Yearly archive for 2005

A CIA que ninguém conhece

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de julho de 2005

WASHINGTON, DC – Todo mundo no Brasil imagina que a CIA é uma espécie de KGB de direita, um governo invisível dominando com mão de ferro uma multidão inerme. No plano internacional, uma vasta organização subterrânea empenhada em fomentar golpes de Estado, assassinar intelectuais esquerdistas e implantar por toda parte o império do capitalismo ianque.

Se essas fantasias imitam tão simetricamente o modelo da espionagem soviética, é porque foi ela mesma que as criou à sua própria imagem e semelhança, invertendo apenas o signo ideológico da sua realidade macabra para formar o desenho de um tipo de organização que, num país com eleições e imprensa livre, jamais teria condições de existir. Esse desenho foi espalhado pelo Ocidente através de toda uma imensa subcultura editorial e cinematográfica produzida, sobretudo, entre os anos 60-80.

Após a abertura dos Arquivos de Moscou, ninguém mais tem o direito de ignorar, por exemplo, que o enredo conspiratório do filme de Oliver Stone, “JFK”, saiu direto dos escritórios da KGB, nem que o ex-agente Philip Agee, badaladíssimo pela mídia popular pelas denúncias escabrosas que fez contra a CIA no seu livro Inside the Company: CIA Diary (1975), esteve sempre na folha de pagamentos do serviço secreto soviético e hoje é um agente full time do governo cubano. Mas não há país do mundo em que esses fatos tenham sido suprimidos mais sistematicamente da mídia do que o Brasil. Resultado: as balelas mais sonsas postas em circulação por aquela subcultura tornaram-se, aí, verdades de evangelho cuja contestação ainda soa, no mínimo, “polêmica”, isto quando não lança sobre o contestador a fama de psicótico… ou de agente da CIA.

Para avaliar a distância entre o imaginário brasileiro e os fatos, basta notar que aqui nos EUA também circula uma multidão de livros contra a CIA , mas que a maioria deles a acusa de fazer exatamente o contrário do que os brasileiros imaginam que ela faz. Nenhum americano razoavelmente culto ignora que esse serviço de inteligência, há bastante tempo, trabalha mais para grupos políticos – de esquerda em geral – do que para o governo do seu país. Isso começou na era Reagan. Ronald Reagan foi um grande presidente, mas nas últimas semanas de mandato fez uma burrada monumental: privatizou uma parcela importante dos serviços secretos. Quem podia comprar comprou um pedaço e o pôs a serviço de si próprio. A família Clinton, por exemplo, tem lá seu feudo particular. Sem saber dessas coisas, o público brasileiro entende às avessas acontecimentos importantes como a falsa informação sobre as armas de destruição em massa de Saddam Hussein. O que aos olhos brasileiros pareceu uma desculpa maquiavélica inventada por George W. Bush para legitimar a invasão do Iraque (até hoje isso é repetido na mídia nacional como obviedade de senso comum) foi na verdade uma cama-de-gato armada para o presidente por gente desleal dentro da CIA. Daí a limpeza geral que o governo está fazendo nesse serviço de inteligência, trocando tipos suspeitos por funcionários concursados.

Uma das melhores fontes para estudar o assunto são os artigos de Jack Wheeler, filósofo que abdicou da carreira acadêmica para levar uma vida de aventureiro, caçador de tigres e estudioso de culturas primitivas, acabando por ser conhecido como “o Indiana Jones da direita”.

Wheeler trabalhou na CIA por algum tempo e não modera as palavras ao dizer o que viu lá dentro: um panorama que vai da indolência anárquica ao antipatriotismo militante de altos funcionários empenhados em amarrar as mãos dos agentes por meio de exigências “politicamente corretas” impossíveis de cumprir, quando não em sonegar ao governo informações vitais para a segurança do país. Wheeler me disse que o empreendimento mais importante do governo Bush era justamente a reforma dos serviços de inteligência, mas que seus resultados seriam muito lentos, tamanhas as resistências que encontrava entre os marajás remanescentes da era Clinton.

Mesmo depois da conversa com Wheeler, porém, eu não imaginava que essas resistências podiam chegar ao ponto do boicote sistemático e da rebelião ostensiva. O que me abriu os olhos foi o livro de Curt Weldon, Countdown to Terror (“Contagem Regressiva para o Terror”), publicado há uns meses pela Regnery e a mais importante dentre as obras sobre a CIA que entraram na lista de bestsellers do New York Times .

O autor é um deputado pela Pensilvânia, reeleito consecutivamente por vinte anos. Durante sua experiência como vice-presidente de duas comissões parlamentares encarregadas de assuntos de segurança, Weldon obteve informações confiáveis de um dissidente iraniano sobre esquemas terroristas diretamente concebidos pelo governo de Teerã. O principal era o plano de atirar aviões com pilotos suicidas não sobre um simples prédio comercial como no 11 de setembro, mas sobre o reator nuclear de Seabrook, Massachusetts, ocasionando uma catástrofe do tipo e das dimensões de Chernobyl. O informante dava também detalhes sobre a fabricação da bomba atômica iraniana em íntima associação com a Coréia do Norte – um projeto em estágio muito mais avançado do que se imaginava no Ocidente –, descrevia a rede de agentes iranianos infiltrados no Iraque para espalhar o terror e esmagar no berço a democracia iraquiana, e resumia atas e mais atas do “Comitê dos Nove”, a entidade criada pelo governo do Irã para coordenar a atividade terrorista em escala internacional. Dizia ainda que Osama bin Laden se encontrava refugiado no Irã como hóspede de honra e que entre os projetos terroristas em andamento estava o assassinato do ex-presidente George H. W. Bush.

Mas a surpresa maior estava por vir. Quando tentou passar essas informações para a CIA , Weldon se defrontou não só com uma barreira de má-vontade e indolência, mas com uma hostilidade ativa que tentava por todos os meios – inclusive a ameaça de coerção física – bloquear o acesso ao informante e impedir que os dados fornecidos por ele chegassem ao primeiro escalão do governo.

Isso continuou mesmo depois que a mais espetacular das revelações, a do ataque a Seabrook, foi integralmente confirmada pela prisão, pelo governo canadense, de um grupo de terroristas preparados para realizar a operação – o que, segundo Weldon, não significa que o plano tenha sido abandonado e não esteja sendo levado adiante neste preciso momento, em algum outro lugar do mundo.

Weldon tentou por todos os meios articular os vários serviços de inteligência para que fizessem a análise cruzada dos dados, mas todos os seus esforços foram boicotados de maneira tão ostensiva que ele desistiu de buscar a atenção do governo e resolveu apelar diretamente ao povo americano, publicando os relatórios do seu informante clandestino na esperança de que a opinião pública pressione o governo para levar a fundo a reforma do sistema de segurança.

“Este livro – escreve ele no prefácio – é um ato de desespero. Trago-o à presença do leitor porque não consegui que a comunidade de informações fizesse nada a respeito, embora minha fonte tenha provado sua credibilidade e embora a informação que ela fornece anuncie um ataque terrorista maior aos Estados Unidos.”

Não é possível ler essas coisas e continuar não enxergando o abismo de diferença entre a realidade da CIA e o que se escreve a respeito dela na nossa mídia.

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O Brasil sempre viveu mais ou menos à margem do mundo, descompassado com o tempo histórico, incapaz de absorver as idéias vivas mas pronto a recolher e cultuar com devoção necrófila os resíduos da sua decomposição tão logo o restante da humanidade as tivesse esquecido por completo.

Não digo isso, é claro, com base no preconceito historicista de que as idéias são apenas expressões do “seu tempo”, sem valor permanente. Não é disso que estou falando. O que quero dizer é que idéias não são senão reações da mente humana a determinadas situações vividas. Quando as situações mudam, as idéias criadas em resposta a elas mudam também de significação e têm de ser reinterpretadas à luz do tempo histórico transcorrido. Quando elas chegam com atraso, desacompanhadas do respectivo upgrade cronológico, o risco que isso implica não é o de estar fora da moda – coisa que, em si, pode ser até saudável. É que essas idéias então adquirem uma espécie de força autônoma, deixando de funcionar como interpretações da realidade e sendo tomadas como se fossem elas próprias a realidade. Pior: como os seres humanos que as absorvem acabam agindo em função delas, elas criam mesmo uma espécie de realidade substitutiva, feita só de palavras e símbolos, que para quem vive dentro dela é a realidade tout court . Vidas inteiras podem transcorrer dentro desse cenário de ficção sem jamais dar-se conta de que não viveram realmente, apenas pensaram e falaram.

A história da cultura brasileira – e da política brasileira – não passa, nesse sentido, da história de uma prodigiosa alienação, de um divórcio completo entre experiência vivida e pensamento. A vacuidade, o sem-sentido, a impotência de lidar com a realidade condenam o país a uma sucessão de fracassos aparentemente sem explicação, que, de quando em quando, num paroxismo de revolta contra o destino incompreensível, ele tenta superar por meio de sobre-esforços de transformação ainda mais deslocados e inúteis.

A última dessas cíclicas convulsões pseudo-libertadoras foi a onda de entusiasmo nacional pela “ética”. Sob a inspiração desse fetiche verbal, a nação inteira se mobilizou para destituir um presidente supostamente corrupto, que depois de derrubado acabou sendo totalmente inocentado na justiça, bem como para elevar ao poder um “partido ético” que veio a se revelar uma máquina de corrupção incomparavelmente mais vasta e daninha do que todos os Anões do Orçamento, PCs Farias, Cacciolas e Juízes Lalaus somados.

Esse resultado era previsível, mas para prevê-lo era preciso saber que a expressão mesma “partido ético” se originara na Itália, nos anos 30, com o ideólogo Antonio Gramsci, como expressão técnica do vocabulário comunista destinada a designar a habilidade que o partido revolucionário deveria ter de amoldar a moral social às exigências da sua própria luta pelo poder. Como ninguém sabia disso, a palavra “ética” foi comprada pelo seu valor nominal, deslocado do contexto originário e preenchido de conotações morais sublimes, de tal modo que a nação inteira colaborou alegremente na acumulação de lixo petista no instante mesmo em que imaginava “passar o Brasil a limpo”. Transformadas em cúmplices de seu próprio ludíbrio, co-autoras do seu próprio escárnio, não é de estranhar que agora as classes falantes deste país se sintam inibidas de dar à situação presente as suas dimensões reais e não aceitem denunciá-la senão com toda sorte de ressalvas eufemísticas destinadas a salvar pelo menos um pouquinho da reputação dos acusados – preocupação que ninguém teve diante de casos de gravidade incomparavelmente menor, onde os suspeitos, não raro objetivamente inocentes, foram entregues às feras sem dó nem piedade, entre urros de sadismo “ético”.

Na época, o PT usava e abusava de uma oratória hiperbolicamente alarmista, na qual qualquer grupelho de suspeitos era imediatamente ampliado às dimensões de um “sistema paralelo” e qualquer indício de safadeza vulgar se tornava um iminente golpe de Estado, um risco apocalíptico para a segurança nacional. O observador atento notaria de imediato, no descompasso mesmo entre a retórica e os fatos, a presença do intuito de camuflagem. Hoje tornou-se evidente que o único “sistema paralelo” em formação na época era o próprio PT, que, seguindo o velho conselho de Lênin, acusava os outros de fazer o que ele próprio, assim, podia fazer com toda a tranqüilidade, a salvo de qualquer suspeita.

Nada a conservar

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 10 de julho de 2005

No Globo do último dia 8, o articulista Luíz Paulo Horta, que personifica a medida máxima de conservadorismo admitida naquele jornal depois da supressão abrupta mas politicamente compreensível da minha coluna semanal, reconhece a “orgia de ganância” em que chafurda o partido governante, e, constatando que a reação geral a esse fenômeno tomou a forma de “um esforço quase patético para preservar a figura do presidente”, dedica o restante do seu artigo a intensificar esse esforço e a torná-lo ainda mais patético, tentando salvar, junto com a imagem do sr. Luís Inácio, a do seu partido inteiro.

A tática que usa para isso é o clássico expediente de criar uma falsa impressão de equivalência. A diferença específica entre a corrupção petista e suas antecessoras é que estas eram obra de maus políticos infiltrados em partidos com os quais não tinham nenhum compromisso sério e dos quais se serviam apenas como meios de enriquecimento pessoal. Já o PT é, de alto a baixo, uma máquina de corrupção, onde roubar, chantagear, mentir e ludibriar são obrigações partidárias cumpridas com o orgulho e a consciência limpa com que, no tempo do terrorismo, os mesmos personagens de agora explodiam gente inocente e, diante da reação governamental, se faziam (e se fazem até hoje) de vítimas inermes da perseguição fascista. Essa diferença é o fato político e moral mais relevante das últimas décadas, e é ela que o sr. Horta dilui ao insinuar que os crimes do PT não fazem senão nivelá-lo aos demais partidos, como se cada um destes estivesse também metido numa trama continental com os narcotraficantes das Farc, os seqüestradores do MIR e os torturadores cubanos. O equivalentismo, diante de uma desproporção tão majestosa, torna-se um ato de desinformação e propaganda ainda mais pérfido do que a apologia franca e direta dos delinqüentes.

Baseado nesse completo falseamento das dimensões, o sr. Horta está livre para atribuir antecipadamente aos criminosos do presente os méritos de um futuro hipotético, insinuando que o único defeito do PT é o apego a estratégias demodées e que, com pequenas alterações modernizantes, sem alterar em nada a essência partidária, essa entidade pode reconquistar um lugar honroso na vida política brasileira.

Em matéria de gerenciamento de danos, Duda Mendonça não faria melhor. Apenas, duvido que o sr. Horta tenha alguma consciência do que fez. Ele foi um daqueles que, durante quinze anos, ajudaram a ocultar por atos, palavras e omissões a existência do Foro de São Paulo e a as macabras alianças continentais do lulismo. Suprimidos esses fatos, é claro, o PT tornava-se uma entidade tão inofensiva como o Partido Trabalhista inglês, pronta a discutir educadamente com os conservadores pequenas divergências econômico-administrativas, sem nenhum risco maior para as duas partes senão a perda de algumas cadeiras na eleição seguinte.

Menciono o sr. Horta apenas como um exemplo casual. Tanto ele quanto centenas de outros articulistas brasileiros nominalmente antipetistas acostumaram-se de tal modo à prática compulsiva do jornalismo eufemístico ao falar do PT, que conseguiram anestesiar não somente a si próprios mas à população inteira, tornando o Brasil uma nação incapaz de discernir a gravidade da sua situação e pronta a aceitar o pior sem nenhuma reação significativa.

Se o PT não lhes pagou para fazer isso, estamos diante da maior onda de injustiças salariais da história do jornalismo brasileiro.

Quando pessoas como essas representam na mídia a única perspectiva conservadora que resta num país, é porque esse país já nada mais tem que valha a pena conservar .

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Não espanta que, no mesmo artigo, o sr. Horta, com a responsabilidade intelectual de um menino de dois anos, compare Arnaldo Jabor a James Joyce. Quando se perde o senso das proporções na política, é impossível conservá-lo na literatura.

Robin Hoods ao contrário

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 4 de julho de 2005

Continua dando encrenca a decisão da Suprema Corte americana que na semana passada permitiu desapriopriar residências em favor de grandes projetos de desenvolvimento encabeçados por empresas privadas. Os juízes que a aprovaram estão sendo chamados de “Robin Hoods ao contrário”, porque tiraram os bens dos pobres para dá-los à aliança do Estado voraz com empresas oportunistas, e por toda parte ganha apoio a campanha “Tire as Mãos da Minha Casa”, lançada pela ONG Institute for Justice. Uma advogada do grupo, Dana Berliner, disse; “O povo americano está furioso com essa sentença, mas ainda tem meios de fazer alguma coisa contra ela.”

Coincidência ou não, a juíza Sandra Day O’Connor, que votou contra a decisão, pediu aposentadoria justamente quinta-feira passada. A essa altura, pode parecer estranho, mas os conservadores estão festejando. Numa entrevista coletiva sexta-feira à noite,Tony Perkins, presidente do Family Research Council, um influente think-tank empenhado na defesa dos valores americanos tradicionais, explicou que a saída da dra. O’Connor dá ao presidente Bush a oportunidade de começar a cumprir sua promessa de nomear juízes mais afinados com os conservadores. Foi com intenção idêntica que Ronald Reagan nomeou a dra. O’Connor em 1981, mas ela acabou namorando com os “liberals” e só se redimiu na semana passada, quando tomou posição firme a favor da propriedade privada.

Não é possível entender nada da política americana sem tirar da cabeça os estereótipos consagrados da mídia brasileira que identificam os conservadores com o grande capital e os “progressistas” do Partido Democrata com as causas populares. Para saber a quem um partido serve, é preciso descobrir quem o sustenta. No Partido Democrata, três quartos do dinheiro de campanha vêm de milionários, só o quarto restante dos pequenos contribuintes. A proporção é exatamente inversa no Partido Republicano. O símbolo mais eloqüente dessa diferença é que na Suprema Corte os dois representantes máximos do conservadorismo são justamente Clarence Thomas e Anthony Scalia, um negro e um filho de imigrantes italianos, enquanto os herdeiros das famílias tradicionais de Nova York e da Filadélfia se alinham com a esquerda politicamente correta.

Além disso, a linha divisória de esquerda e direita nos EUA tem menos a ver com economia do que com cultura e moral (questões como o aborto, o casamento homossexual, o ensino da religião, o anti-americanismo acadêmico, etc.). Nesse sentido, a população americana é decididamente conservadora, e está cada vez mais irritada com o fenômeno do “ativismo judicial” – a capciosa estratégia esquerdista de revolucionar a sociedade sem precisar mudar as leis, apenas invertendo o sentido delas por meio de sentenças dos tribunais (o “direito alternativo” brasileiro não é senão a macaqueação terceiromundista dessa moda infame). O próprio presidente Bush aludiu a isso no seu último discurso sobre o Estado da União, quando disse que os juízes devem limitar-se a aplicar as leis em vez de usurpar as atribuições do Legislativo.

Já antes da sentença desastrada, a Suprema Corte havia se tornado alvo de suspeita ao ordenar que as inscrições com os Dez Mandamentos fossem retiradas de todos os tribunais americanos. As pesquisas de opinião mostraram que 65 por cento da população desaprovaram totalmente essa medida e 14 por cento só a aceitavam com reservas. Na semana seguinte, a pilhagem das casas de New London em favor do Estado comedor de impostos transformou o desagrado geral num sentimento que fica entre o desprezo e a revolta.

Um comentarista afirmou que a decisão tinha sido “o maior insulto à América desde o processo Roe versus Wade”. Nesse processo, que pela primera vez nos EUA legalizou o aborto-a-pedido, a decisão baseou-se no testemunho da vítima, que dizia ter engravidado num estupro. Decorridas três décadas, a própria testemunha pediu a revisão do processo, confessando que não sofrera estupro nenhum mas fôra subornada pelo movimento abortista para mentir no tribunal. A Suprema Corte não quis reabrir o processo: foi a pressão popular que a obrigou a fazê-lo. A má-vontade que tenta sufocar até a verdade tardia ilustra, mais uma vez, o verso de Murilo Mendes que contrasta “as velozes hélices do mal e as lentas sandálias do bem”.

Nenhum cidadão americano ignora que a Suprema Corte já se tornou há muito tempo a fortaleza do ativismo judicial. Há quem goste e quem deteste isso, mas o fato ninguém nega. Há muitos livros a respeito; o mais famoso é Men in Black. How The Supreme Court Is Destroying America, de Mark R. Levin. Como no Brasil ninguém leu esses livros, nada mais natural do que a reação do leitor Ivanilson Zanin (palmeiraezanin@bol.com.br ) à minha coluna da semana passada: “Faltou apenas que esse jornal dissesse que os juízes norte americnos, no caso ‘a fina flor do esquerdismo judicial supremo’, como afirmam vocês, são filiados ao Partido dos Trabalhadores, lembrando aquele episódio dantesco no qual Paulo Maluf disse que o promotor suíço que investiga suas suas contas bancárias na Suiça era petista.” A dificuldade de discutir com brasileiros, hoje em dia, é essa. Opiniões baseiam-se em premissas factuais. Quando um indivíduo desconhece os fatos, só lhe resta concebê-los à imagem e semelhança da sua fantasia. Quando milhões de pessoas desconhecem os fatos, a fantasia coletiva que os substitui adquire uma espécie de autoridade, e cada indivíduo que se apóia nela acredita-se firmemente instalado na realidade. Daí a segurança, o ar de superioridade quase divina com que zomba daquilo que ignora, sem saber que não faz de palhaço senão a si próprio. Mas o sr. Zanin acrescenta à zombaria a insinuação maliciosa: “Gostaria de sugerir um slogan para este jornal: Diário do Comércio – um jornal a serviço do PSDB.” Isso é mais ridículo ainda, embora o sr. Zanin seja o último a percebê-lo. A defesa incondicional da propriedade privada, que é a tônica do Diário do Comércio , não poderia fazer dele o porta-voz apropriado de um partido filiado à Internacional Socialista.

O teste final

Congregando mais de cem partidos e uma dúzia de gangues de narcotraficantes e seqüestradores milionários, o Foro de São Paulo é a organização política mais poderosa que já existiu na América Latina. Há uma década e meia, no Brasil, na Argentina, no Equador, na Venezuela, em Cuba, no Uruguai, na Bolívia e em outros países do continente, não se vota uma lei, não se lança um programa, não se inaugura uma campanha social que não esteja dentro dos cânones aprovados pelo Foro.

Tal é a entidade cujo conhecimento a mídia brasileira, criminosamente, tem sonegado ao público, e cuja existência alguns deformadores de opinião, como aquele patético sr. Luis Felipe de Alencastro, da Veja , chegaram a negar até data muito recente.

O Foro foi fundado em 1990 por Lula e Fidel Castro. Sem a afinação estratégica entre os partidos de esquerda, que ali se aperfeiçoa em reuniões mais ou menos anuais, a ditadura Chávez ou a ascensão eleitoral de Lula teriam sido impossíveis. O próprio Lula reconheceu isso, ao afirmar, no seu discurso de posse, que devia sua eleição “não só a brasileiros mas a outros latino-americanos” (por incrível que pareça, essa confissão explícita da influência estrangeira nas eleições nacionais não suscitou escândalo nem curiosidade entre nossos jornalistas). Quanto à aliança Lula-Castro-Chávez, que está na base de tudo isso, o próprio Lula, com exemplar cara-de-pau, disse ao entrevistador Boris Casoy que ela era apenas invencionice de “um picareta de Miami”, alusão desrespeitosa ao escritor cubano Armando Valladares, recordista mundial de permanência na cadeia, sob torturas, por delito de opinião.

Mas a história não era invencionice, nem havia começado com Valladares.

No Brasil, muito antes disso, o primeiro a denunciar a existência do Foro, bem como sua submissão estratégica aos ditames da esquerda chique norte-americana, (os Clintons e tutti quanti ), foi o advogado paulista José Carlos Graça Wagner, que havia reunido uma impressionante documentação a respeito mas foi impedido, por doença grave, de prosseguir seu trabalho de investigação.

Nunca um jornal brasileiro ou programa de TV deu espaço ao dr. Graça Wagner para expor o que sabia do Foro de São Paulo. Quando tive uma breve oportunidade de acesso aos documentos, passei a escrever sobre o assunto na Zero Hora de Porto Alegre, no Globo , na Folha de S. Paulo , no jornal eletrônico Mídia Sem Máscara e em duas revistas americanas, sendo em seguida reforçado pela colaboração de Graça Salgueiro, Carlos Azambuja, Heitor de Paola e outros comentaristas marginalizados pela grande mídia. As reações que encontramos variaram entre o silêncio covarde, as explosões de ódio e as desconversas cínicas que apresentavam o Foro como uma inofensiva arena de debates sem poder decisório.

Mais tarde, o dr. Constantine Menges, analista estratégico do Hudson Institute em Washington DC , escreveu a respeito do Foro vários artigos, que os luminares da mídia brasileira, numa lição medonha de antijornalismo, trataram de desmentir sem publicá-los, espalhando as histórias mais escabrosas sobre a pessoa do autor e tapando antecipadamente a boca do acusado.

Agora, nada mais fácil do que averiguar quem disse a verdade e quem mentiu. Chegou a hora do teste final. Como o filósofo que andando provava o movimento, a décima-segunda assembléia do Foro inexistente, celebrando seus quinze anos de atividade jamais realizada, está reunida em São Paulo desde sexta-feira até hoje, na sede do Parlatino, na Barra Funda, à av. Auro Soares de Moura Andrade, 564. Quem não quiser ir até lá pode tirar a dúvida lendo o programa dos debates no site do próprio PT.

Desse modo, não apenas caem por terra quinze anos de negações mentirosas, mas vai para o brejo também a desconversa acima mencionada, já que, à imitação do que vinha fazendo em todas as suas assembléias, o Foro já anunciou — para hoje — o seu momento culminante: a redação das Resoluções que orientarão por um ano os partidos filiados. Mostra assim que não existe só para discutir à toa, mas para decidir e ser obedecido.

Significativamente, as FARC e o MIR chileno, as duas organizações criminosas tão ativas nos encontros anteriores, e cuja colaboração com o PT no quadro do Foro os apologistas do petismo negavam contra toda evidência, abstiveram-se de comparecer à festa. Honroso sacrifício! Sua presença, nesta hora em que toneladas de sujeira petista estão vindo à tona, teria sido mesmo uma inconveniência. Algum jornalista, cansado de ser bom menino, poderia até mesmo ceder à tentação abominável de fazer perguntas.

Festa

Vou hoje a Virginia Beach para ver a queima de fogos, os concertos de bandas, a alegria nacional de um país que tem amor-próprio e razões para isso. A diferença entre os EUA e o Brasil começa aí: naquele, a festa mais popular é o Dia da Independência; neste, a baderna geral que celebra a fuga às obrigações, a abdicação da realidade. São galáxias de distância entre um patriota com bandeira na mão e um folião bêbado vestido de baiana.

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