Yearly archive for 2005

Deuses de ocasião

Olavo de Carvalho


O Globo, 2 de julho de 2005

“Quando os homens já não acreditam em Deus, não é que não acreditem em mais nada: acreditam em tudo.” Se essa observação de G. K. Chesterton já não tivesse sido comprovada milhares de vezes, bastaria a experiência brasileira das últimas semanas para mostrar sua veracidade. Quanto mais este país renega a fé cristã que esteve nas raízes da sua formação, com tanto mais crédulo entusiasmo se entrega ao culto de ídolos de ocasião, e quanto mais se avilta na adoração do desprezível menos força tem para arrepender-se e mudar de rumo quando uma nova divindade postiça e impotente, seguindo o caminho das anteriores, o decepciona pela enésima vez. Ao contrário: cada desilusão sucessiva não só reforça a propensão idolátrica, mas a torna ainda mais tolerante para com a inépcia dos deuses, mais pronta a fabricar desculpas para as lacunas da sua onipotência e as manchas do seu véu de santidade. Por esse caminho, as relações entre a alma devota e seu objeto de culto chegam à completa inversão: já não é a criatura que vive da misericórdia divina, é a divindade pecadora e criminosa que se alimenta do perdão humano, não recebido como um dom da graça, é claro, mas extorquido como um dever, como um imposto, de tal modo que o fiel, quanto menos recebe de seu deus, mais se sente obrigado a lhe dar em profissões de fé e atos de sacrifício, numa espécie de masoquismo teológico.

Tal é, com efeito, o deus da “teologia da libertação”. A única entidade imaterial e transcendente em que os doutores dessa escola acreditam é aquela força a que chamam “processo revolucionário”, lei suprema que, a seu ver, governa o curso da história. Mas é uma lei que funciona às avessas. Ao contrário do Deus bíblico, cuja credibilidade advém do cumprimento de Suas promessas, ela jamais precisa cumprir as suas. A autoridade de que desfruta ante os fiéis assenta-se no próprio rastro de crimes e fracassos que constitui até o momento o único legado do processo revolucionário na URSS, na China, no Vietnã, na Coréia do Norte ou em Cuba. Esse aparente paradoxo explica-se pela dialética do prejuízo intolerável: quanto maior a dose de sacrifício inútil, tanto mais dificultoso admitir que foi inútil. Tanto maior, por isso, a necessidade compulsiva de redobrar indefinidamente a aposta perdida, reafirmando a fé contra os fatos em escala de progressão geométrica. O credo quia absurdum, que em Agostinho era uma figura de retórica, torna-se aí um preceito literal, o dogma constitutivo da igreja revolucionária.

Não espanta que, numa cultura intoxicada desse dogma ao ponto de já não poder reconhecê-lo como tal mas apenas obedecê-lo como impulso inconsciente, as esperanças do povo acabem se voltando para personagens cada vez menores, mais desprovidos de real valor e das condições mais mínimas para honrar a confiança neles depositada.

Quando, mais de uma década atrás, o sr. Herbert de Souza foi aceito pelas classes letradas como a máxima encarnação da virtude e um candidato à beatificação, tomei isso como indício de um embotamento da sensibilidade moral coletiva, incapaz de distinguir entre um santo e um mero estrategista esperto, cujo único mérito era o de ter ensinado a esquerda a sugar o prestígio das entidades caritativas em vez de acusá-las de instrumentos da classe dominante.

Os anos que se seguiram confirmaram esse diagnóstico, quando uma nação quase inteira apostou na moralidade superior de um partido cuja improbidade e malícia, no entanto, eram claramente visíveis no teor mesmo das suas discussões internas e na rede de suas alianças criminosas internacionais, alianças que ora ele ocultava sob negações peremptórias, ora adornava com um manto de subterfúgios dourados, sem que a mídia cúmplice consentisse em notar, sequer, a duplicidade do discurso, prova inequívoca da mentira.

Por isso, agora, que toda a indigência moral desse partido veio à tona, não é impossível que o esplendor mesmo da sua feiúra ofusque a visão popular, produzindo, após o choque passageiro das más notícias, uma restauração da confiança inicial jamais merecida.

Revolução judicial nos EUA

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de junho de 2005

No Brasil ninguém está prestando atenção nisso, mas o acontecimento da semana nos EUA foi a sentença da Suprema Corte que, quinta-feira passada, permitiu aos governos locais desapropriar moradias e fazendas em favor de projetos de desenvolvimento privados.

A importância da medida, destinada a ter dentro e em torno dos EUA conseqüências histórico-sociais imensas se levada à prática em toda a sua extensão, reside em que ela modifica radicalmente o sentido da Quinta Emenda constitucional, a qual condicionava o direito de desapropriação ao “uso público” da terra desapropriada. Agora, esse direito beneficiará qualquer grande projeto de desenvolvimento apresentado por empresa privada que prometa gerar por meio dele algum “benefício social”, especialmente, é claro, impostos.

Entendam bem a diferença: não se trata de privatizar uma prerrogativa estatal. Ao contrário: é a prerrogativa estatal de arrancar dinheiro do contribuinte que se sobrepõe brutalmente ao direito de propriedade, arrogando-se o poder de beneficiar um interesse privado em detrimento de outro, e, pior ainda, de fazê-lo em nome da simples promessa dos ganhos fiscais decorrentes e não de uma concreta e imediata “utilidade pública”. Quando o governo desapropria casas para criar uma praça ou hospital, a praça e o hospital são postos diretamente a serviço do povo. A propriedade privada é sacrificada em favor de um ganho social direto. Agora, não é preciso mais isso. O ganho imediato, se vier, será do Estado somente. Para a população, restará a mera expectativa de ganhos indiretos, e em nome dessa expectativa os direitos de propriedade serão sacrificados.

A coiça começou quando um grupo de proprietários residenciais num bairro operário de New London, Connecticut, recorreu à justiça contra empresários que, com o apoio da prefeitura, queriam derrubar suas casas para dar espaço a um hotel, a um SPA e a um conjunto de escritórios – tudo isso privado, naturalmente. Quando o caso chegou à Suprema Corte, a maioria dos juízes deu ganho de causa aos empresários. O voto vencedor foi subscrito por John Paul Stevens, John Anthony Kennedy, David H. Souter, Ruth Bader Ginsburg e Stephen G. Breyer – a fina flor do esquerdismo judicial supremo.

A Juíza Sandra Day O’Connor, uma conservadora nominal que vive flertando com as causas esquerdistas, desta vez defendeu com firmeza o voto dissidente e continuou lutando contra a decisão depois de aprovada. “Qualquer propriedade pode agora ser tomada em benefício de outra parte privada, mas as conseqüências disso não serão randômicas”, escreveu ela: “Os beneficiários, mais provavelmente, estarão entre aqueles cidadãos que têm mais influência e poder no processo político, especialmente as grandes corporações e as empresas de desenvolvimento”. Os conservadores genuínos – William H. Rhenquist, Anthonin Scalia e Clarence Thomas – acompanharam o voto vencido da dra. O’Connor.

O caso basta para ilustrar como é falso o estereótipo – no Brasil, um dogma – que identifica a esquerda com as “causas populares” e a direita com os “interesses da elite”. Não é à toa que nos EUA o povão vota com os conservadores, o beautiful people com os esquerdistas. Também não é por acaso que as fundações bilionárias – Ford, Rockefeller, MacArthur e tutti quanti — despejam dinheiro nas organizações esquerdistas, inclusive na América Latina, ao passo que não dão um tostão a qualquer projeto que seja ou pareça conservador, pró-cristão, pró-Israel, etc.

A decisão de quinta-feira passada vai contra todas as tradições americanas, mas, quando mega-interesses empresariais se unem à fome de poder estatal dos esquerdistas contra os direitos consagrados, não há tradição que agüente.

“É um tanto chocante acreditar que você pode perder sua casa neste país”, disse Bill Von Winkle, um dos proprietários lesados. Mas Bill vai resistir: diz que não sairá da casa nem quando os tratores aparecerem. “Não vou a parte alguma”, assegura ele: “Essa sentença, definitivamente, não é a última palavra.”

E não é mesmo. No complexo sistema federativo americano, essa decisão da Suprema Corte não obriga em nada os tribunais superiores estaduais, onde a briga vai prosseguir agora, podendo acontecer que o novo critério seja adotado em uns Estados e rejeitado em outros.

Mas o sentido histórico, social e cultural da medida é evidente. Mais que um ataque a determinado direito de propriedade, ela é uma mutação completa dos fundamentos gerais desse direito. A troca do conceito de “uso público” para o de “benefício social” como critério de desapropriação é uma revolução judicial comparável às aberrações propostas no Brasil pelo chamado “direito alternativo”. Funda-se inteiramente na lógica socialista de que os méritos hipotéticos do futuro, bastando ser alegados, tornam-se ipso facto justificativa bastante para a supressão ou modificação dos direitos presentes.

***

O episódio exemplifica, mais uma vez, o abismo que se abriu entre o Brasil e os EUA, países antigamente tão próximos. A imagem dos EUA na opinião pública brasileira chega hoje à completa inversão. A novela “América”, por exemplo, mostra como traços típicos da cultura americana justamente aquelas práticas que foram introduzidas pela esquerda “politicamente correta” para destruir essa cultura. Aqui ninguém ignora que a onda de intromissão estatal na vida privada dos cidadãos é uma novidade criada pelos “liberals” (“liberal” nos EUA significa esquerdista; o que no Brasil é “liberal” chama-se “conservative”, conservador) para implantar o socialismo pela via anestésica da legislação progressiva e do ativismo judicial. Jornais, revistas e livros conservadores denunciam isso dia e noite, mas, para o público brasileiro, a culpa não é dos esquerdistas: é da América.

Um dos mais gostosos privilégios da esquerda internacional é justamente o de ser internacional, enquanto as direitas são locais e sem nenhuma conexão no estrangeiro. Isso permite que, num país, ela explore em vantagem própria a denúncia dos crimes e desvarios que ela mesma praticou em outro.

Uma sociedade em que os pais têm medo de que o Estado tome seus filhos ao menor deslize é mesmo uma monstruosidade. A esquerda americana tem se esforçado muito para que os EUA se transformem precisamente nisso, segura de que, aos olhos do mundo, os resultados deprimentes não serão atribuídos a ela, mas ao país que ela deformou. Se, amputados da identidade do autor, os feitos malignos da esquerda americana podem ser usados para fomentar o anti-americanismo brasileiro, por que não fazê-lo?

Do mesmo modo, o Plano Colômbia de Bill Clinton, obviamente concebido para desmantelar as organizações paramilitares de direita e transferir às FARC o poder dos antigos cartéis, pode ser apresentado aos bocós do Terceiro Mundo como um odioso empreendimento anti-esquerdista do imperialismo americano. A esquerda ganha dinheiro e poder, com a vantagem adicional de aparecer como vítima.

Contribui para dar credibilidade à intrujice a aberrante crença popular brasileira de que nos EUA “não existe esquerda” – quando, na verdade, a esquerda dominou toda a história política e cultural americana do século XX e só a partir da década de 50 surgiu um movimento conservador, raquítico no começo, depois crescendo aos poucos até alcançar sua primeira vitória significativa na eleição de Ronald Reagan. Contarei a história desse movimento numa das próximas colunas.

Por enquanto, só o que falta é a mídia brasileira apresentar a decisão dos esquerdistas da Suprema Corte como prova da maldade dos conservadores americanos.

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Nestas semanas em que tudo no país está dando errado, está na hora de ler “O Brasil Que Deu Certo”, de José Monir Nasser e Gilberto Zancopé. Publicado pela Editora Tríade do Paraná, já deve estar em todas as livrarias de São Paulo e do Rio. Baseado numa exaustiva pesquisa, escrito com elegância e brilho como raros livros nacionais hoje em dia, conta a história de um sucesso majestoso, a epopéia dos plantadores de soja no Oeste brasileiro. A lição que encerra não é nova, mas vem ilustrada com uma profusão de fatos que a tornam mais clara e didática do que nunca: para o Brasil dar certo, é preciso que os empresários desistam de viver da proteção do Estado e o Estado desista de manter os empresários de joelhos.

Tristeza pura

 Olavo de Carvalho


Zero Hora, 26 de junho de 2005

WASHINGTON – Lendo as opiniões que me chegam pela internet, noto uma radical discordância entre os esquerdistas: uns dizem que o PT virou um bando de ladrões porque se deixou impregnar de direitismo; outros asseguram que o partido é honesto e que a tempestade de denúncias contra ele é uma conspiração da direita.

Entre os antipetistas, a divisão é ainda mais profunda, pois não opõe duas alas distintas e sim duas opiniões antagônicas que se alternam e se engalfinham dentro das mesmas cabeças: cada um jura que o PT está liquidado e cada um já treme de pavor ante a perspectiva de que o cadáver se erga do túmulo nos braços dos “movimentos populares” e instaure o reino triunfante do Leviatã.

A simples existência dessa dupla polaridade de opiniões basta para sugerir que as quatro concepções são falsas. Mas isso não interessa, porque já faz tempo que as categorias do verdadeiro e do falso desapareceram do horizonte mental brasileiro. Sobraram apenas o conveniente e o inconveniente, isto é, aquilo que lisonjeia ou deprime os sonhos políticos do freguês. Na verdade (com o perdão da palavra), isso é o resultado de dois processos concomitantes, que se abateram sobre este país há pelo menos uma década e meia.

O primeiro foi a expansão avassaladora do modo “politicamente correto” de pensar, que inverte o funcionamento do senso moral, dissolvendo na poção ácida do relativismo os critérios fundados na experiência milenar ou na natureza das coisas e consolidando em monumentos de absolutismo pétreo os juízos de aprovação e desaprovação baseados em objetivos políticos ocasionais ou interesses de grupos de pressão. Assim, por exemplo, o genocídio ou o tráfico de drogas podem ser aceitos como procedimentos lícitos, tendo em vista as circunstâncias culturais, mas a rejeição do aborto ou do homossexualismo é invariavelmente um pecado escandaloso, imperdoável. A facilidade com que, sem o mínimo desconforto intelectual, a mente assim formada transita do indiferentismo cético ao mais intolerante dogmatismo é, sem dúvida, uma deformidade espiritual monstruosa. Sua propagação epidêmica é universal, mas, se em toda parte ela encontra resistências firmes e corajosas, no Brasil ela ocupou o espaço cultural inteiro sem ter de enfrentar senão piadinhas de ocasião que só testemunhavam a incapacidade geral de admitir a gravidade do fenômeno.

O segundo fator foi a célebre “campanha pela ética na política”, que, como previ mais de dez anos atrás, não teve outro resultado senão dar eficácia social prática à perversão politicamente correta, corrompendo a capacidade de julgamento moral da população ao ponto de que tornou impossível pensar o bem e o mal exceto como sinônimos respectivos dos “ideais sociais” esquerdistas e dos obstáculos que a eles se opunham, obstáculos que, a despeito da inexistência de qualquer direita organizada no Brasil, infalivelmente eram demonizados como frutos da obstinação reacionária contra a maré montante da bondade petista.

Trabalhada por esses dois fatores, a mente nacional terminou incapaz de avaliar moralmente até mesmo as situações mais simples, e se afoga num lamaçal de conjeturações postiças cuja obscuridade infernal simula as operações de uma inteligência profunda.

Daí as reações desencontradas, irracionais, ao escândalo do Mensalão. De um lado, forçando a realidade até o último limite do absurdo, trata-se de inculpar a direita per fas et per nefas : ou ela cometeu os crimes do PT, ou não há crime nenhum e foi ela quem inventou tudo, numa trama diabólica financiada, é claro, pelos gringos. De outro lado, uma direita esfrangalhada, constituída da mistura impossível de intelectuais inermes com empresários oportunistas e políticos ideologicamente inócuos, se dilacera ainda mais saltando nervosamente do triunfalismo fingido ao terror do apocalipse imaginário.

Ver tudo isso, de longe, é ainda mais triste do que ver de perto. Aí, a confusão e o medo ambientes ainda contaminavam minha visão das coisas. À distância, conheço a tristeza em estado puro.

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