividade do conhecimento (na Teoria da Tripla Intuição9); extraídos daí os princípios de uma psicologia do conhecimento (na Tripla Intuição e em O Caráter como Forma Pura da Personalidade10), aplicada em seguida para fins polêmicos na minha defesa incondicional da substancialidade da alma-consciência individual (no meu trabalho em preparação A Alienação da Consciência e no final de A Nova Era e a Revolução Cultural11), julguei que, para dar maior consistência ao conjunto, devia investigar em seguida os princípios do conhecimento indireto, ou discursivo, sobre os quais já esboçara alguma coisa no capítulo “A dialética simbólica” do livro Astros e Símbolos12 e nos meus trabalhos de teoria e crítica literária13. Nisto, como em tudo o mais, ative-me fielmente à minha regra pessoal de nunca inventar uma teoria nova quando houvesse alguma teoria antiga que, quer inalterada quer submetida a adaptações, pudesse dar conta do recado. Ora, a Teoria dos Quatro Discursos é apenas o reconhecimento de que os princípios gerais do conhecimento discursivo, que eu buscava, já estavam em Aristóteles, pelo menos de maneira implícita; de modo que, em vez de reinventar a roda, simplesmente inventei a calota, isto é, uma nova apresentação e revestimento de uma idéia de Aristóteles, reintegrando em seguida quase intacta essa parte do aristotelismo na filosofia que eu mesmo estava desenvolvendo, e cuja motivação inicial não estava em nada de aristotélico, mas sim no meu intuito de responder ao dualismo de Shelley, Bergson, Bachelard e Croce e de desenvolver a teoria do Lebenswelt husserliano para revalorizar o conhecimento pré-filosófico.

Todo esse trabalho de construção teórica positiva foi entremeado não só de aplicações pedagógicas (no curso do Instituto de Artes Liberais), mas também de esforços críticos e polêmicos complementares: contra a dissolução da teoria na prática (O Jardim das Aflições14); contra a dissolução da filosofia na ideologia (A Nova Era e a Revolução Cultural); contra o pensamento coletivista que prostitui a consciência individual à pretensa autoridade do número (O Imbecil Coletivo15), etc. Como o público até agora só conhece a parte polêmica do meu trabalho (pois a parte teórica, em forma de rascunhos, apostilas e edições privadas, quase confidenciais, não está pronta para publicação decente), o resultado é que este pacífico servidor da unidade e da conciliação está se tornando conhecido como um hidrófobo terrorista intelectual, o que não deixa de ser divertido16.

 

14 de janeiro de 1995.

 

  1. Aplicações em Filosofia Moral

Das duas teorias que criei no campo da gnoseologia — a tripla intuição e a contemplação amorosa —, extraí umas quantas aplicações de ordem moral, que foram expostas ao público no meu curso de Ética proferido em 1994 na Casa de Cultura Laura Alvim, todo gravado em fita e depois transcrito em apostilas.

A filosofia moral, ou ética, deve para mim tomar o seguinte rumo:

  1. Distinguir entre os códigos morais historicamente vigentes em diversas épocas e sociedades e a moral essencial, universal, que se obtém por simples redução fenomenológica. Aqueles compõem-se de normas, no sentido de Kelsen, e esta compõe-se de princípios. A discussão filosófica da moral deve ater-se ao campo dos princípios. Assim, o relativismo antropológico, sociológico e histórico pode conciliar-se com o dogmatismo dos princípios. Estes tornam-se conhecidos do investigador por abstração, mas em si não são abstratos: são o conteúdo concreto, o sentido efetivo por trás das normas historicamente vigentes. Estas é que, expressando de maneira indireta e às vezes simbólica o conteúdo dos princípios, são abstratas em relação a eles.
  2. Os princípios universais assim encontrados devem obedecer aos seguintes quesitos:
  3. Têm de ser identicamente os mesmos em todas as morais historicamente vigentes.
  4. Tem de estar subentendidos, como pressupostos lógicos, na aplicação prática dessas normas, em todos os casos historicamente considerados.

Dentre os princípios assim encontrados, destaca-se o da responsabilidade. Não há nenhum sistema moral no mundo que, por trás de suas regras, não tenha um de seus fundamentos na idéia de que:

1º, a responsabilidade por determinados fatos tem de ser imputada necessariamente a seus autores;

2º, esses autores são sempre seres particulares e concretos, substâncias no sentido aristotélico, e jamais, em caso algum, coletivos abstratos ou meros “universais”;

3º, existe continuidade substancial entre o ser que foi autor do ato e aquele a que posteriormente se atribui a responsabilidade por esse ato.

As morais históricas divergem enormemente quanto às categorias de seres a que se devem aplicar esses princípios. Algumas sociedades incluem entre os seres moral e juridicamente imputáveis os demônios, as forças da natureza, até mesmo os animais (até o séc. XVIII persistiu no Ocidente o hábito de punir com a excomunhão os porcos que invadissem plantações). O que é comum a todas é a crença no princípio da responsabilidade, na substancialidade do ente responsável e na continuidade substancial desse ente no trânsito entre ato e imputação.

III. Uma vez demonstrado esse ponto, a tarefa seguinte da filosofia moral é fundamentar racionalmente os princípios assim encontrados, ou seja, fundar a sua universalidade extensiva numa universalidade lógica, ou necessidade metafísica.

Aí é que entra a contribuição gnoseológica. Tendo demonstrado, pela Tripla Intuição, o fundamento absoluto da objetividade cognitiva, e pela Contemplação Amorosa a natureza do conhecimento objetivo, fundo-me em ambas para demonstrar a relação entre conhecimento e responsabilidade. Aí verifica-se que determinadas sociedades antigas ou primitivas podem ter “errado” na aplicação do princípio de responsabilidade a determinados entes não providos de autoconsciência, — como aliás erramos nisto com freqüência ainda hoje, e não sabemos por exemplo fixar adequadamente as fronteiras da responsabilidade no caso das chamadas personalidades psicopáticas ou da indução hipnótica —, mas que a aplicação errônea não desmente a veracidade intrínseca do princípio.

Na tripla intuição, demonstro que o fundamento da objetividade cognitiva reside num nexo indissolúvel entre sujeito, objeto e ato cognitivo, e que essa relação se dá de maneira exemplar, arquetípica mesmo, na percepção da luz, onde a luz é a um tempo objeto e condição da percepção, não podendo estes aspectos ser separados senão por mera distinção mental (no sentido escolástico) posterior. Do mesmo modo, e simultaneamente, pelo lado do sujeito, a sensibilidade à luz é objeto e condição da percepção, em modo inseparável. Daí que a luz, tradicional símbolo do ato cognitivo, seja algo mais do que mero símbolo: ela é o fundamento corporal, existencial, do nexo sujeito-predicado, e o “apoio sensível” sobre o qual se erige toda a lógica humana.

Dessa teoria decorre que o indivíduo humano só se conscientiza como sujeito cognitivo no ato mesmo em que se conscientiza como objeto que sofre a ação de uma fonte de luz. Os dois aspectos são inseparáveis, o que prova a falácia de todo idealismo subjetivo, assim como de todo dualismo sujeito-objeto. O mundo físico, com sua luz “corpórea”, é a morada mesma do Espírito. Ou, como disse Paul Éluard,

há outros mundos, mas estão neste.

Em oposição, assim, ao “materialismo espiritual” que critico asperamente em O Jardim das Aflições, estabeleço um “espiritualismo material”: o “materialismo” de um mundo feito de Espírito, transparência, inteligibilidade.

Recorro em seguida a um outro fundamento gnoseológico: a teoria da autoconsciência. Conforme demonstrei em O Jardim das Aflições, a autoconsciência nem é mera introjeção de papéis sociais, como pretendem certas correntes antropológicas, nem é um atributo substancialmente associado de uma vez para sempre à condição biológica humana: é uma possibilidade lógica, ou, se quiserem, uma potência no sentido aristotélico, que passa ao ato no instante em que o ser humano admite o princípio da responsabilidade, ou autoria de seus atos, no sentido de admitir que este seu corpo de agora é “o mesmo” que instantes atrás fez tal ou qual coisa.

Dito de outro modo, o princípio de responsabilidade é ao mesmo tempo cognitivo e moral. Ele é o fundamento da autoconsciência individual, assim como é o fundamento das morais históricas: nele se reencontram a descrição fenomenológica da consciência individual e a unidade subjacente das morais históricas.

Dessas constatações extraio uma série de sugestões metodológicas para o estudo de questões morais concretas, seja do ponto de vista ético-normativo, seja do ponto de vista histórico, sociológico, etc.

Eis aí, barbaramente reduzido, o que expliquei no meu curso de Ética.

Meu amigo Bruno Tolentino censura-me por deixar todas essas idéias em estado de rascunho — ou, pior ainda, de gravação em fita — em vez de lhes dar uma divulgação decente em forma de livro. Mas a filosofia, quando o é de verdade, não reside nos textos, nas “obras” filosóficas, e sim no filosofema, no conteúdo essencial de uma conexão de pensamentos, intuições e outros atos cognitivos que forma o mundo e o estilo próprios de um determinado filósofo. É isto o que nos permite distinguir entre “as obras de Aristóteles” e “a filosofia de Aristóteles”. (Esta distinção é impossível em literatura: em que consiste a poesia de Shakespeare senão nos textos de Shakespeare?) Há filósofos sem obra — a começar do pai de todos nós: Sócrates —; há filósofos cujo pensamento nos chega por obras escritas por testemunhas ou por ajudantes (não conheceríamos o pensamento de Husserl sem a redação de Fink). Mas não há filósofo sem filosofema — e aquele que publique dezenas ou centenas de livros eruditíssimos, com opiniões de estilo filosófico sobre assuntos filosóficos, não se torna por isto um filósofo17. A filosofia de um filósofo não está em seus textos, mas num certo modo de ver as coisas, que é transportável para fora deles e participável por quem quer que, saltando sobre os textos, faça seu esse modo de ver, integrando-o no seu próprio. Pode-se, assim, ser aristotélico ou hegeliano de pleno direito sem sacrifício da originalidade e independentemente da grandeza ou pequenez do talento próprio, mas não se pode ser shakespeareano ou cervantino senão por imitação inferior. Como é assombroso o mistério das vocações, que uma pseudociência animalesca reduz a uma questão de pontos num teste de QI…18

Quando decidi devotar minha vida ao serviço desta dama, formosa entre todas, que os antigos denominaram Afeição à Sabedoria, e que não é no fundo senão a figura jovem e incompleta daquela que no seu esplendor maduro será a Sabedoria mesma; nesse instante, digo, tomei consciência de que deveria, por muitos e longos anos, refrear e sacrificar meu fortíssimo impetus scribendi em favor do impetus cognoscendi(e mesmo do impetus agendi, de vez que a filosofia inclui como componente essencial a vocação pedagógica).

Mais ainda: dialética e dialógica por essência e não por acidente, a Filosofia move-se incessantemente em direção à Sabedoria, e por isto só pode viver bem em estado de rascunho19. Não é coincidência que a mais impressionante das obras filosóficas, a de Aristóteles, não nos tenha chegado senão nesse estado de incompletude e provisoriedade20. O texto filosófico jamais terá a perfeição formal e diamantina do poema, pois a perfeição que a filosofia busca é por excelência interior e muda, impressiva, por assim dizer, e não expressiva como a beleza artística.

 

25 de janeiro de 1995.

 

NOTAS

  1. Rascunho para uso em classe no Seminário Permanente de Filosofia e Humanidades (Instituto de Artes Liberais). Proibida a reprodução por quaisquer meios.
  2. Engana-seredondamente quem imagine que o sentimento, ao contrário das faculdades representativas, nos dá o objeto mesmo na sua imediatidade. O sentimento é apenas a reação parcial e momentânea do nosso ser a um aspecto determinado do objeto que a nós se apresenta no momento. Por exemplo, a mesma mulher que neste momento me desperta atração e deleite sensual pode, num outro momento, despertar-me saudade, melancolia, raiva, ciúme, etc. Cada um desses sentimentos é apenas um signo, dentro de mim, da totalidade vivente que ela é fora e independente de mim, e que reconheço instantaneamente como tal para além e por cima dos sentimentos transitórios que me desperte. O “sentimento” é também representação, e não apresentação. A expressão “conhecível como todo, impensável como todo” pode portanto ser substituída, sem erro, por “conhecível como todo, insensível como todo” (ou “somente sensível por partes e aspectos”).
  3. “Kant e o primado do problema crítico”.
  4. Otipo do “matemático arrependido” que cai no irracionalismo acreditando aproximar-se de Deus quando se aproxima apenas de um outro lado de si mesmo se tornaria dominante, no século XX, entre os cientistas com preocupações filosóficas. O livro de Ernesto Sábato, Homens e Engrenagens, é a súmula da experiência interior dessas pessoas, buscadoras sinceras, sem dúvida, mas que não sabem que Deus não faz distinção de talentos individuais e que a contemplação amorosa está acima da razão e da irrazão, do pensar e do sentir, etc.
  5. Distinçãoimportantíssima: a certeza lógica, mesmo absoluta e imediatamente fundada no princípio de identidade, só nos dá a conhecer a necessidade — teórica — de algo; mas não nos dá esse algo como objeto de experiência. Portanto, quando digo que o pensar só conhece o possível, a expressão “possível” tem aqui um sentido mais amplo do que na Teoria dos Quatro Discursos, e designa, em conjunto, os quatro graus ali considerados. Conhecer pelo pensamento é conhecer (no sentido daquela teoria) a possibilidade, a verossimilhança, a probabilidade ou a necessidade de algo, e não esse algo como tal. Esta distinção aplica-se a todo o mental — imaginação, sentimento, conjetura, etc. Todas estas funções são “discursivas” exatamente como o raciocínio. Quem não capte este ponto arriscará confundir minha concepção com a de Bergson, por exemplo, ou com a de Husserl.
  6. Sobreo conhecimento imediato da essência na presença, v. meu trabalho horrivelmente escrito mas, creio eu, correto nas idéias, Universalidade e Abstração (São Paulo, Speculum, 1983).
  7. Apoesia de Tolentino — quer ele tenha premeditado isto ou não — é um esforço heróico e vitorioso para descer do pseudo-céu das essências “rumo às coisas mesmas”, entre as quais e só entre as quais se encontra o caminho do verdadeiro céu. Ela atende, tanto quanto meu trabalho, ao apelo do último Husserl, e restaura, numa cultura fatigada de platonismos, o valor do mundo real, do mundo da Encarnação, cuja recusa tenaz, ainda que inspirada em motivos supostamente edificantes, é a essência mesma do diabolismo. Sua Katharina aceita o Cristo na mesma medida em que vai admitindo a realidade patente de impulsos e desejos banais, na medida em que contempla amorosamente objetos e seres do ambiente em torno, um relógio, um lagarto, uma folha, criaturas desconhecidas no reino das essências, mas, com pleno direito, habitantes do Lebenswelt; e quanto mais se detém na contemplação e aceitação deste mundo, mais se eleva em direção ao eterno.
  8. Meuconceito dessas faculdades — inspirado em Dante Alighieri, no simbolismo das Artes Liberais e na psicologia espiritual de Ibn ‘Arabi — está no livro Da Tripla Intuição (apostila do IAL).
  9. Apostilado Instituto de Artes Liberais. Trabalho inédito em livro.
  10. Rio,Astroscientia Editora, 1993.
  11. Rio,IAL & Stella Caymmi, 2ª ed., 1994.
  12. São Paulo,Nova Stella, 1985.
  13. OCrime da Madre Agnes ou A Confusão entre Espiritualidade e Psiquismo (São Paulo, Speculum, 1983); Símbolos e Mitos no Filme “O Silêncio dos Inocentes” (Rio, Stella Caymmi, 1993); Os Gêneros Literários. Seus Fundamentos Metafísicos (Rio, Stella Caymmi, 1994) e A Vingança de Liberty Valance. John Ford e a “Morte do Western” (em preparação).
  14. OJardim das Aflições. Epicuro e a Revolução Gnóstica. A sair ainda em 1995 por Stella Caymmi Editora.
  15. OImbecil Coletivo. Atualidades Inculturais Brasileiras, a sair proximamente por Stella Caymmi Editora. Reúne artigos publicados no Jornal do Brasil, na Tribuna da Imprensa e na revista Imprensa, bem como alguns inéditos.
  16. Meutrabalho incluiu também algumas investigações no campo da Religião Comparada (O Profeta da Paz. Estudos sobre a Interpretação Simbólica da Vida do Profeta Mohammed/Maomé, obra inédita, premiada na Arábia Saudita), e do simbolismo astrológico e alquímico (Astrologia e Religião, São Paulo, Nova Stella, 1986; Alquimia Natural e Espiritual, apostila), bem como no da psicologia (O Conceito de Psique, apostila). Esses trabalhos não são marginais em relação ao meu esforço filosófico, mas representam uma etapa de preparação e treino.
  17. Oabuso do termo tornou-se, no Brasil, regra geral.
  18. Osnorte-americanos têm-nos enviado lixo mental em tais quantidades — o feminismo, a filosofia da História de Paul Kennedy, o relativismo absoluto de Richard Rorty, a campanha pela liberalização da cocaína e concomitante repressão ao fumo, a negritude anti-semita, o anti-anti-semitismo paranóico, a defesa da eutanásia, a Curva de Bell,  etc. —, que julgo da máxima urgência uma ruptura de relações culturais com os EUA até que o grande irmão do Norte recupere o juízo.
  19. Avida presente como rascunho do ser é, aliás, um dos temas constantes da obra do próprio Tolentino.
  20. Emcontrapartida, sempre me pareceu uma singular inconsistência que o filósofo do fluxo vital, que o inimigo declarado de toda clausura racional, Henri Bergson, poucos anos antes de sua morte declarasse oficialmente encerrado o seu labor filosófico, dizendo que seu pensamento estava expresso de maneira acabada e definitiva nas suas obras publicadas.

 

Inteligência e verdade

Olavo de Carvalho

Duas aulas do Seminário de Filosofia, Curitiba, agosto de 1994

Transcrição de Luciane Amato, não revista pelo autor.

  1. Definição

Inteligência, no sentido em que aqui emprego a palavra, no sentido que tem etimologicamente e no sentido em que se usava no tempo em que as palavras tinham sentido, não quer dizer a habilidade de resolver problemas, a habilidade matemática, a imaginação visual, a aptidão musical ou qualquer outro tipo de habilidade em especial. Quer dizer, da maneira mais geral e abrangente, a capacidade de apreender a verdade. A inteligência não consiste nem mesmo em pensar. Quando pensamos, mas o nosso pensamento não capta propriamente o que é verdade naquilo que pensa, então o que está em ação nesse pensar não é propriamente a inteligência, no rigor do termo, mas apenas o desejo frustrado de inteligir ou mesmo o puro automatismo de um pensar ininteligente. O pensar e o inteligir são atividades completamente distintas. A prova disto é que muitas vezes você pensa, pensa, e não intelige nada, e outras vezes intelige sem ter pensado, numa súbita fulguração intuitiva.

A inteligência é um órgão — digamos assim: um órgão — que só serve para isto: captar a verdade. Às vezes ela entra em operação através do pensamento, às vezes através da imaginação ou do sentimento, e às vezes entra diretamente, num ato intelectivo — ou intuitivo — instantâneo, no qual você capta alguma coisa sem uma preparação e sem uma forma representativa em especial que sirva de canal à intelecção. Outras vezes há uma longa preparação através do pensamento, da imaginação e da memória, e no fim você não capta coisíssima nenhuma: cumpridos os atos representativos, a intelecção a que se dirigiam falha por completo; dados os meios, a finalidade não se realiza. A inteligência está na realização da finalidade, e não na natureza dos meios empregados. E se a finalidade dos meios de conhecimento é conhecer, e se o conhecimento só é conhecimento em sentido pleno se conhece a verdade, então a definição de inteligência é: a potência de conhecer a verdade por qualquer meio que seja.

O conceito da verdade, e as discussões todas que suscita, podem ficar para outra ocasião. Por enquanto, e tomando provisoriamente a palavra “verdade” em seu sentido vulgar de coincidência entre fato e idéia, bastam estas distinções elementares para nos levarem a perceber o quanto é errônea a direção tomada pela atual teoria das “inteligências múltiplas”, que dissolve a noção mesma de inteligência numa coleção de habilidades — que vão desde o raciocínio matemático até a destreza física e o traquejo social —, sem notar que todas estas capacidades e outras quantas similares são meios e que a inteligência não é um meio, mas o ato mesmo, o resultado a que tendem esses meios e para o qual nenhum deles é por si — nem a soma deles todos é por si — condição suficiente. A teoria das inteligências múltiplas surgiu como uma reação contra a teoria do QI, que por sua vez identificava a inteligência, exclusivamente, com a habilidade verbal, matemática e imaginativo-espacial. Mas é um caso típico de substituição de uma falsidade por outra. Sejam poucas ou muitas as habilidades com que se identifica a inteligência, o erro é o mesmo: confundir a inteligência com os instrumentos de que se serve.

Essa confusão acontece porque a maior parte das pessoas se conhece muito mal, mesmo nas coisas práticas e nos aspectos mais óbvios da vida. Quanto maior não seria sua dificuldade de captar a diferença sutil entre os atos representativos e a inteligência! Vendo sempre a inteligência atuar através do pensamento, da memória, da imaginação, do sentimento, confundem portanto o canal com aquilo que por ele passa, o veículo com o passageiro, e tomam por “inteligência” os meros atos mentais.

Esse equívoco acabou por ser oficializado e legitimado pela educação. De modo geral, todas as formas de ensino visam a incrementar as habilidades em que a inteligência se apóia, como a memória, a imaginação, o raciocínio etc., e não dão a menor importância a inteligência enquanto tal. O fato é que a entrada em cena dessas outras faculdades não acarreta necessariamente a da inteligência. Podemos desenvolver bastante o raciocínio verbal, ou a imaginação visual, ou a memória, ou a aptidão artística, sem que haja efetivamente uma inteligência dirigindo os seus passos — a prova é que várias dessas aptidões são mais desenvolvidas em certos retardados mentais do que no comum das pessoas. Aliás, se é através do raciocínio que às vezes inteligimos, também é através dele que nos enganamos. Do mesmo modo, às vezes a imaginação nos leva à compreensão real de alguma coisa, mas às vezes nos leva para longe da verdade. O desenvolvimento destas faculdades, imaginação, memória, raciocínio etc., não implica portanto necessariamente o da inteligência; também é verdade o vice-versa: que a inteligência é independente desses outros processos, que lhe servem de canais, instrumentos e ocasiões e nada mais. Mas o vice-versa não deve ser tomado em sentido rigoroso, pois uma inteligência resolutamente decidida a descobrir a verdade sobre alguma coisa acaba em geral encontrando os canais mentais pelos quais chegar ao seu objetivo, ou seja, ela desenvolve as “faculdades” de que necessita. Sem excluir portanto que haja casos de inteligências mesmo superiores mas carentes de meios ou canais específicos de atuação, digo que são exceções e raridades que antes confirmam a regra: o desenvolvimento dos meios não implica o da inteligência, o da inteligência leva quase que necessariamente à conquista dos meios.

Se definimos a inteligência como a capacidade humana de captar o que é verdade, também entendemos que o essencial do ser humano, aquilo que o diferencia dos animais, não é o pensamento, não é a razão, nem uma imaginação ou memória excepcionalmente desenvolvidas, embora tudo isto haja efetivamente no ser humano. Pois pensar, um macaco também pensa: ele completa um silogismo e até encadeia silogismos num raciocínio relativamente perfeito. Imaginação, até um gato possui: os gatos sonham. Por este caminho não encontraremos a diferença específica humana, aquilo que nos torna homens em vez de bichos. E, se é importante arraigar o homem no reino animal, para não fazer dele um ser angélico sem pés no solo, também é importante saber distingui-lo de uma tartaruga ou de um molusco por alguma diferença que não seja meramente quantitativa e acidental.

O que nos torna humanos é o fato de que tudo aquilo que imaginamos, raciocinamos, recordamos, somos capazes de vêlo como um conjunto e, com relação a este conjunto, podemos dizer um sim ou um não, podemos dizer: “É verdadeiro”, ou: “É falso”. Somos capazes de julgar a veracidade ou falsidade de tudo aquilo que a nossa própria mente vai conhecendo ou produzindo, e isto não há animal que possa fazer.

Mas, dirá o velho Pilatos em nós, quid est Veritas? Cada um de nós é um juiz romano, corrompido até a medula, a fazer de conta que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. A verdade da qual alegas nada saber, infausto Pôncio, a verdade é o quid — esse mesmo quid que, se desconhecesses, não poderias usar como medida de aferição para o termo “verdade”. Se pergunto quê é alguma coisa, se ignoro mesmo o que é alguma coisa, é porque a coisa que se me oferece nesse instante não cumpre, não atende perfeitamente a condição exigida na palavra quê — aquela consistência, aquela coesão do estar, do agir e do padecer, aquela patência e sobretudo aquela fatalidade, aquele não-ser-de-outro-modo, aquela impositiva ausência de perguntas — e da capacidade de fazer perguntas — que me sobrevém quando sei o quê. Ecce veritas. É o que basta por enquanto, sem prejuízo de posteriores discussões e aprofundamentos.

  1. Não existe inteligência artificial

Hoje em dia, quando se fala de “inteligência artificial”, mais certo seria dizer pensamento artificial, ou talvez imaginação artificial, porque uma determinada sequência de pensamentos, um conjunto de operações da mente, pode ser imitado de várias maneiras. Um conjunto é imitado, por exemplo, na escrita. A escrita é uma imitação gráfica de sons, que por sua vez imitam idéias, que por sua vez imitam formas, funções e relações de coisas. A escrita foi a primeira forma de pensamento artificial. Toda e qualquer forma de registro que o homem use já é um tipo de pensamento artificial, uma vez que implica um código de conversões e permutações, e neste sentido um programa de computador não é muito diferente, por exemplo, de uma regra de jogo: como no jogo de xadrez, onde se concebe uma sequência de operações com muitas alternativas, cristalizadas num determinado esquema que pode ser imitado, repetido ou variado segundo um algoritmo básico. Existem muitas formas de pensamento artificial, ou de imaginação artificial. Porém a inteligência, propriamente dita, não tem como ser artificial. O pensamento artificial é essencialmente uma imitação de atos de pensamento segundo a fórmula das suas sequências e combinações. Do mesmo modo podemos imitar a imaginação e a memória, se em vez de utilizar uma correspondência biunívoca entre signo e significado recorrermos a uma rede de correspondências analógicas. Dá na mesma: em ambos os casos, trata-se de imitar um algoritmo, a fórmula de uma sequência ou rede de combinações, que por sua vez imitam as operações reais da mente. Acontece que a inteligência não é uma “operação da mente”; ela é o nome que damos a uma determinada qualidade do resultado dessas operações, pouco importando qual a faculdade que as realizou ou qual o código empregado. É legítimo dizer que um indivíduo inteligiu alguma coisa somente quando ele captou a verdade dessa coisa, seja pelo raciocínio, seja pela imaginação ou seja lá pelo caminho que for. Até mesmo o sentimento intelige, quando ama o que é verdadeiramente amável e odeia o que é verdadeiramente odioso: há uma inteligência do sentimento, como há uma burrice do sentimento. A inteligência não reside na mente, mas num certo tipo de relação entre o ato mental e o seu objeto, relação que denominamos “veracidade” do conteúdo desse ato mental ( notem bem: veracidade do conteúdo, e não do ato mesmo ).

Aqui alguém poderia objetar que, quando um ato de pensamento artificial chega a um resultado verdadeiro, por exemplo quando um computador nos assegura que 2 + 2 = 4, este é um ato de inteligência, uma vez que nos dá uma verdade. A diferença, aqui, é a seguinte: o computador não intelige que 2 + 2 = 4, mas apenas realiza as operações que dão por resultado 4, segundo um programa ou algoritmo pré-estabelecido. Se ele for programado segundo a regra de que 2 + 2 = 5, ele não somente dará sempre este resultado, mas ainda o generalizará para todos os casos similares, segundo a regra 2a + 2a = 5a. A inteligência não consiste somente em atinar com um resultado verdadeiro, mas em admitir esse resultado como verdadeiro. Que significa “admitir”? Significa, primeiro, estar livre para preferir um resultado falso ( um computador pode ser programado para preferir os resultados falsos num certo número de ocasiões, mas sempre segundo um padrão préestabelecido ). Significa, em segundo lugar, crer nesse resultado, isto é, assumir uma responsabilidade pessoal pela afirmação dele e pelas consequências que dele derivem. A inteligência, neste sentido, só é admissível em seres livres e responsáveis, e o primeiro ser livre e responsável que conhecemos na escala dos viventes é o homem: nenhum ser abaixo dele possui inteligência, e se há seres superiores ao homem é um problema que não nos interessa no momento e cuja solução não interferiria no que estamos examinando aqui. A inteligência é a relação que se estabelece entre o homem e a verdade, uma relação que só o homem tem com a verdade, e que só tem no momento em que intelige e admite a verdade, já que ele pode tornar-se ininteligente no instante seguinte, quando a esquece ou renega.

Neste sentido, o resultado da conta de 2 + 2 que aparece na tela do computador é uma verdade, mas uma verdade que está no objeto e não ainda na inteligência; essa verdade está na tela como a verdadeira estrutura mineralógica de uma pedra está na pedra ou como a verdadeira fisiologia do animal está no animal: são verdades latentes, que jazem na obscuridade do mundo objetivo aguardando o instante em que se atualizarão na inteligência humana. Do mesmo modo, podemos pensar uma idéia verdadeira sem nos darmos conta de que é verdadeira; neste caso, a verdade está no pensamento como a verdade da pedra está na pedra: o ato de inteligência só se cumpre no instante em que percebemos e admitimos essa verdade como verdade. A inteligência é, neste sentido, mais “interior” a nós do que o pensamento. O pensamento, para nós, pode ser objeto. A inteligência, não. O ato de reflexão pelo qual retornamos a um pensamento para examiná-lo ou julgá-lo é um outro pensamento, de conteúdo diferente do primeiro. Mas a recordação de um ato de inteligência é o mesmíssimo ato de inteligência, reforçado e revivificado, numa nova afirmação de si mesmo. Não posso recordar o conteúdo de um ato de intelecção sem inteligir novamente os mesmos conteúdos, quase sempre com redobrada força de evidência.

Se definirmos o pensamento artificial como a imitação, por sinais eletrônicos, de certos atos de pensamento, entenderemos que o pensamento artificial é pensamento, que a imitação de pensamento é pensamento, pois pensar, afinal, é apenas usar sinais ou signos para representar certos dados internos ou externos. Mas a imitação de inteligência não é inteligência, de vez que só há inteligência no ato real pelo qual um ente humano real apreende realmente uma verdade no instante em que a apreende; na imitação teríamos somente um sujeito hipotético apreendendo hipoteticamente uma hipotética verdade, cuja veracidade ele não pode afirmar senão hipoteticamente. Tudo isto seria apenas pensamento, não inteligência.

A inteligência somente se exerce perante uma situação real, concreta: o inteligir é concentrar o foco da atenção numa evidência presente. Não se confunde com o meramente pensar uma verdade, pois consiste em captar a verdade desse pensamento; nem se confunde com o perceber uma cor, uma forma, pois consiste em apreender a veracidade dessa cor ou dessa forma; nem com o recordar ou imaginar uma figura, pois consiste em assumir a veracidade dessa recordação ou imaginação. Por isto não é possível imitar um ato de inteligência, pois sua imitação não poderia ser outra coisa senão a cópia do pensamento, ou da recordação, ou da imagem que lhe serviu de canal; mas, se esta cópia fosse acompanhada da captação de sua veracidade, não seria uma cópia, e sim o ato mesmo, revivido em modo pleno; e, se desacompanhado dessa captação, seria cópia do pensamento ou da imaginação apenas, e não do ato de inteligência. E esse pensamento ou essa imaginação, se verdadeiros em seu conteúdo, teriam apenas a verdade de um objeto, a verdade latente de uma pedra ou de um cálculo exibido na tela do computador, aguardando ser iluminada pelo ato de inteligência que a transformaria em verdade atual, efetiva, conhecida.

Um computador só pode julgar veracidade ou falsidade dentro de certos parâmetros que já estejam no programa dele, ou seja, falsidade ou veracidade relativas a um código dado de antemão, código esse que pode ser inteiramente convencional. Isto é, ele não julga a veracidade, mas apenas a logicidade das conclusões, sem poder por si mesmo estabelecer premissas ou princípios. Ora, a logicidade, a rigor, nada tem a ver com a veracidade, pois é apenas uma relação entre proposições, e não a relação entre uma proposição e a experiência real. Quando digo experiência real, não me refiro apenas à experiência cotidiana dos cinco sentidos, mas ao campo total da experiência humana, onde a experiência científica feita através de aparelhos e submetida a medições rigorosas se encaixa apenas como uma modalidade entre uma infinidade de outras. A inteligência, quando julga veracidade ou falsidade, pode fazê-lo em termos absolutos e incondicionais, independentemente dos parâmetros usados e da referência a um ou outro campo determinado da experiência; e é justamente este conhecimento incondicional da verdade incondicional que pode fundar em seguida os parâmetros da condicionalidade ou relatividade, assim como legitimar filosoficamente as divisões de campos de experiência, como por exemplo na delimitação das esferas das várias ciências.

  1. Evidência e certeza

O termo “intuição” designa em filosofia um conhecimento direto, uma intelecção maximamente evidente ( o que não significa que deva ser confundida com o sentimento subjetivo de certeza ). Exemplo de um ato de inteligência intuitiva: o fato de você estar aqui neste momento é uma certeza absoluta e incondicional, o que não quer dizer que você não possa duvidar dela, que você não possa até mesmo, por um jogo engenhoso de imaginação, ter o sentimento da certeza de estar em outro lugar; significa apenas que você só duvidará dela e só acreditará estar em outro lugar se você sentir o seu campo de experiência como dividido em blocos estanques, se você perder o senso da unidade do campo da experiência, o que só acontece na fantasia, no estado hipnótico ou na esquizofrenia. Quando sua inteligência admite que você está aqui, você está admitindo como verdadeira uma determinada interpretação que você faz do conjunto das informações que você tem neste momento, mas não só a respeito deste momento e sim a respeito do encaixe entre ele e os momentos que o antecederam e os que se seguirão. Você sabe que está aqui não só por causa das informações sensíveis que recebe a respeito do ambiente, informações auditivas, tácteis, etc., mas também porque você sabe que estas informações são coerentes com um passado ( você se lembra de ter vindo até aqui ), são coerentes com um projeto de futuro, ou seja, com uma idéia que você tem a respeito do propósito com que veio aqui; e tudo isto forma um sistema tão coeso, tão inseparável, que a respeito deste conjunto você pronuncia o julgamento de que isto é verdade: Você sabe que você está aqui. No entanto, não seria impensável que, estando aqui, você imaginasse estar em outro lugar, e que até mesmo se persuadisse e, um tanto auto-hipnoticamente, “sentisse” que está num outro lugar. Tudo isto pode ser produzido; porém, se o senso da unidade do campo da sua experiência ainda funciona, algo lhe dirá: isto é falso. Por que? Porque as informações que dizem que você está aqui vêm todas juntas; ao passo que as que você está produzindo para dizer que está em outro lugar vêm por partes. Examine. O quê imaginou você a respeito do outro lugar onde supõe estar? o som? o visual? Um ou outro? Certamente não foram os dois exatamente no mesmo tempo e em proporção coerente. O motivo, o antecedente temporal da sua presença ali, eram-lhe tão claros quanto as sensações visuais ou auditivas? Não: mas as informações que você recebe aqui sobre sua presença vêm todas coladas umas às outras. Você não pega primeiro o visual, depois o auditivo, depois o táctil, ou seja, você não compõe este ambiente, ele lhe vem todo junto; e, embora você, por abstração, possa momentaneamente prestar atenção mais a um aspecto que a outro, você sabe e se recorda de que os aspectos preteridos estão aí presentes e podem ser atualizados na percepção a qualquer momento, sem um trabalho interior de construção voluntária ( que você lhe seria obrigatório de modo a completar a imagem do outro lugar suposto, onde supostamente estaria ou se sentisse estar enquanto está de fato aqui ).

Esta certeza que você tem de estar aqui é o que se chama evidência. Uma evidência é um conhecimento inegável, e até de certo modo indestrutível, porque, se você dissesse que não está aqui, a quem você o diria? A quem está lá, ou a quem está aqui? O ato mesmo de você dizer que não está aqui subentende que está.

Existe, em certos pensamentos que temos, esse caráter de veracidade, mas não sabemos definir bem em quê ele consiste; sabemos apenas que conferimos esta veracidade a alguns pensamentos e que a negamos a outros. Por exemplo, aqui negamos veracidade ao pensamento de que não estamos aqui. É a esta faculdade — a que diz “sim” ou “não” aos pensamentos, imaginações e sentimentos, que os julga como totalidade e diz “é verdadeiro” ou é “é falso” — que chamamos de inteligência.

  1. Inteligência e vontade

A inteligência, em suma, é o senso da verdade, e uma inteligência apta, hábil ou forte é uma inteligência que está acostumada a discernir a verdade e a falsidade em todas as circunstâncias da vida, a aceitar a verdade e permanecer nela.

Com isto quero dizer que a inteligência não se esgota no mero aspecto cognitivo: se a potência de conhecer a verdade constitui a semente da inteligência, esta semente só floresce por iniciativa da vontade, e também pela vontade ela enfraquece e morre. Vontade significa o exercício da liberdade. Quando você capta que algo é verdadeiro, significa que você aceitou que aquilo é verdadeiro, e quando você capta que é falso, significa que você o rejeitou. Ora, quem aceita ou rejeita não é uma faculdade em particular, mas é você inteiro, num ato de vontade livre. Isto significa que a inteligência é indissoluvelmente a síntese de uma aptidão cognitiva e de uma vontade de conhecer. Se houvesse um ensinamento voltado ao desenvolvimento da inteligência, ele teria de, antes de mais nada, acostumar o aluno a desejar a verdade em todas as circunstâncias e não fugir dela. Portanto o exercício da inteligência possui necessariamente um lado ético, moral. Platão dizia: “Verdade conhecida é verdade obedecida.”

Se a inteligência fosse uma faculdade puramente cognitiva, nada impediria que ela fosse exercida igualmente bem pelos bons e pelos maus, pelos sinceros e pelos fingidos, pelos honestos e pelos safados. Na realidade as coisas não se passam assim, e a desonestidade interior produz necessariamente o enfraquecimento da inteligência, que acaba sendo substituída por uma espécie de astúcia, de maldade engenhosa. A astúcia não consiste em captar a verdade, mas em captar — sem dúvida com veracidade — qual a mentira mais eficiente em cada ocasião. O astucioso é eficaz, mas está condenado a falhar ante situações das quais não possa se safar mediante algum subterfúgio, que exijam um confronto com a verdade. A conexão entre a inteligência e a bondade é reconhecida por todos os grandes filósofos do passado, do mesmo modo que a correspondente ligação, do lado do objeto, entre a verdade e o bem. Um mundo que nega essa conexão, que faz da inteligência uma faculdade “neutra”, capaz de funcionar tão bem nos bons quanto nos maus como a respiração ou a digestão, é um mundo francamente mau, que se orgulha da sua maldade como de uma conquista da ciência, pela qual ele se eleva acima das civilizações do passado. Mauriac notava, “nos seres decaídos, essa destreza para embelezar sua decadência. É a derradeira enfermidade a que o homem pode chegar: quando sua sujeira o deslumbra como um diamante”.

A conexão a que me refiro surge com peculiar clareza quando examinamos os seguintes fatos. Com frequência nossas ações não são acompanhadas de palavras que as expliquem, nem mesmo interiormente; ou seja, somos capazes de agir de determinadas maneiras, explicando esses atos de maneiras exatamente inversas, precisamente porque as motivações verdadeiras, permanecendo inexpressas e mudas, se furtam ao julgamento consciente. Isso faz com que, pelo menos subconscientemente, alimentemos um discurso duplo. A partir do momento em que você admite que uma coisa é verdadeira, mas procede, mesmo em segredo, mesmo interiormente, como se ela não o fosse, está mantendo um discurso duplo: num plano afirma uma coisa, e noutro afirma outra coisa. A verdade tem poucas oportunidades de surgir para nós com toda a clareza, e a mente humana funciona de uma forma que, quando você nega uma determinada informação, o subconsciente suprime todas as informações análogas, de modo que, quando você diz para si mesmo uma determinada mentira que lhe é conveniente, por motivos práticos ou psicológicos, ou para se preservar de sentimentos desagradáveis, no mesmo instante em que você suprime esta informação você suprime uma série de outras que lhe seriam úteis e que você não tencionava suprimir. Por isto a mentira interior é sempre danosa à inteligência: é um escotoma que se alastra até escurecer todo o campo da visão e substituí-lo por um sistema completo de erros e mentiras.Quando nos habituamos a suprimir a verdade com relação às nossas memórias, à nossa imaginação, aos nossos sentimentos e atos, esta supressão nunca fica só naquele setor onde mexemos, mas se alastra para outros territórios em volta e, tornando-nos incapazes de inteligir uma determinada coisa, nos tornamos incapazes para inteligir muitas outras também. A defesa contra verdades incômodas se transforma também numa defesa contra a verdade em geral, contra todas as verdades. Mais tarde, quando desejarmos estudar um determinado assunto que nos interessa, ou entender o que está se passando na nossa vida, e não conseguirmos, dificilmente perceberemos que fomos nós mesmos que causamos esta lesão da inteligência. Noto em muitos intelectuais de hoje uma repugnância, uma defesa instintiva contra a verdade, a tal ponto que, mesmo quando desejam aceitá-la, tem de metê-la num invólucro de mentiras. O pior, nisso, é que com frequência essa lesão é compensada por um desenvolvimento hipertrófico das faculdades auxiliares, numa inútil excrescência ornamental, tal como os seios que crescem em algumas mulheres após a menopausa. Muitas dessas inteligências lesadas alcançam sucesso nas profissões intelectuais.

  1. Pequenas e grandes verdades

Quando se fala em público a palavra “verdade”, no ambiente cínico de hoje em dia, logo aparece algum espertinho repetindo a pergunta de Pôncio Pilatos e desfiando ante nós, como se fossem a maior novidade, os velhos argumentos céticos, cuja refutação é classicamente o primeiro grau do aprendizado filosófico. Muitas dessas pessoas têm da palavra “verdade” uma noção um tanto posada, teatral, empostada e romantizada. Só estão dispostas a admitir que o homem pode conhecer a verdade caso alguém lhes mostre a verdade total, universal e completa a respeito das questões mais difíceis, e, como ninguém satisfaz a esta exigência, elas concluem, com o ceticismo clássico, que toda verdade é incognoscível. Mas esse tipo de exigência não expressa uma busca sincera da verdade. A busca sincera vai das verdades humildes e corriqueiras às verdades supremas, aceitando aquelas como caminho para estas, sem exigir desde logo, despoticamente, as respostas finais a todas as perguntas.

Um exemplo de verdade humilde, porém segura, firme, da qual você pode partir como um modelo para avaliar outras possíveis verdades, é dado por aquilo que você sabe — e que somente você sabe — a respeito da sua própria história, sobretudo da história interior de seus sentimentos, motivações, desejos, etc.

Se houvesse um ensinamento voltado ao desenvolvimento da inteligência, ele teria de começar por propor ao aluno, ao estudante, principiante ou postulante, uma espécie de revisão das suas memórias, ou seja, contar sua história direito (analogamente ao que se faz em psicanálise). Tudo o que é verdadeiro tem um caráter de coesão, pois uma informação verdadeira não pode ser artificialmente isolada de uma outra informação que também seja verdadeira e que tenha com ela uma relação de causa e efeito, de contiguidade, de semelhança e diferença, de complementaridade, etc.; então isto quer dizer que se você admite um A e um B, você vai ter de admitir um C, D, E, F, etc. A verdade tem sempre um caráter sistêmico, orgânico, razão pela qual sua captação pela inteligência pessoal requer uma abertura da personalidade, uma predisposição a aceitar todas as verdades que como tal se revelem, sem nenhuma seleção prévia de verdades convenientes.

  1. Demissão dos intelectuais

O que aconteceria se, numa determinada sociedade, existisse um grande número de pessoas capazes de julgar por si mesmas e de perceber a verdade, não sobre todos os pontos, mas sobre os pontos de maior interesse para a sociedade, ou sobre os que são mais urgentes? Haveria mais sensatez, os debates levariam a conclusões mais justas, as decisões teriam um sentido mais realista. Agora, numa sociedade onde todos estão se persuadindo uns aos outros de coisas de que eles mesmos não estão persuadidos, onde todos estão procurando se enganar, ou onde todos estão procurando ajuda dos outros para se enganar mais facilmente a si mesmos, todas as discussões versam sobre fantasmas, as decisões se esvanecem em meros sonhos, as frustrações levam o povo a um estado de exasperação do qual ele procura fugir mediante novas fantasias, e assim por diante. Isto acontece no campo religioso, político, moral, econômico e até no campo científico. Podemos partir para uma outra definicão, e dizer que um país tem uma cultura própria quando ele tem um número suficiente de pessoas capazes de perceber a verdade por si mesmas, e que não precisam ser persuadidas por ninguém. Estas pessoas funcionam como uma espécie de fiscais da inteligência coletiva. Em nosso país o número de pessoas assim é escandalosamente reduzido. As pessoas encarregadas de perceber a verdade por si mesmas devem ter uma inteligência treinada para isto, devem ter uma inteligência dócil à verdade e ser as primeiras a perceber e compreender o que se passa. Isto é que constitui uma inteligência nacional, uma intelectualidade nacional. A intelectualidade autêntica não é constituída necessariamente pelas pessoas que exercem profissões ligadas à cultura ou à inteligência, mas sim pelas pessoas que, exercendo ou não essas profissões, realizam as ações correspondentes a elas. Não é preciso ir muito longe para dizer que a sorte global de um país depende de que haja uma camada de pessoas assim, para poder, nos momentos de dificuldade, dar esta contribuição modesta que é simplesmente dizer a verdade. No Brasil temos um número assombroso de pessoas que trabalham em atividades culturais, escritores, professores, artistas, em geral subvencionados pelo governo, mas que nem de longe pensam em cumprir as obrigações elementares da vida intelectual; tudo o que fazem é apoiar-se uns aos outros num discurso coletivo, reafirmar as mesmas crenças de origem puramente egoista e subjetivista, expressar desejos e preconceitos coletivos e pessoais, promover a moda. Essas pessoas vivem reclamando de que neste país há poucas verbas para a cultura. Mas, para fazer isso que elas chamam de cultura, já recebem muito mais dinheiro do que merecem. Os cineastas, diretores de teatro, etc., constituem uma casta privilegiada, que é estipendiada pelo governo para exibir em público emoções baratas, afetar indignação e posar como “pessoas maravilhosas” em apartamentos da av. Vieira Souto.

É claro que os povos sempre têm a liberdade de escolher entre a verdade e a mentira, e mesmo sabendo da verdade eles podem novamente se enganar a si mesmos; porém a possibilidade de que se enganem é muito maior quando ninguém lhes diz a verdade jamais. O que acontece quando pessoas que exercem profissões intelectuais ou culturais somente as exercem no sentido de fazer delas um instrumento de apoio para sua própria mentira interior, ou seja, exercem esses trabalhos no sentido puramente oratório ou retórico de induzir o povo a erros e ilusões? Afirmo, peremptoriamente, que este é o caso da intelectualidade brasileira, que na sua quase totalidade se utiliza de profissões culturais para fazer com que povo e a opinião brasileira a sirvam, confirmando suas crenças, das quais ela não tem certeza pessoal alguma, e para as quais justamente por isso procura angariar um apoio coletivo. Existem setores onde é possível uma insegurança muito vasta e a livre troca de opiniões de valor simliar, mas em outros setores não. Porém o fato é que quando a intelectualidade como um todo se coloca perante o público numa atitude de persuasão lisonjeira, então a vida intelectual está sendo prostituída, e quando ela é prostituída, pergunto: como podemos desejar mais ética, mais honestidade, na política ou nos negócios, se amplas faixas de população atuante não têm a menor noção do que é verdadeiro ou falso? Como é que a intelectualidade pode ao mesmo tempo pregar um relativismo dissolvente, onde os critérios do verdadeiro e do falso se diluem a ponto de se tornarem indistinguíveis, e ao mesmo tempo exigir que os políticos sejam honestos e digam a verdade ao povo? As pessoas, nessa situação, não poderiam ser honestas nem mesmo que quisessem, porque não sabem o que é certo, não têm consciência moral, são grosseiras e insensíveis do ponto de vista moral. Então não resta dúvida de que a corrupção da sociedade começa com a corrupção da camada intelectual, não com a corrupção dos negócios ou da política: ao contrário, existem países onde os homens ricos e poderosos são muito corruptos e ainda assim o país funciona direito; existem países onde os políticos são corruptos e no entanto o país não se engana grosseiramente na solução de seus próprios problemas. Mas num país onde a camada intelectual, que é a camada encarregada profissionalmente de examinar a verdade e de dizê-la, começa a se enganar a si mesma, então não vai adiantar absolutamente nada que todos os políticos sejam honestos.

Se do ponto de vista de utilidade para o indivíduo o objetivo deste curso é o desenvolvimento da sua inteligência, do ponto de vista social, cultural, o objetivo do curso é fornecer gente para uma futura elite intelectual verdadeira.O que é uma elite intelectual? É gente tão treinada para perceber a verdade quanto um boxeador está treinado para lutar e um soldado para fazer a guerra. Neste sentido, todas as nações que obtiveram um lugar de grandeza na história tiveram uma elite assim, formada muito antes de que o país alcançasse qualquer projeção econômica, política, militar, etc. Pois não é possível resolver os problemas primeiro e se tornar inteligente depois.Em todo debate sobre problemas nacionais que atualmente está em curso só há uma coisa que todos estão esquecendo: Quem vai resolver estes problemas? Quem vai examiná-los? Quem tem a capacidade de examiná-los com efetiva inteligência?Se estas pessoas não existem, então o problema inicial é formá-las. O objetivo prioritário deste curso é exatamente isto, se não formar, pelo menos contribuir para formar, amanhã ou depois, ao longo de talvez vinte ou trinta anos, uma verdadeira elite intelectual.

  1. “Opinião própria” e “julgamento autônomo”

Vistos os objetivos do curso, é preciso, com relação ao indivíduo, não somente desenvolver a inteligência, mas fazer com que ela se torne a espinha dorsal do comportamento desse indivíduo, ou seja, que ele leve uma vida dirigida pela inteligência. Com isto ele se tornará finalmente autônomo e confiável em seus julgamentos, dentro da medida possível ao ser humano.Uma distinção importante é a que existe entre julgamento próprio, ou seja, você ser capaz de pensar por si mesmo, e o que é apenas uma opinião própria. Hoje em dia todo mundo faz questão de ter uma opinião própria, mas isso não é o mesmo que pensar por si mesmo. Pensar por si mesmo não é apenas você ter uma expressão, uma opinião que expresse a sua preferência, o seu gosto ( aliás geralmente muito menos pessoal do que se proclama ) ou a sua individualidade, mas é você ser capaz de, sozinho e sem ajuda, examinar uma questão e chegar a uma conclusão verdadeira ou suficiente sobre ela, e que, longe de buscar ser diferente da opinião alheia, coincida mais ou menos com as opiniões de outras pessoas que por si mesmas examinaram o assunto, de modo que cada um, examinando por si e sem nenhuma coerção externa, chegue mais ou menos às mesmas conclusões. Pensar por si mesmo é ser capaz de alcançar a verdade sozinho, e não de inventar apenas uma mentira personalizada. Aliás uma das condições para o desenvolvimento da inteligência é você não fazer questão de ter uma opinião própria, ou seja, você não fazer questão de que sua opinião seja diferente da das outras pessoas, ao contrário, apenas fazer questão de examinar as coisas por si mesmo, sem precisar de muletas, sem precisar da aprovação da maioria ou de quem quer que seja, para no final chegar a uma conclusão, de maneira que você expresse menos uma concordância ou discordância natural, mas que a concordância ou discordância seja produzida por um exame refletido do assunto. Ser capaz de examinar por si próprio é mais importante do que ter uma opinião diferente da dos outros.

  1. O estado de dúvida

O desenvolvimento da inteligência exige ainda uma outra coisa, que é a tolerância para com o estado de dúvida, que é um estado psicológico que se define por duas afirmações contraditórias e simultâneas de credibilidade aparentemente igual. Ou seja, ao examinar uma questão, dizer um sim e um não com igual convicção, isto é, acreditar tanto numa hipótese como na hipótese contrária, ter iguais razões a favor e contra. Na quase totalidade dos assuntos com os quais lidamos, não há tempo e não há condição prática de sair do estado de dúvida. O indivíduo que ou não tem vocação para a vida da inteligência ou se desviou dela por um motivo qualquer, sente como muito urgente sair do estado de dúvida; ele precisa ter uma opinião de qualquer jeito, precisa se pronunciar, precisa chegar a um sim ou um não, e esta necessidade é vivida como mais urgente do que a de conhecer a verdade. Neste caso a inteligência não se desenvolve, pois ela é substituída pela simples busca de segurança, já que a dúvida é um estado de insegurança. Se queremos desenvolver a inteligência, temos de fazer uma escolha: a de preferir antes permanecer em dúvida do que ter uma pseudocerteza. É óbvio que a certeza é preferível à dúvida, mas ela só é preferível realmente quando é uma certeza autêntica, e não uma simples preferência individual. Então uma outra exigência para o desenvolvimento da vida intelectual é uma espécie de voto de pobreza em matéria de opiniões, um voto de ter opinião sobre muito pouca coisa e se reservar para opinar sobre coisas em que você teve efetivamente tempo de pensar, e no resto você consentir em permanecer em dúvida, até mesmo, se for preciso pelo resto de sua vida. Uma certeza firme é preferível a um milhão de dúvidas mas, lamentavelmente, se quisermos desenvolver a inteligência teremos de tolerar o estado de dúvida, o estado de incerteza, por mais tempo do que as pessoas geralmente toleram. Além de fazer este voto de pobreza em matéria de opinião, é necessário ainda um outro tipo de voto de pobreza que é a renúncia à busca de apoio, ou seja, você não acreditar que o número das pessoas que o apoiam representa um argumento efetivo em favor da veracidade do que você está dizendo. Em todas as questões mais difíceis a maioria geralmente está errada, ou seja, em geral o consenso mais imediato é feito em torno de algum erro. Por que? Já dizia Sto. Tomás de Aquino: A verdade é filha do tempo. A verdade geralmente demora para aparecer. Se for preciso, se for absolutamente preciso buscar apoio numa opinião majoritária, então é preferível escorar-se nas opiniões que a humanidade conservou intactas ao longo dos tempos, que resistiram incólumes às mudanças e aos desgastes do tempo, do que naquelas que simplesmente formam a voz majoritária do nosso tempo, e que correm o grave risco de tornar-se minoritárias amanhã ou depois. Dito de outro modo: se algum valor tem a opinião da maioria, não é a da maioria momentânea, da maioria mercadológica, fugaz e inconstante, mas sim a da maioria humana, da maioria da espécie humana em todas as épocas e lugares: quod semper, quod ubique, quod ab omnibus credita est, “aquilo em que todos, em toda parte, sempre acreditaram”.

Ainda com relação à formação de uma elite intelectual, não é preciso dizer que não é absolutamente necessário que os membros de uma elite deste tipo tenham opinões concordantes, aliás se tiverem opiniões discordantes talvez até seja melhor em determinadas circunstâncias. Mas existem alguns pontos com os quais é preciso estar de acordo, no que se refere, em primeiro lugar, ao valor da inteligência, ao valor da verdade, e à possibilidade do ser humano descobrir a verdade. A fé no poder de alcançar a verdade é a condição inicial de qualquer investigação filosófica, dizia Hegel. Se não acreditarmos na possibilidade de alcançar a verdade não faremos esforços para buscá-la. É preciso se persuadir de que é possível descobrir a verdade, mas nem sempre a verdade final, nem sempre a verdade absoluta, e sobretudo nem sempre a verdade sobre todas as coisas. Em muitas coisas é possível alcançar uma verdade final absoluta, em muito mais coisas do que se costuma imaginar, porém em muito menos do que nós desejaríamos. Na maior parte dos casos teremos de nos contentar com uma certeza probabilística, e às vezes apenas com uma verossimilhança, e às vezes com muito menos do que isto, e talvez nos contentarmos com uma dúvida que nos acompanhará ao túmulo.Porém, na mesma medida em que o indivíduo confia na inteligência humana em geral, ele deve desconfiar da sua própria opinião, o que é um pouco o contrário da atitude que se dissemina hoje em dia, onde as pessoas dizem não acreditar em verdades absolutas mas acreditam com fé absoluta naquelas verdades relativas que lhes agradam: há aí uma mistura repugnante de relativismo intelectual com um dogmatismo emocional fanático. Ainda que reconheçamos a dificuldade de alcançar a verdade com relação à quase totalidade dos assuntos, temos de admitir que, pelo menos com relação a algumas coisas modestas, podemos verificar a possibilidade humana de alcançar a verdade, desde o momento em que cultivamos a noção da evidência e, sobretudo, cultivamos a norma de jamais negar que sabemos aquilo que efetivamente sabemos.

  1. A autoconsciência, terra natal da verdade

É importante aprender a admitir aquilo que você sabe que é verdadeiro. Ainda que sejam verdades insignificantes, você meditar sobre o óbvio é talvez a melhor maneira de se habituar à verdade e perder o medo dela e a desconfiança injusta quanto ao poder da inteligência. Por exemplo, ainda que quase todos os conhecimentos que existam sejam relativos ou duvidosos, você sabe que não pode duvidar seriamente de que está aqui neste momento; você pode fazer de conta que não está, mas não pode duvidar efetivamente. Se existem tantos conhecimentos óbvios sobre coisas insignificantes, imaginem aonde poderíamos chegar se alcançássemos evidências deste tipo com relação a coisas verdadeiramente importantes! O senso da verdade se desenvolve a partir do próprio senso da evidência, e o senso da evidência tem a sua raiz naquilo que você já sabe e sabe que sabe. Quando você sabe realmente uma coisa, automaticamente sabe que sabe, e se você sabe que sabe, você sabe que sabe que sabe. Isto quer dizer que qualquer conhecimento efetivo implica também a consciência deste conhecimento e a plena admissão da sua veracidade.A inteligência tem, portanto, também um aspecto volitivo, inseparavemente ligado ao aspecto cognitivo.

Por onde começa o treinamento da consciência para admitir a verdade? O primeiro grau no aprendizado da verdade consiste em você aprender a reconhecer aquelas verdades que só você sabe e que ninguém, fora você, pode confirmar ou negar. Por exemplo, só você conhece suas intenções, só você conhece os atos que praticou em segredo, só você conhece os sentimentos que não confessou. Você, nesses casos, é a única testemunha, e é aí que você vai conhecer a diferença radical e intransponível entre verdade e falsidade. As pessoas que vivem negando a existência de verdades não conhecem essa experiência, nunca deram senão falso testemunho de si mesmas ante o tribunal da consciência, mentem para si mesmas e por isto sentem que tudo no mundo é mentira. Hegel dizia: a autoconsciência é a terra natal da verdade. E Giambattista Vico observava que só conhecemos perfeitamente bem aquilo que nós mesmos fizemos: conhecer perfeitamente bem a natureza só Deus conhece, pois Ele a fez. Porém nossos próprios atos somente nós mesmos podemos conhecer, assim como nossos pensamentos e nossos estados interiores. Não há ali ninguém que possa nos fiscalizar, não há ninguém que possa nos defender de nós mesmos.

  1. Os graus de certeza

Se quisermos desenvolver o senso da certeza temos portanto de nos perguntar exatamente sobre aquelas coisas que só nós sabemos e que ninguém pode saber melhor do que nós mesmos. Estas vão dar o modelo para todas as outras certezas. O aprendizado de qualquer saber é perfeitamente inútil se não houver a consciência reflexiva, que consiste na frase: Eu sei que sei, ou então na sua oposta complementar, que é Eu sei que não sei.

Mesmo em assuntos duvidosos, com um pouquinho de reflexão você pode demarcar o limite entre o conhecimento possível e o impossível. Bastaria que conseguíssemos captar o grau de certeza ou de dúvida que existe em cada conhecimento já possuído.Existem quatro graus de certeza possíveis:

  1. certeza;
  2. probabilidade;

3 verossimilhança;

  1. conjeturação do possível.

Certeza é por exemplo esta que diz “Eu estou aqui agora” ou “Eu sou eu mesmo e não outro”.

Que é uma opinião provável? É uma opinião onde você pode só ter uma certeza evidente ( apodítica ) com relação a um grau de probabilidade determinado ou determinável.

Em outros casos você não pode nem ter isso, você só pode ter uma probabilidade indeterminada, isto é, verossímil, não uma probabilidade rigorosa.

E, finalmente, em alguns casos só podemos ter conjeturas, como por exemplo perguntar se há vida inteligente em outros planetas. Alguns dirão que sim, outros que não, e aqueles que dizem sim têm tanta razão quanto aqueles que dizem não. Aí conhecemos somente uma possibilidade genérica, impossível de graduar probabilisticamente.

Eis aqui uma boa maneira de você fazer uma faxina no seu universo intelectual, para recomeçar em boa ordem. Trata-se de fazer a si mesmo as seguintes perguntas: Do conjunto de coisas que você já estudou, quais são aquelas que você conhece com certeza absoluta? Quais as que conhece como probabilidade razoável? Quais as que conhece como conjetura verossímil? Quais as que conhece como mera possibilidade? Em suma: quanto vale cada um dos conhecimentos que você tem?

Eis uma verdade amarga: se, a respeito de um assunto, você crê possuir certo conhecimento mas não sabe se esse conhecimento é certo, verossímil, provável ou conjectural, você não sabe absolutamente nada sobre o assunto. A avaliação dos conhecimentos faz parte do próprio conhecimento. Se não existe uma avaliação clara dos conhecimentos já adquiridos, você não sabe a distinção entre o que sabe e o que não sabe, e isto é o mesmo que não saber nada. Seria o caso de perguntar: O que adianta uma educação que lhe ensina um monte de coisas, mas que não o ensina a avaliar e julgar o que aprende? Não existe nenhuma diferença entre você saber alguma coisa e você conseguir separar nela o verdadeiro do falso, pois saber é saber distinguir o verdadeiro do falso, é isto e nada mais além disto. Se você aplicasse esta grade de distinções a tudo o que já leu ou estudou, se classificasse por ela todas as suas opiniões, imagine a montanha de conhecimentos verídicos que você teria no fim.

Formar convicção é formar graus de convicção. Exemplo: Você sabe que Deus existe com a mesma certeza com que você sabe que você existe?Se Deus existe, Ele é bom: isto é óbvio. Seria bom que Deus existisse: isto também é óbvio. Agora, entre pensar seria bom que Deus existisse e pensar que Deus existe efetivamente há uma distância muito grande. Então, por exemplo, se tenho uma discussão com uma pessoa e penso que eu estou certo e ela errada, o que estou querendo dizer? Estou querendo dizer: Seria bom que eu estivesse certo e ela estivesse errada, ou melhor, seria bom para mim. Agora, entre pensar que seria bom que eu estivesse certo e estar absolutamente certo de fato, a distância também é enorme. Então, lamentavelmente, não podemos estar tão certos em tantas coisas como geralmente fingimos que estamos. Só que se você extirpar de seu universo de crenças um monte de falsas certezas, vai ver que no fim sobram algumas certezas inabaláveis, e estas valem muito. Mas se você desejar preservar todas as suas convicções igualmente, no mesmo plano, sem escalaridade crítica, no fim vão estar todas misturadas, você não vai ter certeza legítima de nenhuma, e vai acabar duvidando até de que dois mais dois são quatro, de que você está aqui neste momento e até de que você existe. A falsa certeza é a mãe da dúvida patológica.

Muitas vezes o que acontece é que o indivíduo acaba tendo certeza absoluta de coisas inteiramente conjeturais, e tendo dúvidas sobre coisa óbvias e inegáveis, porque não sabe equacionar as suas certezas e suas dúvidas conforme a segurança maior ou menor do conhecimento em si. É claro que existem coisas sobre as quais gostaríamos de ter certeza. Você não gostaria de ter certeza, por exemplo, da imortalidade da alma? Muitas vezes precisamos de um conhecimento, e este conhecimento se furta, se nega. Mas outras vezes há conhecimentos de que você crê não precisar e eles vêm acompanhados de certeza absoluta: então por que você não os aceita? Um conhecimento aparentemente inútil, mas certo, é menos prejudicial do que um conhecimento aparentemente útil, mas falso. Se aprendermos a avaliar os graus de certeza não conforme simplesmente o nosso desejo, mas conforme à coisa mesma, conforme o assunto mesmo admita maior ou menor certeza, teremos feito da nossa mente um instrumento dócil aos graus de certeza oferecidos pela própria realidade. Isso inclusive pouparia um trabalho enorme. Pouparia o trabalho de você ter de argumentar em favor de coisas que são óbvias e que não precisam de argumento nenhum para sustentá-las, bem como pouparia o trabalho de argumentar em favor do indefensável, do arbitrário, do nonsense.

Este senso de docilidade à verdade apreendida pela própria consciência é transmitido aos alunos deste curso como uma prática, não apenas como uma lição de casa para se fazer de hoje para amanhã, mas como uma prática para o resto da vida. Dado qualquer conhecimento, o aluno é convidado incessantemente a fazer as quatro perguntas decisivas: Isto é verídico? É provável? É verossímil? É possível?O critério dos graus de certeza é usado o tempo todo neste curso; é a primeira lição e também a última. E a primeira coisa que deve ser revista com este critério é qualquer assunto que você já tenha estudado formalmente. Somente com esta revisão você já vai ver que a massa de conhecimentos, de informações adquiridas, começa a adquirir forma orgânica, inteligível, e você pela primeira vez tem uma idéia clara da cultura que possui e da que lhe falta: quando o universo dos seus conhecimentos adquire uma forma, você adquire consciência reflexiva do que sabe e do que não sabe.

  1. A topografia da ignorância

O desenvolvimento da consciência reflexiva pode ser exemplificado na seguinte prática que dou aos alunos deste curso:

O tempo todo estamos adquirindo informações que nos vêm através dos cinco sentidos, da leitura, do ouvir-dizer, etc., porém a algumas delas prestamos atenção e damos um valor, e a outras não. Então pergunto eu: para onde você olha sempre, para onde olha com frequência, para onde olha de vez em quando e para onde não olha jamais? É justamente a consciência desta seleção que lhe dará a topografia do mundo, do seu mundo. Nenhum mundo pessoal coincide extensivamente, quantitativamente, com o mundo objetivo. Mas um mundo pessoal íntegro, dotado de unidade como um organismo vivente, já se parece com o mundo objetivo precisamente por essa unidade orgânica e, essencialmente ao menos, é um adequado mapa do mundo, ao passo que o mundo interior quebradiço, fragmentário e mecânico não se parece com nada senão com ele mesmo, com as fantasias de criação humana. A diferença não está na quantidade de informações, mas justamente em sua topografia.

A topografia autoconsciente produz um sentido de perfil, de clareza das coisas. É exatamente isto que a consciência reflexiva fará com seus conhecimentos. A partir da hora em que você sabe que sabe, você efetivamente sabe. E saber que sabe é também saber quando não sabe.A proclamação genérica e vaga de ignorância é apenas uma vaidade intertida, mas o repertório organizado e crítico da nossa ignorância é um conhecimento, um conhecimento efetivo e importantíssimo. O desenho da ignorância, o perfil da ignorância, é um primeiro saber. E este perfil da ignorância se faz exatamente aplicando a grade dos graus de certeza. Se você consegue mapear, de um lado, a sua ignorância, e de outro, o valor possível de seus conhecimentos adquiridos, você terá inaugurado as bases de uma vida intelectual brilhante. Percebe agora qual a diferença entre um ensino voltado às faculdades cognitivas ( memória, imaginação, raciocínio etc. ) e um ensino voltado à inteligência? O que interessa aqui não é tanto o conhecimento, mas a consciência do conhecimento. Consciência, cum + scientia, é isto: saber que sabe o que sabe.

Uma consciência desperta não torna somente mais claros os conhecimentos que você já tem, mas o deixa preparado e como que potencializado para a aquisição de novos conhecimentos com muito mais aproveitamento do que antes; e então, para você poder dominar todo um novo setor da ciência, da história, da arte, às vezes não precisará nada mais do que ter ajuda para chegar aos primeiros princípios daquela área, o resto você descobrirá sozinho, porque terá conquistado o senso, o “faro” da unidade do conhecimento, e aprenderá muitas coisas de uma maneira mais ou menos sintética e simultânea, onde antes precisava de explicações detalhadas, repetições, exercícios, etc. É claro que essa maior integração da consciência, com o consequente aumento da capacidade de aprendizado, não se dá só na área dos estudos formais, mas em todas as áreas da vida, que aos poucos irão revelando suas interconexões. O benefício que isto traz não é só de ordem intelectual, mas se estende a toda a psique, a toda a personalidade.

Partindo do princípio de que todo mundo já sabe alguma coisa — sabe por viver, sabe porque tem memória, porque assistiu a acontecimentos, porque leu algum livro, porque ouviu falar, porque viu televisão, porque leu jornal, e enfim alguma coisa sempre se sabe —, então resta transformar esse saber em autoconsciência. Se o saber efetivo, se a inteligência se identifica fundamentalmente com a autoconsciência, o saber que você possui só se tornará um saber inteligente se for um saber autoconsciente, ou seja, se você passar todo este saber na peneira das seguintes perguntas:

  1. Até que ponto sei isto realmente?
  2. Quanto vale este conhecimento?
  3. O que faltaria para que ele fosse completo?

Ou seja, começar fazendo uma revisão das coisas que você acredita que sabe. Vale ressaltar que estes conhecimentos não se referem apenas às coisas estudadas formalmente através de canais oficiais de educação, mas sobretudo àqueles estudos, experiências e pensamentos que sedimentaram em você determinadas convicções.Outro ponto importante a ressaltar é o fato de que quando você dedica, por obrigação profissional ou escolar não assumida interiormente mas somente imposta de fora, uma atenção maior a tópicos que não lhe interessam profundamente, e não chega a desenvolver um interesse autêntico, mas trata do assunto com uma atenção periférica e como que ligada no piloto automático, você prejudica sua inteligência e se afasta quase que necessariamente da verdade. Porque, se a inteligência é capacidade de captar a verdade e de captá-la numa situação verdadeira, o simples fato de você dedicar ao assunto uma atenção falsa já é um impedimento ao conhecimento da verdade, é um vício que não o ajuda em nada a desenvolver a inteligência.Só podemos usar a inteligência com cem por cento da sua força onde houver cem por cento de interesse, e infelizmente o interesse não depende inteiramente de nós, porque o interesse que temos por este ou aquele problema pode provir de uma situação externa, de uma casualidade, de uma contingência, de um temor, de um desejo fortuito, e assim por diante. Isto quer dizer também que o processo do desenvolvimento da inteligência não pode seguir um programa predeterminado como no estudo de uma disciplina em particular. Ele tem de ir e vir, mais ou menos ao sabor do fluxo dos interesses reais do momento e da possibilidade de desenvolver novos interesses.

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