Apostilas

Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula IV (Parte II)

Apostila do Seminário de Filosofia

QUARTA AULA

5 de abril de 1994

Transcrição de:
Heloísa Madeira,
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro.

2a parte

O mito da lógica nas interpretações de Aristóteles

É à luz desta observação que vamos ver que parece ter havido um enorme equívoco na interpretação de Aristóteles ao longo de muitos séculos. Porque sempre se considerou que a dialética, sendo uma ciência do raciocínio meramente provável, seria inferior à lógica, que tem exatidão matemática. E que, portanto, quando Aristóteles criou a lógica, superou e abandonou a dialética. Existe um grande historiador da filosofia grega – Solmsen – que é um dos grandes responsáveis pela consolidação desta interpretação. Segundo ele, a analítica anula a tópica (dialética). Como numa evolução, Aristóteles teria vindo por um caminho e chegado a um fim – primeiro foi professor de retórica; depois, desenvolveu a dialética, e finalmente se dedicou à lógica. Solmsen partiu também da premissa de que a ordem temporal deve representar uma ordem hierárquica. Aristóteles teria concedido atenção, no fim, à coisa mais importante, num sentido evolutivo. Ao que há uma objeção feita por um dos grandes intérpretes de Aristóteles, que é Éric Weil. Este escreveu pouco – não chegou a dez livros. Era um judeu alemão que quando viu o avanço do nazismo, fugiu da Alemanha para a França, adotou a língua francesa e nunca mais escreveu uma única palavra em alemão. Para o meu gosto, é o maior filósofo francês do século. Éric Weil faz uma observação mortal. Diz ele: “Se a lógica é tão mais importante que a dialética, por que Aristóteles nunca fez uma demonstração lógica de nenhuma tese?” Nenhum livro de Aristóteles é escrito logicamente, todos dialeticamente. Se Aristóteles descobriu uma coisa tão importante assim, por que nunca a usou? Depois de ter descoberto a técnica mais perfeita, por que continua usando a imperfeita até morrer?

Um exemplo de demonstração lógica se encontra na Ética de Spinoza – assenta as premissas e vai tirando conclusões, como numa demonstração matemática. Outro é o livro de Wittgenstein. Tractatus Logico- Philosophicus – coloca as premissas, axiomas, e continua em linha reta a dedução lógica. Aristóteles nunca faz isto, em momento algum. Ora, tendo descoberto uma técnica mais profunda, mais exata que a anterior, como iria ele resistir à tentação de usar a nova? Hoje em dia, qualquer garoto que aprenda um programa de computador mais sofisticado que o anterior, vai logo testar o novo. E Aristóteles nunca usou a nova técnica em nenhum dos textos conhecidos. Acontece, que dos textos conhecidos, acredita-se que temos – neste um terço que sobrou de sua obra – aproximadamente setenta por cento das obras filosóficas importantes de Aristóteles. Existem sérias razões filológicas para crer que, das obras filosoficamente decisivas, sobrou quase tudo. Pode ter faltado uma coisinha ou outra. De tudo o que se encontrou de Aristóteles depois de Andrônico, nada se achou que pudesse mudar gravemente as bases conhecidas do sistema aristotélico. Até no século passado se encontrou um novo texto. Uma obra conhecida como “A constituição de Atenas”, hoje incluída nas obras completas. Isto foi achado em 1890. É importante porque é de Aristóteles; mas trata só da constituição de Atenas, não é nada decisivo filosoficamente. Claro que se você achar uma receita de cozinha assinada “Aristóteles”, é um documento histórico, mas não vai abalar a interpretação do sistema. Historicamente importante é uma coisa, filosoficamente importante é outra. Não riam quando falo de receitas de cozinha, porque Aristóteles escreveu até um “Tratado de Economia Doméstica” – não há assunto que esteja para ele fora do mundo do conhecimento.

Então, os livros de lógica abarcaram as categorias, a interpretação, os tópicos, as duas analíticas. Existe um outro livrinho que se chama Das Refutações Sofísticas, que pode ser considerado ou como livro independente ou como capítulo final dos Tópicos. É mais fácil incluí-lo aí – menos um nome para decorar. É uma aplicação dos critérios dialéticos à refutação de determinadas argumentações sofísticas – ou erísticas. Erístico é um argumento que você lança para fins de combate. Não é argumento sério, a ele você recorre no calor da polêmica, só para criar dificuldades para o adversário. Uma discussão política na maior parte dos casos não chega a ser retórica, é apenas erística.

As obras teoréticas: Física e Metafísica

Depois das obras lógicas, vem a série das ciências teoréticas (aquelas cuja finalidade é tratar do real e dizer alguma coisa a seu respeito). A obra teorética esgota sua finalidade quando consegue pronunciar uma proposição ou juízo no sentido de que algo é alguma coisa ou é outra coisa. Responde à pergunta “o que é?” A lógica não pode responder a esta pergunta de jeito nenhum. Ela não trata de nada, não tem assunto. Mostra apenas os esquemas de pensamento possíveis. A série das obras lógicas pega o conjunto de tipos esquemáticos de raciocínios que fazemos sobre a realidade e os considera independentemente da realidade a respeito da qual eles versam. Portanto, a lógica só existe como ciência distinta por uma distinção mental, não real.

Vamos pegar uma ciência real qualquer – a física, por exemplo. Física para Aristóteles é a ciência da natureza e trata de algo real – o cosmos existente, que chega a nós através dos sentidos. Em seguida, você vê como raciocinamos – ou deveríamos raciocinar – a respeito da natureza, e isola o raciocínio de seu assunto. Ora, este isolamento só é feito por um truque mental, não real. Portanto, a lógica não tem um objeto real, tem apenas um objeto formal, definido idealmente. E isto é que a diferencia da ciência teorética. Ela não é uma ciência teorética porque theoréin quer dizer olhar, contemplar. A lógica não tem um objeto para o qual possa olhar. Seu objeto é totalmente inventado. A separação entre o raciocínio e seu conteúdo é, por sua vez, uma distinção simplesmente lógica, não uma distinção real.

Seguem-se os tratados de física. Tal como Aristóteles e o mundo grego a entendem, a física é o mundo dos fenômenos – o mundo que se apresenta diante de nós, considerado na sua totalidade. O sentido moderno da palavra “física” é muito mais restrito. Aquilo que hoje chamaríamos de biologia, e também a química se tivesse ocorrido uma química a Aristóteles, entrariam nos tratados de física. A física se divide basicamente em duas partes: primeiro, aquilo que se refere aos processos cósmicos; segundo, o que se refere aos seres vivos. Mais tarde, receberam os nomes de cosmologia e biologia, respectivamente.

A biologia, por sua vez, não se destaca do que hoje chamamos psicologia. Aristóteles jamais conceberia um estudo da psique que não tivesse uma raiz no corpo vivente. A alma é para ele como se fosse um aperfeiçoamento, um escalão superior da vida e não um fenômeno distinto. Vamos ver que esta inseparabilidade dos fenômenos psíquicos e orgânicos é uma das intuições centrais de Aristóteles, e que o tornará um filósofo particularmente apto a ser aceito no mundo cristão, porque o cristianismo é a religião da encarnação, da união inseparável entre alma e corpo.

Em seguida, deveriam vir os objetos matemáticos. E aí vemos que a divisão das ciências feita por Andrônico não coincide inteiramente com a divisão dos textos. Aristóteles não escreveu uma linha sobre matemática. E na divisão das ciências, a ordem seria esta: em primeiro lugar, os objetos físicos; em segundo, os matemáticos; em terceiro, a metafísica.

Aqui precisamos fazer um parêntese no seguinte sentido: quando dizemos que um objeto é um “objeto da natureza”, nós o estamos distinguindo de outros objetos possíveis. Entendemos que um triângulo não existe na natureza. E também entendemos que um tatu não existe matematicamente. Porém, a diferença entre o triângulo e o tatu é uma diferença de plano ou modo de existência. Porque na verdade os dois são existentes, os dois são reais. Mas estes objetos – o tatu e o triângulo – do ponto de vista de Aristóteles, são ambos abstratos, embora sejam reais. Abstratos porque o geométrico e o biológico são aspectos da realidade; aspectos que, na verdade, coexistem, mas que nós separamos por maior facilidade de examiná-los.

Quando dizemos que 2 + 2 = 4, isto é um fato bruto, ao qual porém só chegamos através de raciocínio. Mas também entendemos que não fomos nós que fizemos dar 4, entendemos que este resultado nos é imposto pela estrutura mesma dos números. Entendemos que as propriedades das figuras geométricas também nos são impostas. Entendemos que se dividirmos um quadrado pela diagonal, vamos encontrar dois triângulos isósceles e quantas vezes fizermos esta operação, encontraremos o mesmo resultado. Isto nos é imposto de maneira dura e implacável. Esta resistência, esta consistência própria dos objetos matemáticos faz com que não somente Aristóteles, mas os gregos em geral os considerem reais. No entanto, o tipo de realidade deles não é o mesmo que tem um tatu. O tatu pode ser visto – ele nos é imposto aos sentidos. A divisão do quadrado em dois triângulos isósceles não nos é imposta aos sentidos, mas tão logo raciocinamos, percebemos que isto não é montado por nós, mas também nos é imposto. As duas coisas são reais. Triângulos, quadrados, números e suas propriedades – existem efetivamente, são relações perfeitamente reais. Tatus e elefantes também são reais. Se decidimos separar uns dos outros, é porque, além de sabermos que são reais, introduzimos uma divisão na realidade, de acordo com um interesse que é nosso. Decidimos encarar alguns como fenômenos naturais, e outros como não naturais. Ou seja, o tatu e o triângulo se distinguem não pela sua realidade, mas por uma segunda qualidade que abre esta divisão no “natural” e no “não natural”. É por isso que Aristóteles os considera abstratos. Só são percebidos como distintos mediante uma abstração mental que separa o natural do não natural, embora ambos sejam igualmente reais.

O que é mais real? 2 + 2 = 4, isto é real. Não, você diz, real é o tatu que eu vejo com os olhos. Mas o tatu antes de nascer não existia e quando morrer não vai existir mais. Então ele é menos real que os números. O que eles são não diz respeito à sua maior ou menor realidade. Ambos são reais. Só que o sentido da palavra realidade, aí, se divide. Um é real de um jeito, outro de outro. Mas na realidade eles não são distintos, não podemos graduar a realidade em função deles. Representam distinções dentro da mesma realidade.

Ora, somente a realidade como tal e independentemente das suas distinções é que pode ser considerada concreta e real objetivamente. E isto é que é o conceito de Aristóteles do ser enquanto ser, a realidade enquanto tal. Para entender mais claramente isto, você pode imaginar o “tatu voador”. Ele não faz parte da realidade. E a conta 2 + 2 = 5 também não faz parte da realidade. Mas também entendemos que é mais fácil haver um tatu voador do que 2 + 2 dar 5. Se a evolução animal tivesse tomado um outro rumo, poderia haver um tatu voador, ou talvez o tatu pudesse falar sânscrito – nada impede. A impossibilidade do tatu voador é relativa e condicionada a determinadas condições do universo físico. Num outro planeta pode ser que existam tatus voadores, ou tatus filólogos. No filme “Guerra nas Estrelas” há um tatu filósofo – o guru do Luke Skywalker. Estas coisas não são inconcebíveis. Mas é inconcebível que 2 + 2 dêem 5. O tatu filólogo ou o tatu voador são idéias com as quais os nossos sentidos se revoltam. Mas somente os sentidos – a inteligência não. Ela admite esta hipótese, embora como remotíssima. Agora, existe a hipótese remotíssima de que 2 + 2 dê 5? Existe a hipótese de que em algum outro planeta 2 + 2 possam dar 5? Existe a hipótese de que em outro universo 2 + 2 dê 5? É inconcebível e seria auto-contraditório. Então você entende que há gradações de impossibilidade. O estudo do real só se esclarece quando se confronta o real com o irreal, e você vê estas distintas gradações de irrealidade. Este estudo faz parte de alguma ciência? Não, nenhuma ciência pode estudar isto, porque toda ciência já subentende estas distinções. Então Aristóteles se viu na contingência de ter de inventar outra ciência. Todas as ciências se fundavam em distinções deste tipo – real, irreal, possível, contingente, necessário. Todas elas se baseavam nisto e estas distinções não eram estudadas por ciência alguma. Este estudo das condições que definem o real, que o delimitam, que o separam do irreal, e também o possível do impossível, é o que se chama ontologia ou metafísica, ou filosofia primeira, ou como Aristóteles também a chamava, teologia. Por um curioso paradoxo, somente o objeto da metafísica é perfeitamente concreto, pois o real como tal não pode ser abstrato. Neste sentido é que triângulos e tatus são abstratos, em face da realidade como tal, do ser como tal.

As ciências práticas e técnicas

Em seguida vinham as ciências práticas que dizem respeito à ação humana, ou mais genericamente, à conduta humana, que Aristóteles dividia em duas partes: conduta do indivíduo enquanto tal e a conduta dele enquanto membro de uma sociedade em particular. Esta a distinção entre a ética (ou moral) e a política. Entre as ciências práticas Aristóteles inclui a economia, seja doméstica, seja política: a economia do cidadão e a da polis.

E finalmente as ciências que chamaríamos artísticas ou técnicas ou poéticas ou poiêticas. Estas estudam, não a conduta humana, mas o meio de produzir alguma coisa, algum objeto. Para entender a diferença entre ciências práticas e ciências poiêticas, é preciso entender a diferença entre ação imanente e ação transitiva. A primeira é a que esgota sua finalidade no próprio sujeito que faz a ação; a segunda, a que se define pelo resultado que ela produz num objeto. Por exemplo, respirar é típica ação imanente, quem respira é você mesmo e quem sofre o efeito da respiração é você mesmo. Pintar é uma ação transitiva. Se a pintura se esgotasse no gesto do pintor, independentemente do quadro, não a poderíamos chamar pintura de maneira alguma. Toda produção, todas as artes produtivas, pertencem à ação transitiva.

Nesta última divisão, Andrônico colocou a Poética, que ensina a fazer obras literárias e a Retórica, que ensina a fazer discursos para o foro, os tribunais, as assembléias populares. O discurso, peça escrita, é um objeto, embora um pouco abstrato. Ao passo que a conduta pessoal ou política não é uma coisa, mas uma ação. As ciências práticas visam à ação humana e as ciências poéticas visam ao objeto da produção humana. Esta divisão das obras está rigorosamente de acordo com a divisão das ciências feita por Aristóteles, com um senão que é aquele das matemáticas. Falta um tratado consagrado às matemáticas – coisa que Aristóteles não fez em parte por ojeriza pessoal: ele devia estar farto de vinte anos de estudos matemáticos na Academia. Na Academia só se falava em matemática, e o que irritava muito a Aristóteles era a tendência platônica de tirar conclusões filosóficas direto da matemática. As pessoas na Academia achavam que triângulos existiam como tatus… Aristóteles tem uma mente muito concretista, orgânica. A materialização de conceitos abstratos é muito irritante para ele.

Introdução ao texto de Tertuliano

A propósito do texto que vamos ler na próxima aula: Tertuliano é um dos apologetas cristãos. Temos aqui mais uma imagem do que pensaram sobre Aristóteles. O ano é 213. O texto está no livro de Tertuliano, De Anima. Não fala de Aristóteles em parte alguma. Dificilmente encontraremos alguma menção exclusiva a Aristóteles em todos os primeiros padres apologistas cristãos. Não houve uma discussão com Aristóteles, houve com a Academia platônica, o que incluía Aristóteles. Nos escritos dos apologetas, praticamente todos os filósofos eram englobados neste conceito, com exceção dos que pertencessem declaradamente a uma escola adversária. Como este não é o caso de Aristóteles, ele fica englobado dentro da Academia. E o curioso é que as objeções lançadas por Tertuliano contra a Academia são objeções aristotélicas, que Aristóteles poderia subscrever em gênero, número e grau. O texto é do ano 200 – seiscentos anos depois de Aristóteles e 263 anos após a edição dos textos por Andrônico. E o autor do texto, discutindo com a Academia e lançando contra ela objeções de conteúdo aristotélico, não tem disto a menor suspeita e imagina estar discutindo com a Academia como um todo. Isto prova que nos primeiros anos do mundo europeu e no final da civilização grega, a Aristóteles se aplica a famosa frase de Stanislaw Ponte Preta: “Sua ausência preencheu uma lacuna”. É uma ausência tão notável que ocupa um espaço. Uma espécie de Aristóteles está subentendido, pairando no ar. Não houve uma consciência de que havia uma obra aristotélica e que seria necessário se posicionar perante ela. Tanto que este indivíduo, discutindo com a Academia, se dirige coletivamente aos seus membros, sem ter a menor idéia de que um deles, Aristóteles, já havia dito coisas do mesmo teor. Também selecionei este texto porque ele mostra uma espécie de sentido da organicidade, da integridade do real, que é profundamente aristotélica. Só que Tertuliano não conhecia Aristóteles ou, se conhecia, não lhe tinha dado importância. Então, de onde tirou este espírito da organicidade do real? Ele obtém isto de uma inspiração cristã. O cristianismo inaugura uma nova forma de abordagem do real, que enfatiza também este sentido da organicidade, costurando os dois mundos que o platonismo havia separado, na pessoa do Cristo. O cristianismo não deve nada a Aristóteles, vem de uma fonte completamente diferente – a fonte judaica. Mas como o cristianismo tem esta idéia da Encarnação, isto é, de que Deus nasceu como gente, já não é possível considerar que existem dois mundos, um profano, aqui, outro, divino, lá; ou um semi-real, aqui, outro real lá para cima. Se este aqui é irreal, dizer que Deus virou homem é o mesmo que dizer que Deus sumiu, entrou na ilusão. Se existe uma gradação de setores da realidade ou de planos da realidade, nenhum deles pode ser considerado mais real do que o outro. É o que mais tarde estará no verso de um poeta do século XX, aliás ateu e comunista, Paul Éluard: “Há outros mundos, mas estão neste”. É tudo um mundo só. Este senso profundo da unidade do real está de fato subentendido, mas muito ocultamente e em germe, no próprio platonismo. Este só pode ter validade se a distinção dos dois mundos emana de uma unidade prévia; se a distinção for absolutizada, vira demência. O senso da unidade e organicidade do real é a inspiração aristotélica mais característica e ela aparece neste Tertuliano que pega este mesmo senso, não de fonte aristotélica, mas de uma fonte judaico-cristã.

Pergunta: — Mas o cristianismo não enfatiza a separação entre mente e corpo? Pelo menos é o que todo mundo diz.

— O cristianismo é uma das doutrinas a respeito das quais circulam mais mentiras. O combate ao cristianismo no Ocidente foi muito intenso, é muito intenso ainda. Como acontece com quaisquer tradições espirituais, em volta das quais sempre existem incontáveis grupos interessados não em discutir as doutrinas cara-a-cara, mas em deformá-las, para lhes atribuir absurdos. No cristianismo a doutrina da separação entre corpo e alma é anátema. Esta separação que os inimigos atuais do cristianismo lhe atribuem foi proposta por inimigos antigos, e o cristianismo paga assim pelo mal que lhe fizeram.

Um dos grandes segredos da história do Ocidente é a gnose. Quem entender isto, entenderá em conseqüência tanta, tanta coisa! Entre os vários inimigos do cristianismo, desde o começo, há um setor chamado gnose. Ela defende uma série de doutrinas que, quando expostas à luz do dia, se mostram realmente escandalosas. Em parte sabendo disto, ela mesma atribui suas doutrinas ao adversário.

Estudando a evolução da doutrina cristã, você verá que ela é realmente muito diferente nos textos, nas falas dos papas, em toda a realidade na evolução do dogma, e na versão que dela os intelectuais anticristãos apresentam ao público. Esta separação de alma e corpo é anátema. Tertuliano é uma das primeiras grandes expressões de doutrina cristã, e ele se bate precisamente por este ponto.

Do mesmo modo que existe uma história de dois mil anos da Igreja, existe uma história de dois mil anos da gnose. A Igreja é uma entidade única, cuja história se acompanha facilmente graças aos textos básicos reunidos numa coleção chamada “Patrística”. A grega tem mais ou menos 400 volumes e a latina 300, de mil páginas cada uma, está tudo lá documentado. Quem quer saber qual é a doutrina da Igreja vai lá e lê. Como ninguém o faz, pode-se atribuir qualquer coisa ao cristianismo. O cristianismo não é uma religião feita para ser compreendida por pessoas de baixa qualificação intelectual. É difícil. Então, é muito fácil entendê-lo pela versão popular inventada por intelectuais anticristãos e combatê-lo por aí mesmo. Quantos teóricos não falam que o cristianismo separa a alma do corpo, quando na verdade é o contrário. Isto é o mesmo que atribuir ao cristianismo a idéia de que Deus não existe.

As pessoas formam uma idéia do cristianismo a partir do que é divulgado por não-cristãos. Para saber o que é uma religião, deve-se perguntar a quem a conhece e a pratica, não ao seu adversário. Para saber sobre o judaísmo pergunta-se a um rabino, não a um nazista. Do mesmo modo, para saber o que é o comunismo não vou perguntar à CIA, tenho de ler Marx, Lênin etc. Só o cristianismo é que não merece este privilégio. As pessoas divulgam o cristianismo já propositadamente distorcido e tornado absurdo para ser mais fácil combatê-lo. As grandes obras de doutrina cristã ninguém lê.

Qualquer idéia tem o direito de ser defendida por ela mesma. Não se concede este privilégio ao cristianismo. As pessoas não têm idéia do que é a guerra pró e contra o cristianismo há dois mil anos. É uma coisa terrível. Ao mesmo tempo, não se pode identificar o cristianismo com a horda de padres e pastores que podem falar o que lhes dá na cabeça. O que a Igreja em si pensa está nas sentenças dos papas e nos chamados “doutores da Igreja”, um grupo seleto dentre os santos, cuja fala foi incorporada como parte do dogma – como por exemplo Sto Tomás de Aquino, Sta. Teresa de Ávila ou Sto. Afonso de Ligório. Não é o que qualquer pensador cristão fala que vale. Somente aquilo é pensamento da Igreja. Agora, um certo estado de espírito difuso que as pessoas chamam de cristianismo nada tem a ver com isto.

Aristóteles foi incorporado mais tarde ao cristianismo por Sto. Tomás de Aquino precisamente por aqui; este era o ponto de união: a unidade entre corpo e alma. Não havia uma contradição muito profunda entre o aristotelismo e o dogma cristão da encarnação. Ao passo que no platonismo essa conciliação já ficava mais difícil, o que não quer dizer que seja impossível.

Onde aparece uma tradição espiritual, uma revelação, uma eclosão de inteligência, surge necessariamente em seguida uma sombra e às vezes esta sombra tenta agir por conta própria, como se o rabo abanasse o cachorro. Do mesmo modo que existe um esforço humano em direção à verdade, existe um esforço no sentido contrário, no sentido do erro. A paixão pelo erro é incoercível, e certas pessoas, quando ouvem falar a verdade, isto lhes provoca raiva. Por exemplo, na Índia você tem o hinduísmo, a tradição vedântica, uma coisa maravilhosa – só que lá está cheio também de Rajneeshs, sociedades teosóficas etc, etc. – são parasitas. Do mesmo modo, você tem a Escola Platônica, um florescimento de inteligência, e logo em seguida, epicurismo, socráticos menores, um monte de parasitas que não entendem aquilo por falta de qualificação intelectual; então pegam um pedacinho da doutrina e o deformam. Isto é uma tendência humana – o homem é um bicho fraco e tende incoercivelmente ao erro.

Do mesmo modo, em relação ao cristianismo. É mais fácil inventar um cristianismo do que procurar o que realmente existe. Por exemplo, para falar de repressão sexual – “esta nossa velha desconhecida” – e provar que o cristianismo só tem repressão sexual, essa dona Marilena Chauí pega a estátua de Santa Teresa, por Bernini, e mostra que o êxtase de Santa Teresa, na estátua de Bernini, tem a fisionomia de um orgasmo corporal; de onde ela conclui que os êxtases místicos de Santa Teresa eram meros orgasmos disfarçados por muita repressão. Ora, em primeiro lugar, Bernini, que fez a estátua, nunca viu Santa Teresa. Em segundo lugar, como seria possível representar materialmente um êxtase espiritual senão sob a feição de um orgasmo físico? Agora, dona Marilena começa por atribuir à santa as características da estátua – o que é inteiramente absurdo. No século passado, um grande historiador – Michelet – pegou um quadro de Franz Hals e descreveu a psicologia do personagem — René Descartes — pelo quadro -, só que que Hals nunca tinha visto Descartes mais gordo. O caso ficou célebre como rateada de um grande historiador. Dona Marilena faz a mesma coisa, só que movida por uma intenção de “desmascarar”, e na verdade ela só se desmascara a si mesma. A necessidade que certas pessoas têm de depreciar os que lhes são espiritualmente superiores é o que se chama inveja espiritual, e é um dos sentimentos mais baixos que podem existir. Há pessoas que não gostam de Cristianismo porque um padre as suspendeu da aula ou lhes botou medo da masturbação. E fica aquela raiva de padre, que depois, travestindo-se de filosofia, é projetada sobre dois mil anos de Cristianismo. Mas não é filosofia, é rancor pessoal mesquinho. É querer medir a civilização com o tamanho das suas dorezinhas pessoais. Não se pode fazer isto. E condenar o Cristianismo é praticamente condenar a humanidade. Condenar qualquer destas grandes tradições – Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Budismo – é condenar a humanidade. É preciso confiar um pouco no bom senso da espécie humana.

Muitas religiões nos parecem esquisitas quando vistas de fora, mas na realidade somos nós que não as estamos entendendo. O sujeito diz: “Olha, o cristianismo condenou o corpo humano”. Se fizeram isto, são uns animais. Mas vamos ver se fizeram mesmo. Não, não faziam; mas seu adversário, a escola gnóstica, fazia. Baseados no preceito de que o mundo foi criado não por Deus, mas por um deus rebelde que violando instruções do Todo Poderoso criou o mundo, que é portanto necessariamente mau, os gnósticos concluiam que a nós cabe destruir esse mundo mau. Para isto existem dois meios – ou pelo ascetismo total, ou pela gandaia cósmica. Existem vários evangelhos gnósticos. A escola tem uma característica. Não há uma palavra que ela use que não tenha sentido ambíguo. Por exemplo – a curtição do “todo”. Existem duas maneiras de perverter o sentido do real. Uma é isolando uma parte; outra, empastelando tudo no “todo”. Então, de um lado temos o Panteísmo. A idéia de que tudo é Deus, sem distinção, é gnóstica. E a idéia da separação absoluta também é gnóstica. Porque no organismo humano, na vida biológica, na vida real, não existe separação absoluta nem indistinção absoluta. Tudo funciona harmoniosamente segundo um jogo de todo e parte, no qual os dois são inseparáveis. E é este o sentido profundo do aristotelismo. E é o que lhe permitirá mais tarde ser harmonizado com o Cristianismo, como poderia ser harmonizado com o hinduísmo, ou o judaísmo ou qualquer das grandes tradições, porque isto é a linha mestra do pensamento humano, que no fundo é o nosso senso-comum, o senso do homem são. Quando você faz a idealização do “todo cósmico”, da integração na consciência cósmica – isto só serve para o indivíduo perder o senso da sua distinção, da sua limitação. Se por outro lado você enfatiza a total separação – coloca um Deus inatingível, numa esfera tão remota que não dá para saber o que é -, isto também deixa você meio maluco. O esforço das grandes tradições é para manter o verdadeiro equilíbrio orgânico, o verdadeiro equilíbrio ecológico da alma. E esta é a grande contribuição aristotélica.

Este texto de Tertuliano documenta isto que a maioria das pessoas ignora: que a unidade indissolúvel de corpo e alma é um dogma cristão. E o que quer que sirva ou para cortar esta distinção ou para empastelar uma coisa na outra, não é cristão. Nem judaico ou islâmico. É gnostico. Estas questões são muito graves. Mas quando se estuda filosofia é para estudar questões graves, atuais e urgentes, não uma coisa remota e boba que aconteceu na Grécia. É para estudar as coisas mais fundamentais da nossa decisão nesta vida. Aqui e agora. Importa muito para a condução da nossa vida termos uma idéia exata do que é dimensão corporal, espiritual, anímica no homem. O unir e o distinguir são as operações fundamentais da razão humana. O isolar e o empastelar são as duas operações fundamentais da ignorância, a qual também é organizada e sistêmica a seu modo. Existem sistemas inteiros que são feitos só para isto. O epicurismo, por exemplo, é um sistema premeditado de confusões, não é um mero engano acidental. O engano, a partir de certo ponto, se torna maldade. Do mesmo modo que existe gente se empenhando há milênios para que a humanidade se coloque numa direção luminosa, inteligível, equilibrada, tem gente fazendo força no sentido contrário. Existem representantes das duas coisas. Estamos num momento dificílimo. O papa há dias falou: “Parece que junto com a nossa civilização está-se desenvolvendo uma civilização do Anticristo”. Agora é que ele descobriu? Isto já está aí há uns cinquenta anos. Mas os papas têm isto, sempre falam as coisas muito tarde. A Igreja Católica tem um aspecto paquidérmico. Leva tempo para se mexer, e por isto mesmo os inimigos acabam com ela. Mas todas as grandes religiões têm isto. São lentas. “Os moinhos dos deuses moem lentamente…” E o nosso grande poeta Murilo Mendes fala das “lentas sandálias do bem” e das “velozes hélices do mal”…

 

Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula IV (Parte I)

Apostila do Seminário de Filosofia

QUARTA AULA

5 de abril de 1994

Transcrição de:
Heloísa Madeira,
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro.

1a parte

A intuição básica de Aristóteles é a idéia de totalidade – a esta idéia voltaremos muitas vezes, aprofundando mais e reconstruindo tudo a partir dela, que me parece a chave da obra.

O item que se segue – a estrutura da obra de Aristóteles segundo a tradição – nos dá a divisão que vamos usar como ponto de partida hipotético. Não quer dizer que eu aceite esta divisão e que ache que a organização a ser compreendida na obra de Aristóteles seja exatamente esta. Apenas, como esta estrutura é tomada como ponto de referência desde o começo da era cristã, vamos usá-la como ponto de partida de nossas investigações. Esta divisão foi mencionada também de passagem na primeira aula. Vamos aprofundá-la ao longo das aulas, e assim iremos estruturando este tema em torno de alguns pólos de atração aos quais retornaremos de tempos em tempos. A questão da intuição básica é um deles, a da estrutura da obra é outro.

O primeiro editor da obra de Aristóteles, que foi Andrônico de Rodes, fez um divisão de suas obras partindo da idéia de que ela deveria acompanhar rigorosamente as divisões que Aristóteles estabelecia no sistema das ciências, de modo que a divisão em volumes seria um reflexo da divisão ideal ou da divisão lógica das ciências. Esta divisão feita por Andrônico, embora muito criticada ao longo dos tempos, jamais foi alterada. A crítica principal que se pode fazer a ela é que a divisão do sistema das ciências é sempre do tipo ideal. Quando você estrutura o sistema das ciências, está definindo como esta divisão deveria ser, ou seja, quais os setores da realidade que estas ciências deveriam idealmente abordar e quais os critérios da divisão ideal. Enquanto isto, a divisão dos textos em volumes é uma divisão real e acidental. Porque, uma vez definido o sistema das ciências, primeiro: daí não decorre que o sujeito deva escrever um livro sobre cada ciência que ele tenha citado na divisão; segundo: mesmo que idealmente o indivíduo queira escrever um volume para cada ciência, não está dito que ele vá conseguir fazê-lo. Pode, por exemplo, morrer antes. Ou seja, divisão de textos é uma divisão de objetos, enquanto divisão do sistema das ciências é uma divisão de conceitos. Nem sempre uma coisa terá de acompanhar a outra. No conjunto da história da filosofia é raro que um filósofo escreva um volume para cada ciência de acordo com a divisão exata que ele fez dos vários assuntos. Um exemplo disto seria Kant. Ele divide os assuntos e escreve um volume para cada um. Outro exemplo, os escolásticos. Depois que a Escolástica foi-se consolidando – não ainda em Santo Tomás de Aquino -, firmou-se com ela uma divisão ideal das ciências que por sua vez se projetou numa divisão em volumes. Na obra do cardeal Mercier, por exemplo, há um rigoroso paralelismo entre as divisões do sistema e a repartição dos volumes, mas acho que esse paralelismo só pode se realizar perfeitamente em obras que expõem uma filosofia velha e consagrada, não naquelas que expõem a doutrina que o filósofo está criando naquele mesmo momento. A filosofia em estado nascente tem geralmente uma exposição improvisada e assimétrica. O neotomismo é por isto mais organizado, editorialmente, do que o tomismo. Se você tomar os escolásticos menores, sobretudo os mais recentes, por exemplo, Maritain ou André Marc, verá que eles fazem um volume de lógica, um de psicologia, um de metafísica, acompanhando a divisão das ciências.

Nesta divisão feita por Andrônico, não fica muito claro se ele está falando de idealidades ou de realidades, de conceitos ou de textos efetivamente existentes. O pior de tudo é que, se só havia sobrado, com as perdas, um terço da obra aristotélica, como este terço poderia acompanhar a divisão global do sistema das ciências? Mesmo que Aristóteles tivesse escrito os volumes rigorosamente de acordo com as divisões do sistema, se dois terços da sua obra foram perdidos seria muito pouco provável que sobrasse exatamente um pouco de texto para cada divisão, sem deixar nenhuma em branco.

A divisão de Andrônico é a seguinte: primeiro, haveria um setor consagrado ao método de todas as ciências; é isto que Aristóteles chama de Organon, que quer dizer “instrumento”. Aí estão os modos de esquematizar o pensamento que são comuns a todas as ciências, a todos os setores do conhecimento, os tratados de lógica, em suma, os tratados que se referem aos discursos de modo geral. Para se orientar no mundo de Aristóteles, há uma série de nomes que é preciso decorar, assim como nomes de ruas, para você saber aonde está entrando.

As Categorias: o primeiro livro da série “Lógica”

A primeira obra do Organon chama-se “As Categorias”. Categorias são as formas básicas sob as quais a realidade chega até nós. Você percebe alguma coisa e esta coisa que você percebe é ou um ente real – como por exemplo percebo vocês neste momento -, ou então é uma qualidade – quando você percebe que está com calor; ou é uma relação entre as duas coisas – quando digo que a caneta está em cima da mesa; ou é uma ação que está sendo praticada por algum ente – o cachorro mordeu o menino. Todas as coisas que posso perceber no mundo estão colocadas numa destas categorias. Elas são a divisão máxima da realidade. E seriam, equivalentemente, os vários tipos de conceitos possíveis.

Voltando à frase “o cachorro mordeu o menino”- pergunto: mas isso é real? Sim. A ação do cachorro morder o menino é real, mas uma ação pressupõe um sujeito que a pratique. No entanto o sujeito não pressupunha esta ação. O cachorro poderia ser perfeitamente real sem morder menino algum. Para que ele mordesse o menino seria preciso que ele já fosse real antes disto e que o menino também o fosse. Entendemos assim que a realidade da ação não é do mesmo tipo que a realidade do ente, daquilo que Aristóteles denomina substância. No entanto, ela é real e não poderíamos reduzir a realidade da ação à do sujeito. Não basta que o cachorro exista para que ele morda. Entendemos que a ação tem um tipo de realidade própria que não se reduz à realidade do sujeito, embora não exista sem ela.

Estas várias modalidades de realidade é que são as categorias. Isto do ponto de vista ontológico. Do ponto de vista lógico, dizemos que elas são as espécies de conceitos que existem. Ou seja, conforme as várias espécies de realidade, teremos outros tantos tipos de conceitos. As Categorias são o primeiro livro da lógica.

Os predicáveis: definição, gênero, propriedade e acidente

O livro trata também de uma outra distinção. Quando faço uma afirmação qualquer a respeito de um ente, ela pode referir-se àquilo que o ente é essencialmente; a algo que ele fez acidentalmente, ou seja, que não faz parte da definição dele; e pode referir-se a algo que não é nem parte de sua essência, nem acidente.

Se digo: “O homem é um animal racional” – estou dando uma definição do homem. Porém se digo: “O homem é capaz de aprender aritmética” – isto não faz parte da definição, mas decorre dela logicamente. A isto chamamos propriedade, aquilo que é próprio do ente. Agora, se digo: “Fulano aprendeu aritmética” isto é um acidente, porque não é necessário que ele aprenda aritmética de fato. Toda e qualquer sentença que você diga a respeito de qualquer coisa vai cair numa destas modalidades.

Ou vai estar dando a definição do ser, ou vai estar dizendo um acidente ou uma propriedade dele, ou ainda pode estar dizendo o gênero a que ele pertence. Por exemplo: “o cachorro é um animal” não é uma definição de cachorro, nem um acidente nem uma propriedade. Digo apenas o gênero. A definição se faz indicando o gênero a que um ente pertence e qual a diferença que ele tem em relação aos outros do mesmo gênero. Vocês podem testar isto com quaisquer pensamentos e quaisquer frases. Isto continua sendo rigorosamente assim.

Esta divisão em quatro é a dos predicáveis. Por que este nome? Predicar quer dizer atribuir alguma coisa a algum ente. Tudo o que se afirma é uma predicação, é atribuir um predicado a um sujeito. Tudo o que se fala pode ser colocado ou na tábua das categorias ou na tábua dos quatro predicáveis. Quanto às categorias o próprio Aristóteles mostra dúvida quanto ao seu número. Numa lista dá sete, e outra dá oito, em outra dez. Isto significa que esta parte da teoria não está pronta. Quanto às sete categorias básicas não parece haver dúvida, porque ele as repete sempre. Além disso verifiquei que este número é o mesmo em todos os sistemas de categorias conhecidas nas outras lógicas do mundo (chinesa, hindu etc.).

Quando existe uma coincidência muito grande entre indivíduos de muitas civilizações sem contato entre si e com milênios de distância, muito provavelmente estes indivíduos estão captando estruturas básicas do pensamento humano ou da realidade mesma. Então podemos fechar negócio em torno das seguintes categorias: 1- substância, 2- quantidade, 3- qualidade, 4- relação, 5- ação, 6- paixão, 7- espaço/tempo.

O segundo livro da série da lógica chama-se “Da Interpretação” ( Peri Hermeneias ). Quando Dante fala: “No meio do caminho desta vida, eu me encontrei por um selva escura, onde a correta via era perdida”, classifique isto nas categorias, se puder: de que Dante está falando? De um acidente, teoricamente. Nem todo mundo se encontra, em determinada etapa da vida, perdido em uma selva escura. Porém, num outro sentido,podemos dizer: isto é uma imagem de um processo essencial à vida humana, segundo Dante. A vida humana é perder-se do caminho reto, porque vivemos no tempo, entre os acidentes, e perdemos o sentido da nossa caminhada. E isto é um processo essencial à vida humana. Se é essencial, como pode ser um acidente?

Vemos que antes de classificar pelos predicáveis e pelas categorias é necessário interpretar a sentença. Conforme o sentido, a mesma sentença poderá equivaler a uma definição, a uma propriedade, um acontecimento etc.

Não podemos identificar a sentença gramaticalmente considerada, materialmente falada, com a proposição lógica correspondente. Por exemplo, se se trata de uma obra poética, a mesma sentença equivale a quatro, cinco, dez proposições lógicas. A interpretação correta da frase e de seu desdobramento nas proposições ou juízos lógicos formais é uma operação preliminar. É por isso que a gramática não funciona nem funcionaria jamais. Na gramática, o cachorro, por exemplo, é substantivo, mas o azul também é substantivo, embora às vezes também seja adjetivo. Ou seja, estes conceitos lógicos das categorias não correspondem rigorosamente aos conceitos gramaticais que depois foram forjados com base neles. Houve alguns espertinhos, a começar por um dos fundadores da lógica matemática – Rudolph Carnap – que dizem que as categorias de Aristóteles são apenas uma extrapolação das categorias gramaticais. Ele as teria tomado, dando-lhes um sentido lógico. Isto é pura ignorância, pois ninguém havia pensado em categorias gramaticais até então, não existia nenhuma gramática da língua grega e as primeiras especulações gramaticais dos gregos são do século I a.C., e baseadas em Aristóteles.

Carnap pertence à escola neopositivista. Para os neopositivistas, as categorias aristotélicas seriam apenas tipos de palavras, quando o que se deu foi o contrário: a gramática é que surge com base na lógica de Aristóteles. Surge, e já faz uma confusão medonha, porque evidentemente os tipos de palavras não correspondem a estes tipos de conceitos. Porque as palavras são apenas signos que indicam sons que por sua vez indica idéias. São representações indiretas de conceitos. A uma mesma palavra podem corresponder três, quatro, dez conceitos diferentes. É evidente que se temos sete tipos de conceitos, não vamos poder ter sete tipos de palavras. Assim como a um mesmo ser correspondem incontáveis maneiras de representá-lo. Você pode ser representado pelo seu nome, ou por uma fotografia ( num outro sentido da palavra representar ), e ainda em outro sentido, por um procurador, ou por um objeto de sua propriedade ( marcando um lugar etc. ). Entre o conceito e a palavra a relação é esta.

Nossos educadores, o Ministério da Educação, acham que o ensino do pensamento, o ensinar a raciocinar – incumbe aos professores de português. Ao ensinar a redigir, estariam ensinando a pensar. E é evidente que uma coisa nada tem a ver com a outra. Isto é admitir que ninguém pensa nada antes da escrever a primeira palavra. Existe um hiato de pelo menos sete anos entre aprender a pensar e aprender a escrever. E segundo lugar, os processos que estruturam a gramática não são processos lógicos. Uma gramática se forma por usos e acidentes. Se as pessoas decidem chamar gato de abóbora, ao fim de umas duas ou três gerações o gato fica abóbora definitivamente.

A gramática se faz empiricamente, isto é, ao sabor de fatos reais. E esperar que ela tenha uma estrutura lógica é como esperar que os resultados da loteria esportiva funcionem com um rigoroso padrão lógico repetitivo. As estruturas da gramática não são lógicas – são estruturas de sons e grafismos que são sedimentadas pelo uso, uso este que está submetido a milhões de influências casuais. Por exemplo, antes e depois do sujeito comprar televisão, sua linguagem não será a mesma. Se dois povos entram em contato mais estreito, o povo mais forte, mais antigo, mais civilizado, exercerá sobre o outro uma influência terrível. É o que acontece hoje com a língua inglesa que está comendo a nossa língua, não no sentido de exportar palavras, processo normal, mas no exportar estruturas de frases: estamos falando português com estrutura de frase inglesa. Isto é muito comum em jornais, televisão etc. Os brasileiros também começam a dar um valor semântico diferente às suas próprias palavras, similar ao valor semântico de palavras vagamente parecidas da língua inglesa. Isto é a estrutura mental de um povo sendo implantada sobre outro. O resultado disto será maior ou menor conforme o apego maior ou menor que cada população tenha aos seus costumes linguísticos anteriores.

É uma trama estabelecida pelo desenrolar dos fatos, e então não obedece a uma regra lógica, mas ao puro empirismo. O serviço da gramática consiste e descrever o estado da língua e cada momento, mais ou menos como ela se encontra. E por uma decisão de ordem estética, estabelecer certos usos como preferenciais. Mas é uma decisão estética. Quando dizemos que tal frase ou tal outra é errada, ela é errada em função de determinado padrão que num certo momento foi adotado, às vezes por uma conveniência sociológica, ou política. Quando uma província é mais adiantada do que as outras, a linguagem dela se torna padrão para que as pessoas possa entender-se, como aconteceu na Itália, quando o dialeto da província toscana foi adotado como língua italiana. O que chamamos língua italiana hoje é na verdade um dos dialetos, que se tornou dominante. Então o italiano aprende em casa o seu próprio dialeto e na escola o toscano. É um processo de unificação da língua. Isto não quer dizer que a língua toscana seja em si melhor do que as outras. Os processos de uniformização da língua obedece a fatores casuais. Hoje em dia no Brasil, a linguagem-padrão é a da Rede Globo. Podemos questionar a autoridade da Rede Globo em matéria gramatical, mas não podemos questionar o seu poder, e a gramática não é feita pela autoridade, ela é feita pelo poder. Quem fala mais alto acaba sendo imitado.

A tentativa de estruturar a gramática segundo conceitos rigorosamente lógicos leva a perversões. Um exemplo comum é a diferença que existe entre sujeito lógico e sujeito gramatical. Se digo: “João matou Pedro”, o sujeito é João. Agora digo: “Pedro foi morto por João”. O sujeito gramatical é Pedro, mas o sujeito lógico continua sendo João. Isto é para verem o abismo que existe entre lógica e gramática. E também deve dar para entender a que desastre deve levar a idéia de quem tem de ensinar a pensar é o professor de português.

Além de levar em conta as categorias e os predicáveis, para poder aplicar estes conceitos à classificação dos demais conceitos, é necessário que a frase seja interpretada e que da sentença gramatical considerada nós retiremos os juízos ou proposições formais. Se pegamos esta primeira sentença da Divina Comédia, ela é uma sentença só, mas poderá ter um ou mais sentidos que constituirão as suas proposições formais, que estão materialmente todas na mesma frase. Jamais confundir a sentença real com as proposições formais. A sentença pode ser ambígua, ter dois sentidos, duas proposições formais. É disto que trata o livro da interpretação.

A frase de Dante, conforme seja interpretada como acidental ou própria do destino humano, já tem duas proposições formais que teriam de ser analisadas separadamente. É próprio da linguagem poética corresponder a várias proposições formais possíveis e é por isso mesmo que ela é sintética. Se desmembrássemos, para cada sentença, uma proposição formal, teríamos uma linguagem logicalizada. Ora, nem a língua corrente do dia-a-dia. nem a língua literária, nem a de comunicação social ou jornalística ou da televisão – nada disto é linguagem logicalizada. Tudo isto é linguagem ambígua.

A diferença da linguagem poética é que ela é um tratamento técnico dado a esta linguagem ambígua. O poeta é ambíguo porque quer, porque quer fazer sentenças que contenham o máximo de proposições formais possíveis. O máximo de sentidos no mínimo de palavras – isto é a poesia. A linguagem do dia-a-dia não é ambígua por escolha; ela não consegue ser outra coisa. O poeta é ambíguo por suficiência, e nós por deficiência – mas há ambiguidade nos dois casos.

A terceira obra de lógica seria os “Tópicos”, que tratam da ciência da dialética, que leva este nome por tratar da confrontação de dois discursos simultâneos (dois ou mais). Segundo Aristóteles, a dialética é a arte de raciocinar onde não temos premissas firmes, ou seja, onde não conhecemos os princípios do assunto. Aí não temos base para raciocinar sobre os casos particulares. Imagine que você é Charles Darwin estudando a evolução animal. Você encontra o esqueleto de um determinado bicho e quer referi-lo a uma evolução. Você vai ter primeiro de situa-lo num certo momento, depois da espécie que o antecedeu e antes da que o sucedeu. Para isto você precisa ter a noção pronta da escala. Se você não tem a escala pronta ao menos como hipótese, não pode situar o bicho. É evidente que Charles Darwin não encontrou a doutrina da evolução pronta. Ele encontrava fatos biológicos, mas na hora de compreendê-los, lhe faltavam os princípios explicativos e mesmo os princípios classificatórios pelos quais pudesse situar cada fato. Então, como raciocinar? Tinha de fazer várias hipóteses. Por exemplo, você faz duas hipóteses a respeito do mesmo fato – encontra um determinado bicho e diz: “Isto aqui parece ser parente da lagartixa, mas por outro lado parece ser parente do hipopótamo”. É difícil ter acontecido isto a qualquer esqueleto real, mas suponhamos que você tivesse estas duas hipóteses. Quando Darwin associou o elefante ao cavalo, como o fez? À luz das aparências, não seria mais lógico procurar um parentesco com o rinoceronte, com alguma coisa mais parecida fisicamente? Por que ele achou o parentesco com o cavalo? Porque não usou o critério de aparência macroscópica, mas o da conformação dos ossos. Talvez, se tivesse encontrado outro critério, teria feito outras associações. Pela estrutura dos ossos, viu que se tratava de espécies contíguas ou parentes. Para cada um destes casos, ele tinha várias hipóteses possíveis. Ora, duas hipóteses contrárias se sustentam em duas séries contrárias de razões. Há argumentos a favor desta, que formam uma linha de raciocínio, e argumentos em favor daquela, que formam outra linha de raciocínio. Esta comparação é que se chama dialética. Quando você não tem princípios para explicar o caso determinado que você está averiguando, só lhe resta procurar estes princípios. E como encontrá-los? Seguindo as várias linhas de hipóteses contrárias, ao mesmo tempo. Não pode ser uma depois da outra. Porque cada hipótese é validada pelo confronto com a sua contrária. Entre duas hipóteses, uma parece mais válida. Então a que sobrou você compara com uma terceira e assim por diante. Por isso se chama dialética, porque é sempre uma operação dupla.

A arte da dialética serve, segundo Aristóteles, para três coisas:

1) Para investigações nas quais não existam ainda princípios científicos assentados.

2) Para o treinamento da mente. A dialética servirá ao longo de mais de mil anos como a prática escolar central do aprendizado de filosofia. Porque é pela dialética que aprendemos a confrontar as diversas possibilidades e deixar que elas se desenvolvam até que uma delas saia vencendo.

A importância escolar disto é incalculável. Se houvesse um treino dialético hoje em dia, a maior parte das idéias que estão em curso público desapareceriam, porque não suportam o mais leve exame dialético. Sustentam-se exclusivamente em argumentos retóricos. A argumentação retórica é baseada na verossimilhança, na impressão de veracidade. Quando discutimos retoricamente, temos uma crença e produzimos verossimilhança para sustentar esta crença. Produzimos exemplos em profusão. O exemplo é o tipo mais característico de argumento retórico. Exemplo não prova nada, mas dá verossimilhança; faz parecer verídico, dá vida ao assunto. Quando argumentamos mediante exemplos, estamos tentando tornar nosso raciocínio verossímil para quem nos ouve, tentando fazê-lo ver as coisas como as vemos. Se soubermos produzir exemplos vívidos, interessantes, o sujeito acaba vendo as coisas como queremos. Mas isto só serve para persuadi-lo, não serve para testar a veracidade do argumento. Então, como já foi explicado, a dialética serve para fazer uma triagem dos argumentos retóricos. Você confronta os vários “prós” e “contras” e desenvolve cada um de acordo com a melhor argumentação lógica possível, dando igual chance a todos os argumentos, para ver qual deles fica de pé no fim. Ou seja, na dialética você faz uma arbitragem, não toma partido. O argumento retórico é um advogado defendendo uma causa. O dialético é um juiz julgando a causa. Se houvesse este treinamento nas escolas de filosofia, política, ciências sociais etc, 99% das crenças iriam embora, porque elas não suportam o exame dialético. Nele devemos conferir igual chance aos dois argumentos. Se isto não é possível, entendemos também que não é possível uma decisão correta do assunto e que esta irá para o lado volitivo ou irracional. Se isto fosse levado em consideração não teríamos discussões como o confronto entre o capitalismo e o socialismo. O homem que defende o capitalismo, refere-se ao capitalismo como existe historicamente. O que defende o socialismo não se refere a nenhum socialismo histórico, que tenha acontecido em algum lugar, mas a um vago ideal futuro. Ora, o capitalismo também tem ideais – mas a discussão retórica compara os ideais de um com a realidade de outro, em vez de comparar ideais com ideais, realidades com realidades. Então é evidente que esta questão não pode ser resolvida. Se você compara os ideais de um com as realidades do outro, a discussão está viciada. Se você compara as suas qualidades com os meus defeitos, você sai ganhando automaticamente. Por outro lado, os defensores do socialismo – todos, sem exceção – hoje em dia já não podem fazer assim, porque temos uma experiência socialista de cem anos no mundo. Mas dizem que não é representativo, porque não corresponde ao seu ideal… Isto é o mesmo que julgar um indivíduo levando em conta somente os atos que correspondem aos seus ideais, e considerando como falsos todos aqueles que estão abaixo do ideal. Vejo que um sujeito é um bêbado, ms como tem o ideal de deixar de beber, tenho de apagar a realidade da sua bebedeira, e encará-lo como se ele não bebesse. Isto é o tipo da discussão viciada. Tenho um belíssimo livro que se chama Ideals and Realities of Islam, escrito por um homem por quem tenho o máximo respeito, Seyed Hossein Nasr, onde ele confronta civilizações tradicionais, particularmente a islâmica, com a moderna sociedade industrial, e chega à conclusão que a sociedade industrial é um horror e que as civilizações tradicionais é que são bonitas. Só que ele faz isto: compara os ideais islâmicos com as realidades do Ocidente, e nunca o contrário. O que é representativo do ocidente? A crise ecológica, esta sujeira toda, a alienação do trabalho. O que é característico do Islã? Os ideais maravilhosos que estão no Corão. Esta comparação não é possível, está viciada. Teria de comparar bens com bens e males com males; ideais com ideais e realidades com realidades.

Isto é uma regra dialética elementar. Quando você faz isto, é obrigado a engolir muitas coisas que retoricamente não desejaria. Toda esta revisão de ideais socialistas que existe hoje começou com a queda do muro de Berlim – ex post facto. Também fui socialista aos 20 anos, mas mudei sozinho muito antes que caísse o muro – por exame, confrontando. Levou quinze anos este processo; eu sei o trabalho que me deu. E as pessoas hoje mudam do dia para a noite, com a maior facilidade. Isto indica que não querem chegar a uma conclusão real. A solução não é fácil, do tipo pró ou contra. A dialética tem, então, entre outros usos, esta utilidade de formar a mente para o exame objetivo das questões.

3) A terceira utilidade assinalada por Aristóteles é a utilidade científica. Quando você está discutindo um assunto cujos princípios você desconhece, tem de remontar das questões até os princípios. Como se faz isto? Pela discussão dialética. O confronto crítico das várias possibilidades acaba fechando as alternativas até que num certo momento você tem uma espécie de intelecção ou intuição dos princípios que governam aquele assunto. Pode ser uma falsa intuição. Porém é claro que onde você não conhece os princípios, não tem as premissas, você não pode fazer um raciocínio inteiramente lógico. Vai partir do que? Todo raciocínio lógico parte de uma premissa. Se não tem premissa você tem de fazer uma espécie de raciocínio lógico ao contrário, das consequências para as premissas possíveis – sem esquecer que as mesmas consequências podem derivar de vinte premissas diferentes e até contrárias. Então os processos de exame dialético podem ser infinitamente complicados e estão todos descritos com bastante sutileza não só no livro dos Tópicos mas também em todos os tratados de dialética que depois foram escritos, desde então até a Idade Média e depois. Este é um material pelo qual a maior parte dos filósofos modernos não tem o menor interesse.

Vimos então os três usos da dialética:

1º) Para discussões onde você pretende alcançar um resultado meramente provável (uma retórica aperfeiçoada).

2º) Para utilização escolar – treinamento da mente.

3º) Uso científico – princípio de investigação científica. Guardem isto porque mais tarde é a esta sentença de Aristóteles, de que “a dialética é o meio de encontrar os princípios” que vamos recorrer para propor uma remontagem da nossa visão do sistema aristotélico, onde se coloca a dialética como a ciência principal.

As Analíticas e a teoria do silogismo

Depois do livro dos Tópicos, vêm dois livros que se chamam asAnalíticas e tratam do raciocínio lógico – o sistema dos silogismos. Silogismo é uma sequência de três proposições, onde das duas primeiras decorre necessariamente a terceira. Existem várias maneiras de montar um silogismo, algumas válidas, outras não. Aristóteles distingue 64 caminhos pelos quais o raciocínio silogístico pode chegar a uma conclusão. As premissas, por sua vez, segundo ele se dividem em dois tipos: universais ou gerais e particulares. Universais são as que se referem a toda uma espécie de seres; particulares, as que se referem a um em particular.

No famoso exemplo – Todo homem é mortal, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal – a primeira premissa é universal ( Todo homem… ) e a segunda particular. Conforme o jogo de premissas universais e particulares, você terá conclusões que serão válidas para um indivíduo em particular ou para vários. No exemplo citado a conclusão se refere especificamente a Sócrates – a um indivíduo em particular e não a todos. Seguindo o jogo de premissas universais e particulares, temos um ciclo de 64 etapas possíveis – exatamente a estrutura do I Ching. O conceito de universal-particular em grande parte coincide com o conceito de Yang-Yin, respectivamente.

Se você pegar os silogismos válidos e os inválidos e fizer um raciocínio completo, terá 64 etapas, das quais somente dezoito são efetivas, probantes, as outras não. Por exemplo: Algum homem é careca, Sócrates é um homem. Posso concluir que Sócrates é careca? Não. Mas posso fazer o silogismo. Tem uma estrutura silogística, porém não é válido. Se você pegar cada etapa do raciocínio, pode tomar como nova premissa uma conclusão para um segundo raciocínio, desde que a some com uma outra premissa.

A = Premissa universal D = Nova sentença ( premissa universal ou particular )

B = Premissa particular

E = Conclusão.
C = Conclusão particular, premissa ( particular ) do novo silogismo

Rodando com todas as combinações possíveis, você verá que algumas são válidas, outras não. E a totalidade destes arranjos dá 64.

A combinação é entre as palavras todos e algum; conforme todos ou algum estejam na 1ª, ou na 2ª premissa ou na conclusão, você terá 64 combinações.

Existe uma clara analogia aí, porque o yang evidentemente se refere sempre ao universal e o yin ao particular, — o grande e o pequeno. Isto é bastante claro. O yin é um princípio de particularização, de segmentação, por isso mesmo é representado por um traço dividido ( — — ). A divisão, a distinção entre os seres é um princípio yin; a unidade do universo é um princípio yang. É o contrário do que diz o Fithjof Capra. Para ele, o yang representa a razão que é analítica e divide, e o yin representa a intuição que unifica. Mas se é assim, por que o chinês representou o yang com um traço contínuo ( —— ) e o yin com um traço dividido ( — — )? É porque o chinês não tinha lido o Capra…

Como se divide o I Ching? Não é um jogo de 3 e 2? Aqui também temos um jogo de 3 e 2. São três sentenças e duas possibilidades ( todos e algum – universal e particular). Se você tiver paciência, vai combinando e vai chegar nos 64. A silogística é um jogo exclusivamente matemático. Na verdade, um joguinho para crianças. É algo que qualquer pessoa aprende com a maior facilidade, é algo totalmente mecanizado, que é possível ensinar a um computador mediante um circuito em que você tem um jogo de 2 e 3 igualzinho.

Isto seria a Analítica. Aristóteles nunca usou a palavra “lógica”, que será mais tarde inventada pelos estóicos. Ele chama-a Analítica ou ciência demonstrativa. Esta é a ciência que, partindo de uma premissa admitida como certa, chegará a um resultado que terá de ser admitido como certo, queiram ou não queiram, exatamente como na aritmética elementar. Se você tem a premissa certa, chegar à conclusão certa é mera questão de ajeitar formalmente o raciocínio correto. Um computador faz isto. Dada a premissa, se você der a conclusão errada, ele corrige, porque é mero ajuste formal. Este é o raciocínio mais certo que existe, uma vez que você tenha a premissa certa. O problema é este: onde encontrar as premissas? Se tudo fosse uma questão de raciocinar logicamente, já estava tudo resolvido há muito tempo. Porém, é claro que a lógica não pode encontrar premissas, e sem premissas nada se pode fazer. Para encontrar a premissa certa, é preciso partir de um grande número delas – meramente prováveis, premissas hipotéticas. Portanto, a coisa decisiva passa a ser a dialética.

Aula IV – Parte II

 

Pensamento e atualidade de Aristóteles – Aula III (Parte II)

Apostila do Seminário de Filosofia

TERCEIRA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 29 de março de 1994.

Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Augusto Madeira
e Kátia Torres Ribeiro

2a parte

A vida, plenitude do real. Deus é vivente, é zoon.

Acostumados a ver estas coisas no organismo vivente desde criança, são estes os traços que Aristóteles vai encontrar no que ele chamará de realidade, ou seja, ele procurará ver em tudo que existe, a sua unidade na variedade, a sua coesão e a sua hierarquia. O que é a mesmíssima coisa que encarar o real todo como se fosse um gigantesco modelo orgânico. Daí é que vem também a irritação dele com as matemáticas. Ele reconhecia, como os platônicos, que o mundo dos sentidos é muito difícil de captar, porque está em constante transformação. Seus elementos individuais não têm estabilidade suficiente para que você possa dizer algo sobre eles que já não se torne falso no instante seguinte. Os platônicos reagiam a isto fugindo dos entes sensíveis para os entes inteligíveis, sobretudo os geométricos, ao que Aristóteles objetava que, se os entes matemáticos tinham a estabilidade, isto não bastava para lhes dar a plenitude da existência. Ademais, os objetos matemáticos sofriam do mais grave de todos os defeitos – não serem objetos vivos. Segundo Aristóteles, evidentemente, o vivo é mais real que o morto. O vivo age, o morto apenas está num lugar, só vive espacialmente. O vivo, além de estar, age, produz efeitos sobre os outros seres. Esta é uma forma de existência mais intensa, mais plena e mais rica.

Dizia Aristóteles: vemos de um lado entes que são vivos, mas impermanentes, e de outro lado, temos entes permanentes, mas que não são vivos nem plenamente reais; sabemos que estes dois tipos de seres existem – sensíveis e matemáticos — , submetidos a leis que têm uma consistência própria e que não podemos mudar. Mas se estas duas formas de seres, reconhecidamente existentes são, cada uma delas, deficientes de um modo oposto, talvez haja alguma forma de existência que tenha as qualidades destas duas e esteja isenta de seus defeitos. Tenha a permanência do objeto matemático e seja viva e agente como os seres vivos. Este é o conceito aristotélico de Deus. Este Deus que ele só conhece como hipótese demonstrável por vias indiretas, do qual não tem experiência ou conhecimento direto, somente Ele atende ao requisito de ser perfeitamente real. Perfeitamente real seria aquilo que tivesse a forma mais intensa e rica de existência e ao mesmo tempo não fosse perecível, sujeito a acidentes. Só conhecemos isto como suposição que fazemos logicamente, não conhecemos por experiência, nunca ninguém viu Deus. Ele não se deixa apreender inteiramente pelos nossos órgãos dos sentidos. Por outro lado, também não se deixa apreender inteiramente pelos nossos cálculos e raciocínios lógico-matemáticos. Por um paradoxo, este Ser inapreensível se impõe a nós como o que seria o modelo da realidade plenamente real. Este vai ser o princípio fundamental da metafísica de Aristóteles. Este Deus seria o estrato superior da realidade. No entanto, este estrato não está separado do mundo sensível, como o mundo divino de Platão, mas está misteriosamente imbricado no real, ou antes, o real está imerso nele como dirá mais tarde S. Paulo Apóstolo: “Nele nos movemos, vivemos e somos”.

A importância das distinções em Aristóteles

Aristóteles admite uma complexa hierarquia do real; primeiro, não é composta de dois estratos, mas de uma infinidade. Em segundo lugar, o organismo é superior aos órgãos, mas, em relação aos órgãos, onde está o organismo? Não está em nenhum órgão. A relação complexa entre o todo e as partes que o compõem é uma outra característica do pensamento aristotélico. Daí a enorme preocupação de Aristóteles de estabelecer a relação entre unir e distinguir. A realidade é sempre é sempre composta de elementos distintos ou distinguíveis, porém nem sempre separáveis.

Do socratismo e do platonismo, com sua visão mais ou menos esquemática do mundo até esta rede de distinções enormemente sutis e trabalhosas há um salto, um aprofundamento monstruoso. Quando entramos no mundo aristotélico, subitamente entramos no nosso mundo. Estas distinções, cuidados etc. ainda fazem parte do mundo científico em que vivemos hoje. Ninguém se aventura a uma investigação científica sobre o que quer que seja se já não tiver todo um sistema de uniões e distinções mais ou menos estabelecido, um quadro conceptual dentro do qual os vários aspectos da realidade aparecem nas suas relações mais ou menos verdadeiras, que a investigação confirmará ou desmentirá.

Aí também há uma grande diferença entre toda a filosofia anterior e Aristóteles. Desde que surgem os primeiros filósofos gregos, os chamados pré-socráticos, até Platão, a principal ocupação deles consiste em dizer alguma coisa sobre a realidade, isto é, emitir uma doutrina sobre a constituição do mundo. Em segundo lugar, têm a preocupação de distinguir no mundo, radicalmente, o que é essencial do que é acidental, e portanto em dizer logo o segredo fundamental das coisas. Toda a filosofia pré-socrática se caracteriza pelo fato de que a cada filósofo corresponde uma fórmula que ele emitiu sobre o que é o mundo em essência. Um diz que é água, outro os quatro elementos, outro o ápeiron ou indefinido, e assim por diante. Resumem numa fórmula a constituição do real, e arquitetam todo um mundo de pensamentos para sustentar esta tese. Aristóteles não faz nada disto, não tem nenhuma doutrina sobre a constituição última do mundo. Ao contrário, ele se preocupa em conceber estratégias e métodos que permitam progressivamente ir descobrindo alguma coisa. Ele inventou o que hoje chamamos ciência. A atitude científica é aquela que se abstém da proclamação dogmática de uma verdade, mas pretende encontrar uma verdade fundamental, provada em todas as suas etapas e que uma vez demonstrada, se torne universalmente obrigatória para todos os seres pensantes.

Por que não existiu um aristotelismo grego. Teofrasto e Estratão.

Com este salto deixamos para trás a etapa dos gurus, dos quais Platão teria sido o último (guru é o sujeito que detém o segredo da verdade, e o enuncia em duas ou três fórmulas potentes, como aforismos ou sentenças proféticas). Platão, embora já seja um grande filósofo no sentido posterior, é o último guru da antiguidade grega. Ele entra na história mais ou menos como uma espécie de detentor de um segredo último, que ele enuncia em algumas fórmulas como que reveladas. De Platão para Aristóteles temos um salto imenso, no sentido da conquista do juízo crítico e da autoconsciência da limitação humana. Comparado com Sócrates e Platão, para não falar dos antecedentes, Aristóteles é de uma atualidade chocante. E, sendo assim, começamos a entender porque não existiu um aristotelismo no mundo grego. A filosofia aristotélica tinha propostas que estavam muito além e muito acima das exigências momentâneas da mente grega. Por isto mesmo, embora o Liceu Aristotélico tenha continuado a existir, o aristotelismo desaparece de dentro do próprio Liceu e ele só tem propriamente um discípulo que podemos dizer que é aristotélico – Teofrasto. Este é apenas doze anos mais novo que Aristóteles, da mesma geração. Produz duas obras importantes – uma Metafísica ( apresentação da metafísica aristotélica ) e outro livro chamado Os Caracteres, série de perfis psicológicos de tipos, que conserva o vigor e atualidade até hoje, principalmente através da tradução e complementação que lhe deu La Rochefoucauld. Teofrasto é o único discípulo que captou algo de Aristóteles e pode ser dito aristotélico.

O seguinte escoliarca do Liceu – Estratão de Lampsaco – já não é aristotélico de forma alguma, embora imagine que o seja. Acredita estar sendo fiel ao mestre no instante em que expõe doutrinas que são já lhe são radicalmente contráras. Estratão interpreta Aristóteles num sentido empirista, isto é, declara que todo o conhecimento vem exclusivamente pela experiência sensível. Mas Aristóteles não é nem empirista nem racionalista, e acho mesmo que ele não veria nenhum sentido nesta oposição. Segundo ele, o inteligível não está separado da realidade empírica, oculto num céu onde só possa ser alcançado pela razão pura; está antes imbricado no tecido mesmo da experiência, de onde é preciso desembrulhá-lo pelos esforços conjugados da análise metafísica e da pesquisa experimental. A experiência, para Aristóteles, não é concebível fora dos quadros lógicos que, por sua vez, se fundam na intuição intelectual dos primeiros princípios, os quais não poderiam ser obtidos da experiência ( por mera indução quantitativa ) mas também não poderiam chegar ao nosso conhecimento sem ela. Estratão esmaga logo toda esta sutil combinação, reduzindo a filosofia de Aristóteles a um empirismo, um erro tremendo que, quase dois mil anos mais tarde, será causa de outro erro complementar e oposto, que é o de tomar Aristóteles por um racionalista hostil à investigação experimental. ( Não há filósofo em torno do qual se tenham acumulado tantas imagens equivocadas, e é por isto que, neste curso, adoto esta abordagem indireta, de ir cercando Aristóteles através dos Aristóteles imaginários concebidos pelos que o comentaram, defenderam e atacaram. )

Assim o aristotelismo vai desaparecendo. Mesmo a edição dos textos de Aristóteles no século I a.C. (272 anos depois de sua morte), não suscita o nascimento de nenhuma escola aristotélica. Enquanto isto, a Academia platônica continua existindo e continua produzindo grandes nomes. As obras de Aristóteles passam a ser lidas por membros da Academia platônica e os primeiros grandes comentaristas de Aristóteles na Antiguidade — Alexandre de Afrodísia, Porfírio e Siriano – são todos neoplatônicos, não são aristotélicos.

Desde o último aristotélico – Teofrasto ( 372 a.C. ) até o primeiro aristotélico em sentido pleno que surge na história – Avicena ( 980 d.C. ), no mundo islâmico – passaram-se 1.400 anos! Este fato não tem sido enfatizado e sublinhado como o estou fazendo neste momento. Não existiu nenhum aristotelismo no mundo, depois da morte de Aristóteles, até decorridos 1.400 anos, a duração de uma civilização. Não de um país, ou de uma escola filosófica, ou de um regime político – é a duração de uma civilização inteira, um ciclo inteiro de transformações. O mundo islâmico, hoje, ainda não tem 1400 anos de idade. Se se observar o que ele é hoje, comparado a seus dias de glória, pode-se afirmar que é uma civilização já em decadência. Em 1.400 anos dá tempo de nascer, crescer, florescer, decair e morrer uma civilização. Portanto, afirmo taxativamente: Aristóteles não fez parte do mundo grego. Foi uma semente grega que ficou guardada num vidrinho para florescer somente dentro do que chamamos civilização europeia. Aristóteles é um filósofo europeu e não grego.

Isto não é estranho. Diz Goethe: “O ente que realiza perfeitamente a qualidade que define uma espécie já não pertence a esta espécie”. Já está em outro plano. Assim como o homem cujas qualidades e virtudes realizem o que existe de melhor no ser humano já nos aparece como sobre-humano, com algo de angélico. Como Santo Tomás de Aquino – o “Doutor Angélico”. Ou um tipo como São Francisco de Assis, com qualidades que são humanas, mas realizadas de maneira tão integral que você vê que de certo modo passou para uma outra espécie.

Émile Boutroux na sua pequena biografia de Aristóteles diz que este não é só um indivíduo, mas é a consumação, a perfeição de todo o gênio da civilização grega. É verdade isto. Mas esta perfeição, esta consumação aparecem como o fruto de uma árvore, que já não faz mais parte dela, que vai ser destacado e vai ser a semente de outra árvore. O fruto perfeito, por sua vez só age – e esta ação é a própria realidade – numa outra árvore que provém dele. Este hiato de 1.400 anos entre a produção das obras de Aristóteles e o surgimento de um aristotelismo no mundo está na própria natureza do aristotelismo que, representando o suprassumo do legado grego, não poderia fazer parte da civilização grega. Assim como a herança deixada por um milionário não faz parte da fortuna dele, pois só é herança depois que ele morre. A herança necessariamente pertence a um outro. Ora, ainda assim, esta herança não é apropriada de repente e toda de uma vez. A Europa toma posse do pensamento aristotélico, mas não é uma posse integral. Uma posse no sentido imobiliário, em que se tem a escritura definitiva. A tomada de posse do aristotelismo pela civilização ocidental é um processo que começa a partir desta época, entre os anos 1000 e 1300, que é justamente o que chamamos período de formação do pensamento escolástico, e que na verdade não alcançou sua plenitude até hoje.

O último grande escolástico citado na nossa lista é Duns Scot, nascido em 1266, que já não era propriamente um escolástico. Entre sua morte e o nascimento do sujeito que foi a grande expressão do aristotelismo renascentista – Pietro Pomponazzi – decorrem 200 anos: tempo da história inteira do Brasil como nação.

A História é feita de previsões errôneas

Nosso senso do tempo tem de sofrer alguns reajustes para estudarmos a história das idéias, onde as coisas transcorrem com uma lentidão terrível. Dizia Homero: “Os moinhos dos deuses moem lentamente”. São eles que produzem a farinha para o pão da história humana. As decisões dos deuses são tomadas lentamente, lentamente entram em vigor e produzem consequências que se desenrolam ao longo dos milênios. Para acompanhá-las temos de entrar numa espécie de câmara lenta. Nosso Congresso toma “decisões históricas” toda semana, mas é claro que esta impressão é baseada numa imagem falsa do que seja História. Não cabe ao próprio personagem da cena dizer qual a importância que suas ações de hoje vão ter no futuro. Estas “decisões históricas” são todas irrelevantes. Mas Weber diz que, com os eventos que parecem importantes no momento, costumam acontecer duas coisas – a primeira é que esses acontecimentos se fundem na massa acinzentada do historicamente indiferente; a segunda hipótese, é que o sentido dos eventos acaba sendo tão alterado que vira às vezes o seu contrário. Weber também diz, em outro lugar, que a História é o conjunto dos resultados impremeditados das nossas ações.

Os políticos que tomam decisões segundo uma interpretação simplista e esquemática do momento, caindo no engodo da retórica, arriscam-se a que suas decisões tenham efeitos inversos aos desejados. Quando Luiz XVI manda convocar os Estados Gerais, é para dar um fim ao clima de insatisfação. Ou quando o Czar da Rússia liberta os escravos, é para eliminar uma situação de insatisfação causada pela injustiça. Como resultado, Luiz XVI é guilhotinado e o Czar morre na explosão de uma bomba. Aqueles atos que, no entender dos personagens ( e segundo a retórica dos intelectuais do momento ), levariam à restauração do seu poder, causam em vez disto a sua extinção. É difícil o caso de um evento histórico que tenha efetivamente o sentido que seu personagem desejou ver nele. Como os mil anos do Reich, que se esgotaram em doze. Aquilo que parecia ser a culminação de um movimento nazifascista foi na verdade o seu fim. Imaginem se os autores da Revolução, ao guilhotinarem metade da França, soubessem que o resultado de tudo aquilo seria um império, um imperador que restauraria tudo e criaria uma nova dinastia, que depois cairia para dar lugar à volta da velha dinastia, e que em 1848 seria preciso fazer uma segunda revolução para morrer um bocado de gente novamente e que só por volta de 1870 haveria paz liberdade e prosperidade? Robespierre acreditaria nisso? Acreditaria que viria a entrar para a História como o protótipo do tirano sanguinário, em vez de como um libertador do povo?

O sentido do evento histórico é sutil, é melhor consultar os deuses e tentar ver as coisas a uma distância muito grande. Para isto, precisamos ter aquela neutralidade compassiva que nos permita querer ver o sentido das coisas como ele realmente é e não como o desejamos. Mas se já aderi a esta ou àquela causa, com todo o empenho, desejo evidentemente que ela seja vencedora e isto me faz apostar nela e ver as coisas de uma certa maneira. Não que todo militante seja um sonhador. Há muitos que são realistas, pessimistas ou cínicos. Mas é impossível que o militante não veja a situação em termos de vitória ou derrota da sua causa, e nem de longe imagine que outras contradições, alheias ao tema do seu interesse, venham a decidir o curso das coisas.

Então, se imaginarmos o que os contemporâneos de Aristóteles pensava dele, veremos que estavam todos enganados. E o próprio Aristóteles só não se enganou nisso porque não fez a menor previsão sobre o que aconteceria com o seu pensamento. Isto é outra coisa que nos parece assombrosa. Aristóteles não parece ter deixado para os seus discípulos nenhuma indicação sobre o que fazer. Não deixou uma orientação que pudesse de certo modo permitir a continuação do seu trabalho, como tinha feito Platão. Na Academia havia uma série de valores, de critérios tão bem estabelecidos que era só continuar como o mestre tinha começado que daria tudo certo. Mas Aristóteles não fez nada disso. Seu testamento é meramente pessoal, como os que se fazem hoje – o destino dos seus bens. É incrível a total despreocupação de Aristóteles com um trabalho que não tinha sido apenas pessoal – um trabalho coletivo, com centenas de pessoas contratadas graças a Alexandre para trazer informação para o Liceu. Como este trabalho imenso é deixado, quando ele morre – pelo menos ao que se sabe – sem continuidade? Explico isto em parte pelo fato de que quando Aristóteles morreu, este trabalho, para ele, estava praticamente encerrado; nos seus dois últimos anos de vida, ele estava no exílio e provavelmente prevendo que ia morrer, pois já partira doente, e sem comunicação com o pessoal do Liceu em Atenas. Em segundo lugar, ele não era um reformador do mundo. Não fazia planos para a vida alheia, que são a principal ocupação dos reformadores do mundo. Fez o que pode, e deixou os discípulos à vontade para fazerem o que quisessem. Em terceiro lugar, duvido que o próprio Aristóteles tivesse uma visão muito exata da revolução que havia começado. Não poderia, a não ser que fosse um profeta, imaginar o que ia acontecer com sua obra: o destino mais extravagante que se possa imaginar. Primeiro vai sumir tudo, todo mundo vai esquecer e quem ler não vai entender. Depois, tudo em torno vai acabar; esta polis, este regime; a Grécia será dominada pelos romanos; em seguida, vai erguer-se no mundo oriental um povo, o povo judeu, e do meio dele aparecerá um tal de Jesus Cristo que vai fundar uma nova religião sem importância, mas que trezentos anos depois vai dominar tudo isto; então vai aparecer algo chamado Igreja, que reconstruirá o mundo em novas bases; depois disto, mais a Oriente ainda, vai aparecer outro maluco, chamado Maomé, que vai trazer outra religião que dominará as Arábias e o Iran. Por lá é que vão ser reencontrados os manuscritos gregos, que serão passados para o árabe, depois para o latim, e isto vai cair nas mãos de um tal de Sto. Alberto Magno, que transmitirá a coisa a seu aluno Tomás de Aquino, o qual fará um estardalhaço a respeito – e então, finalmente, todo mundo vai ser aristotélico durante quatrocentos anos. Que história mirabolante! Poderia Aristóteles imaginar, mesmo de longe, esse destino póstumo das suas obras? Isto é absolutamente impossível. Portanto, Aristóteles não tinha a mais mínima idéia do que viria a acontecer.

Causas do desaparecimento do aristotelismo após a morte do mestre.

As visões iniciais que temos de um assunto às vezes determinam todo o restante das relações que teremos com ele. Por isso achei muito importante corrigir e explicar esta noção de Aristóteles como fenômeno grego. Pode ser grego nas suas causas, mas não nos seus efeitos.

Na aula passada mencionei que entre outras causas desta evolução anormal do aristotelismo, houve o fato de Aristóteles ter sido exilado em circunstâncias um pouco suspeitas por causa de suas ligações com Alexandre, o Grande. Relações que estavam estremecidas porque, numa crise política, Alexandre tinha mandado matar um sobrinho de Aristóteles, motivo pelo qual, apesar da amizade, todas as relações cessaram. Não chegaram a entrar em hostilidade mas não se procuraram mais para evitar de ter de acertar este ponto doloroso. Apesar deste distanciamento, quando surge uma guerra contra a Macedônia, todos os que tinham relações com o governo macedônico tornaram-se automaticamente suspeitos e Aristóteles teve de fugir. Não há indício do que aconteceu no Liceu em seguida, mas podemos supor que quem é amigo de suspeito, suspeito é. Portanto, deve ter havido uma correria geral para apagar indícios de relações com Aristóteles. Imagino que os textos dele foram-se tornando raros exatamente por isso. A história dos textos escondidos na caverna pode ser fictícia, mas a lenda deve ter sido inventada para explicar algo que aconteceu efetivamente. O fato é que os manuscritos sumiram e só dois séculos e meio depois reaparece a coleção nas mãos de Andrônico de Rodes. Mas não podemos explicar de maneira alguma pelo sumiço dos manuscritos a ausência de um aristotelismo grego. Primeiro porque não é possível que tenham sumido todos os manuscritos; segundo porque o Liceu continua funcionando. Acho que havia mesmo uma incompatibilidade da mente grega para absorver esta nova atitude intelectual, tão isenta daquele fundo profético-religioso que o grego estava acostumado a encontrar nos seus pensadores. Sobretudo nos séculos seguintes, a crise político-social da Grécia, inclusive com a extinção da chamada democracia grega e sua substituição por governos ditatoriais, vai fazendo com que os indivíduos, já não podendo participar da política, se sintam isolados e percam o sentido de participação na história e comecem a se preocupar cada vez mais com problemas de ordem psicológica e particular. Daí o sucesso das novas escolas filosóficas, das chamadas neo-socráticas — cínicos, megáricos –, dos estóicos e sobretudo dos epicuristas, porque estes todos transferiam o eixo das preocupações filosóficas desde as grandes questões teoréticas para problemas psicológicos. Tirando o estoicismo, não são propriamente escolas filosóficas, são como se fossem terapias tentando oferecer um alívio mais ou menos fictício, postiço, para os sofrimentos humanos, mediante disciplinas mentais. A proposta epicúrea, por exemplo, é nitidamente de nunca pensar na realidade, mas concentrar-se na recordação dos momentos agradáveis e só pensar neles, como se o presente não estivesse acontecendo. Tudo isto acompanhado de uma retirada da vida civil, para você se fechar dentro de uma espécie de ashram. O famoso “Jardim de Epicuro” é um ashram, para onde as pessoas iam para não sair mais, e onde ficavam curtindo as coisas simples da vida: comer, dormir, conversar com os amigos, só falar de assuntos agradáveis e nunca tocar nos males do presente. Uma espécie de sistematização da evasão. Como chamar a isto de filosofia? Não só o epicurismo como outras escolas deste tipo é o que estava em demanda – era o que as pessoas queriam, pois buscavam alívio urgentemente. Quem está em busca de alívio não está em busca do conhecimento da realidade. O conhecimento é um encargo, uma responsabilidade a carregar e supõe um certo equilíbrio das faculdades, que as pessoas não estavam absolutamente em condições de oferecer. Então, o aristotelismo desaparece não só por causa do fator material, da ausência dos textos, mas também por um fator psicológico- histórico, que o tornava desnecessário, do ponto de vista grego, naquele momento.

A gnoseologia de Aristóteles é organicista como sua cosmologia

Voltando às características básicas do pensamento aristotélico, que foram perdidas na geração seguinte do Liceu, vemos que desta visão inicial do real como organismo e como hierarquia, Aristóteles tira uma conclusão que é das mais importantes até hoje. A de que se a realidade que se oferece a nós tem uma forma de existência que se assemelha à do organismo – isto é, de ser uma unidade múltipla, vivente, temporal – o conhecimento humano devia ser exatamente a mesma coisa. Ou seja, não somente o ser tem esta forma orgânica de existência – a unidade de uma diversidade imersa no tempo e num processo evolutivo –, mas o conhecimento humano também deve ser uma unidade muito complexa de elementos diversos, coeridos sob uma forma orgânica, e existentes no tempo através de uma sucessão de transformações.

Além do mais, tal como o organismo humano é uma coleção, uma unidade composta de estratos hierárquicos diferenciados, o conhecimento também deve ter vários estratos diferenciados que vão emergindo uns dos outros e que estão intrinsecamente ligados uns aos outros, de maneira a poderem ser distinguidos, mas não separados. Estes estratos, tal como a própria hierarquia dos seres viventes, se dispunham desde aquilo que é mais simples e pouco coeso até aquilo que é mais complexo e mais coeso. As formas de vida mais simples que conhecemos, as mais elementares, têm uma coesão muito deficiente. Por exemplo, uma ameba pode ser cortada ao meio e resiste a esta divisão. Se você cotuca uma ameba, ela se move, tem notícia de que algo de ruim se aproxima, e foge da agressão. Mas se você a cortar ao meio, diante do fato consumado, cada parte vai para um lado e trata de viver separadamente. Se uma minhoca é partida ao meio, as duas partes continuam se agitando. Têm uma forma de unidade deficiente. Conforme os animais vão manifestando funções mais diferenciadas, mais abrangentes e superiores, ao mesmo tempo a coesão destes animais é maior. Se você corta um pedaço de uma planta, ela pode continuar vivendo. O pedaço cortado pode morrer, mas o resto continua vivendo. Um animal já não pode ser seccionado da mesma maneira. E o princípio da coesão vai-se tornando mais firmemente uno para proporcionar uma abrangência maior das funções. Nesta escala, onde à maior complexidade corresponde uma unidade mais coesa, o homem estava evidentemente colocado no topo. O homem é o mais complexo e, ao mesmo tempo, o mais coeso dos seres terrestres.Aristóteles via o processo do conhecimento exatamente nos mesmos termos em que via esta escala dos seres viventes, da qual mais tarde sairá, por uma aplicação óbvia de um preceito aristotélico, a teoria da evolução. Esta, pois, se encontra pressuposta nesta escala dos seres viventes proposta por ele. É só temporalizar — coisa que Aristóteles também não falou, mas é uma decorrência óbvia de sua filosofia –, e você terá aí um esboço da teoria da evolução. Darwin reconhecia sua imensa dívida para com Aristóleles, e dizia: “Lineu e Cuvier foram as minhas duas divindades, mas não passam de colegiais quando comparados ao velho Aristóteles.”

A esta unidade diversa da visão do real corresponde então a unidade diversa como visão do processo cognitivo.

l. A sensação. — O conhecimento começa para Aristóteles com as simples percepções sensíveis. Estas são pequenas alterações que um organismo sofre devido à entrada de uma informação que vem do exterior. Nem todos os seres têm a capacidade de receber estas informações. Os minerais, por exemplo, não a têm. Esta capacidade já marca a diferença entre seres mais simples e mais complexos.

2. A memória. — Porém, diz Aristóteles, entre os seres capazes de receber informações sensíveis, há alguns capazes de retê-las, e outros não. Por exemplo, a ameba não tem memória, mas o mosquito já tem. Então, a memória significa a capacidade de você repetir a mesma informação na ausência do estímulo. Ou seja, se na primeira vez o estímulo veio de fora do organismo, da segunda vez o organismo mesmo o produz, de maneira atenuada. Entre os animais que não têm memória e os que têm existe um salto de complexidade e qualidade, similar àquele que existe entre os seres que não têm percepções sensíveis e aqueles que as têm. Já temos um duplo salto: os insensíveis e os sensíveis, e dentre estes, os que são dotados de memória.

3. A experiência. — Dentre os seres dotados de memória, alguns são capazes do conhecimento por experiência. O que é isto? É um princípio de generalização em que, de várias experiências iguais, você conclui uma regra mais ou menos comum. Vemos que um gato tem memória. Você o vê repetir certos circuitos de ações; porém ele não tem a mesma capacidade de aprender por experiência que tem um cachorro. Quem já tentou ensinar aos dois, verá que no caso do gato isto é quase impossível. O gato não consegue generalizar – fazer dos casos individuais uma regra — com a mesma facilidade do cachorro. E dentre os animais dotados de experiência, o que a tem em maior grau é o homem.

Resumindo os vários saltos até agora: insensível ® sensível ® memória ® experiência.

4. A técnica. — Porém, a experiência e o conhecimento por experiência se dão exclusivamente dentro de um organismo individual. Eu tenho as minhas sensações, tenho a memória e, a partir desta, concebo a minha experiência e crio uma série de circuitos repetíveis que me permitem reagir de maneira similar em situações similares. No entanto, o homem tem algo mais do que isto. Ele não apenas tem a experiência, mas ele pode resumi-la e transmiti-la a quem não a teve. Isto já é o que se chama técnica. Bismarck diz que só os imbecis aprendem com a experiência. “Eu aprendo com a experiência alheia”. Técnica é exatamente isto: um conjunto de preceitos que permite aprender com a experiência alheia e transmiti-la a outros, sem que você tenha de passar por ela. É obviamente isto que já caracteriza o homem.

Depois da experiência, vem então a técnica que é experiência condensada, resumida e distribuída socialmente. O indivíduo que pode aprender pela técnica tem um salto de velocidade e eficácia imenso em relação àquele que só tem a experiência. Com a técnica, começa o mundo da cultura e começa o mundo propriamente humano.

5. A ciência. — Depois da técnica, ainda há mais um salto. A técnica é apenas uma codificação das experiências repetidas. Além disso, temos uma forma mais condensada, mais eficiente e mais profunda de conhecimento. É o que Aristóteles chama epistemê, que traduzimos normalmente por “ciência”. É onde não somente se conhece e sistematiza o circuito das experiências repetíveis, mas se encontram os princípios que fundamentam a repetição das experiências. Desde o conhecimento pelos sentidos até a epistemê, no topo da pirâmide, existe um processo de simplificação e coerenciação cada vez mais abrangente. Ou seja: as experiências sensíveis são muitas, mas nos dão relativamente pouco conhecimento útil; a memória já resume isto e repete umas quantas informações significativas; destas, a experiência abole as repetições e conserva apenas os esquemas úteis; estes, na técnica, são simplificados e codificados de maneira a poder ser transmitidos, o que aumenta barbaramente a eficácia da ação humana. Finalmente, na episteme ou ciência, dois ou três princípios científicos que sejam encontrados permitem abarcar uma multidão de conhecimentos organizada, coesa e eficientemente. De modo que o conhecimento se escalona numa pirâmide cujos vários estratos são inseparáveis. Se saltar um, não tem o seguinte. Não se pode dizer: “Este conhecimento aqui é superior, podemos abandonar o inferior”. Não – ele é superior porque tem inferior por baixo. O tijolo de cima cai, se você tirar o tijolo de baixo. Esta hierarquia tem um sentido orgânico insecável. Os vários estratos são logicamente distinguíveis, mas não são realmente separáveis.

6. A sabedoria. — A escalada poderia parar por aí, e já teríamos dado conta da inteireza da esfera cognitiva no homem em geral. No entanto, Aristóteles admite que o homem ainda possa subir mais um degrau, elevando-se do conhecimento dos princípios que estruturam o mundo da experiência ao conhecimento dos princípios universais, princípios de todos os princípios. A isto corresponde um novo “órgão cognitivo”, o núus, “espírito”, órgão da sabedoria.

Porém, Aristóteles insiste que a sabedoria é própria somente de Deus, e que para o homem ela é antes um ideal realizado de maneira precária e parcial do que uma posse efetiva. Por isto, ele hesitará muitas vezes ao assinalar uma denominação para a ciência correspondente a este estrato. A denominação “metafísica” é de Andrônico de Rodes, e embora ela seja adequada sob muitos pontos de vista, Aristóteles não usa esse nome em parte alguma. Às vezes ele usa “filosofia primeira”, às vezes “teologia”, e às vezes — olhem que coisa significativa — “a ciência que buscamos”. Que buscamos, precisamente, porque não a possuímos. Por isto, no esquema da escala do conhecimento segundo Aristóteles, é justo incluir ou excluir o sexto estrato, a sabedoria, porque ela pertence à estrutura do homem como um ideal, mas não lhe pertence como posse efetiva.

Aula IV – Parte I

 

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