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Uma experiência com o Santo Daime

6 de junho de 2000

Já faz uns meses que saiu, em República, a narrativa do sr. Otávio Frias de Oliveira Filho de suas experiências com o Santo Daime, das quais saiu mais cético do que nunca.

Como o assunto é de muito interesse para meus alunos, acho que não é tarde para fazer, em torno desse relato, algumas observações, a primeira das quais é a própria expressão da minha surpresa ante o fato de que um cético esperasse obter, da ingestão de uma substância alucinógena – acompanhada ou não da audição de pregações sobre suas supostas virtudes revelatórias – alguma conclusão válida a respeito dos fenômenos espirituais e místicos em geral.

Transes induzidos por drogas simplesmente desligam algumas defesas pragmáticas habituais e deixam o sujeito voando, durante uns minutos, pela variedade de mundos que sua fantasia possa criar com reminiscências de leituras, imagens soltas na memória e sensações ampliadas. Isso tem tanto a ver com o conhecimento espiritual quanto um bebê fazer pipi na fralda tem a ver com o Kama-Sutra. O que um sujeito consegue com tais “experiências” é apenas danar a pouca aptidão que ainda lhe reste para conhecimentos dessa ordem, e eu gostaria que este meu aviso chegasse ao sr. Otávio Frias Filho em tempo de preservá-lo desse efeito.

O conhecimento espiritual é bem alheio a qualquer gênero de “experiências”, principalmente porque reside na aquisição, espontânea ou voluntária, de uma nova maneira de ser geral e permanente que, por isto mesmo, não pode ser objeto de sensação ou experiência tanto quanto a personalidade mesma, considerada em conjunto, jamais o é.

Essa nova maneira também pouco tem a ver com mudanças exteriores na conduta ou nos sentimentos, mas se manifesta não raro por efeitos de ordem bem sutil e pouco perceptíveis ao meio, como por exemplo a aquisição de um discernimento intelectual fora do comum, da compreensão imediata e intuitiva do sentido das Escrituras, da capacidade de aplacar instantaneamente ódios e temores, de discretos dons curativos, etc., conforme a variedade inesgotável das propensões individuais.

Do ponto de vista cognitivo, a mudança consiste principalmente num “recuo” que permite a seu beneficiário olhar a vida presente numa outra escala. Um de seus mais óbvios e primários sinais é o “sentido de eternidade”, que, para encurtar a explicação, direi que é a capacidade de enxergar o fluxo do tempo como se fosse um círculo, onde cada ponto está ligado a um centro que por sua vez não flui (não confundir com o “eterno retorno”, que é apenas a aparência materializada e caricatural que essa noção adquire para quem a conhece apenas por seus reflexos no imaginário).

Essa aquisição – e o sentido de eternidade é apenas um primeiro passo numa série potencialmente ilimitada de conquistas espirituais – nada tem a ver com “vivenciar uma experiência”. Ela é um modo de ser no qual, sem qualquer mudança sensível, a consciência do homem espiritual é incorporada e potencializada de maneira permanente e mesmo imperceptível a não ser por seus efeitos a longo prazo. A distância que isso guarda de toda “experiência” é similar àquela que existe entre um animal pintado na tela e um animal vivo.

Uma outra característica do conhecimento espiritual é o seu caráter imediato, incontestável e nítido, que torna desnecessária qualquer explicação suplementar e, ao contrário, produz a capacidade de explicar de maneira perfeitamente clara – a quem conheça a mesma linguagem por outras fontes, é certo – uma infinidade de coisas que o próprio sujeito antes não sabia nem imaginava. O conhecimento espiritual é freqüentemente descrito como luz sobre luz, ou como uma luz dentro de outra luz, precisamente porque nada tem de enigmático mas é a solução de muitos enigmas exceto o derradeiro, que é o mistério de sua claridade mesma. Visões e sonhos, em si, nada têm de espiritual, podendo ser apenas, acidentalmente, o veículo psíquico – e quase “corpóreo” – que transporta o conhecimento. A maior parte dos conhecimentos espirituais se transmite sem qualquer imagem ou sensação. O teste decisivo é aquilo que fica, aquilo que se incorpora na alma como evidência intuitiva permanente, pouco importando o canal psíquico do qual tenha se aproveitado casualmente ou mesmo a completa ausência de um canal identificável. O sr. Otávio Frias, que saiu da sua experiência carregando todas as dúvidas com que entrou, deve portanto estar ciente de que sua “experiência” não teve nada de espiritual e consistiu apenas de uma excitação neuronal momentânea.

Mas que nada tenha tido de espiritual não quer dizer que seja nula do ponto de vista dos efeitos espirituais que dela podem resultar para o sujeito do experimento, que neste caso se diria mais propriamente sua vítima. Pois uma das marcas características da pseudo-espiritualidade é precisamente o contraste patético entre a intensidade psíquica hipertrófica das vivências subjetivas e o seu resultado cognitivo dúbio ou irrelevante.

Que para pessoas muito presas às limitações da percepção pragmática vulgar uma experiência desse tipo possa ter às vezes um impacto desestruturante, eventualmente benéfico pelo fato de abrir seu pensamento à concepção de possibilidades mais amplas de conhecimento, é coisa que não se pode negar. Mas, de um lado, esse efeito consiste apenas numa oportunidade de mudar de opinião, o que está longe de ter qualquer alcance espiritual por mínimo que seja, e, de outro lado, o mesmo resultado pode advir de qualquer experiência inusitada, como uma doença grave, um perigo de morte ou uma paixão amorosa intensa.

Uma época em que essas experiências, por si, adquirem o prestígio do “espiritual” (ao ponto de a inevitável constatação da sua inocuidade servir de argumento em favor do materialismo), é uma época em que uma mentalidade pueril se assenhoreou de todas as consciências, dividindo-as entre uma credulidade sonsa e uma suspicácia apedêutica, que não podem sair do materialismo puro e simples senão para cair naquilo que o Dalai-Lama chamou “materialismo espiritual”, e do qual certamente a proposta do Santo Daime é amostra típica e inconfundível.

Nunca é demais lembrar que, se para as classes letradas de hoje essas questões de espiritualidade são uma selva selvaggia onde só penetram a medo e com emoções de noviças setecentistas ante um livro picante, outras culturas, antes da nossa, tiveram extensa prática nesses domínios e deixaram seus conhecimentos registrados em obras que um homem informado, se deseja opinar nessa área, não deve ignorar. A tipologia das experiências interiores, por exemplo, é assunto arquiconhecido dos que se dedicam a estudos teológicos, mesmo dentro do campo católico que não está a uma distância inacessível do nosso meio, mas ao qual tantos hoje sonegam atenção por presumir, ingenuamente, que por milagre nasceram providos de um nível de consciência superior que remete a uma desprezível “idade das trevas” toda a tecnologia espiritual das épocas que tiveram uma, e principalmente (argh!) a católica.

Para tirar dessa ilusão quem nela esteja. recomendo a leitura de um manual elementar que ainda umas décadas atrás era estudado em todos os seminários, e que versa sobre o “discernimento dos espíritos”, isto é, a ciência de distinguir a fonte humana ou biológica, angélica ou demoníaca de nossas “experiências” interiores. Trata-se de Les Phénomènes Mistiques Distingués de leurs Contrafaçons Humaines et Diaboliques, de Mons. Albert Farges, Paris, Maison de la Bonne Presse, 1920. O fenômeno Leonardo Boff, por exemplo, explica-se inteiramente pela supressão desse tipo de estudos do programa dos seminários.

Há milhares de obras similares de origem budista, islâmica, judaica etc., atestando a existência de um consenso mundial a respeito das estruturas do universo espiritual, e uma gigantesca antologia foi reunida por Whitall N. Perry em A Treasury of Traditional Wisdom, Pates Manor, Bedfont, Middlesex, Perennial Books, 1981, a cujo estudo seria bom que o sr. Otávio Frias Filho – ou qualquer outro interessado – se dedicasse atentamente antes de se entregar a novas “experiências”.

Olavo de Carvalho

Entre dois silêncios

Mendo Castro Henriques

Euronotícias, Lisboa, 2 de junho de 2000

netmendo@mail.telepac.pt

“Quem é ?” Foi assim que o mundo recebeu o Cardeal Karol Wojtyla, Arcebispo de Cracóvia, quando o colégio dos cardeais o elegeu Papa, a 10 de Outubro de 1978. Havia quem o conhecesse do Concílio Vaticano II onde marcara posição com uma proposta sobre a importância da liberdade religiosa, para católicos e não-católicos. Mas a população na praça de S. Pedro, à espera de fumo branco, recebeu com um longo momento de silêncio, registado pela televisão, o primeiro papa não-italiano em 456 anos, e o primeiro polaco entre os 264 papas da história da Igreja.

Após o silêncio, todos passaram a comunicar facilmente com este homem nascido a 18 de maio de 1920, em Wadowice, e forjado no grande caldeirão do séc. XX que é a Polónia. Aí se tinham cruzado Nazismo e Holocausto, Comunismo e Gulag, autoritarismo e democracia. E o jovem Wojtyla que dera provas de poeta, filósofo, operário, actor, desportista, e poliglota, tornou-se sacerdote antes de ficar a pessoa melhor informada no mundo e o papa mais viajado da história. Assim conduziu a Igreja para o séc. XXI.

Foi este indivíduo, nascido no segundo mundo, pontífice com sede no primeiro mundo e viajante e evangelizador incansável do terceiro mundo, que quis trazer para a Igreja os que se sentiram frequentemente isolados e alienados pelos muros do Vaticano. Mostrou sabedoria e senso comum e qualidades de comunicador ímpar. Não discriminou ninguém, de acordo com o seu motto mariano totus tuus. E não obstante a tentativa de assassinato a 10 de Maio 1981, tem demonstrado pelos anos fora capacidade crescente para Atravessar o Limiar da Esperança, título de um seu livro de 1996. Não se cansa, nem sequer à medida que se aproxima um segundo silêncio na sua vida.

Mas é tudo menos um super-homem. As imagens e as realidades do pontificado de Karol Woytyla irão sugerir muitos mitos sobre JP II, a celebridade. E haverá também forças interessadas em secundarizar a sua acção, esquecendo que ele é porta-voz de um movimento que não começou nem terminará com ele e que impulsiona a abertura da sociedade. João Paulo II ensinou a humanidade – porque é de todos que ele cuida – a não se deixar dominar por um poder unidimensional.

Nos 22 anos de pontificado que já conta, o papa ajudou a Igreja a forjar uma voz social e política isenta. Com os fundamentos teológicos cristãos, ensinou que o poder dos valores deve equilibrar os valores do poder. Outra coisa não se poderia esperar de quem conheceu as encruzilhadas políticas do totalitarismo. Mas a coragem, a inteligência e a moderação necessárias para esta mensagem são um seu dote pessoal, indispensável para cristãos e não-cristãos. Os não-cristãos têm que perceber que a liberdade fica mais defendida por uma voz da Igreja que contribui para quebrar a possibilidade de qualquer monopólio do poder –americano, europeísta, asiático, seja o que for. Os cristãos têm que interiorizar que nunca mais a Igreja utilizará os aparelhos de poder para impor uma sociedade de verdade única, mas que, em democracia, integra a sociedade civil com obrigações e direitos perante o Estado e o sector privado.

Com que forças conseguiu o papa incutir este exemplo num mundo de forças e de poderes ? Qual, afinal, o poder do papa e da Igreja ? A Igreja Católica não tem força militar; a potência económica da Santa Sé é débil; os cristãos são fisicamente perseguidos em muitos países. O que move as populações do Brasil, África, Europa, Filipinas a ter esperança nas palavras do papa? O que nos toca nas mensagens para as vítimas de Hiroshima e de Auschwitz, bem como da Bósnia, Kossovo, Tchetchénia e Kalisz ? O que o move nos pedidos de perdão e de reconhecimento dos erros da Igreja ? O que faz dele um papa quase português com devoção a Fátima ? É evidente mas não é demais repetir.

Toda a religião possui elementos políticos e o desempenho de um político e de uma política é avaliado segundo três dimensões: bem comum, eficácia, e valores. Mas enquanto o alcance de bem comum e eficácia também possam ser distorcidos e manipulados em democracia, o sentido dos valores sai do controle público devido aos fundamentos culturais; para o Papa, devido aos fundamentos religiosos. Em tempos recuados chamava-se a isto o poder espiritual, mas nem tudo ficou igual desde a célebre carta de 496 do Papa Gelásio ao Imperador Anastácio. Felizmente.

Ora o papa possui uma filosofia rigorosa sobre a supremacia individual perante os poderes da colectividade. Numa época de cultura de morte, guerras não-declaradas, genocídio, eutanásia, aborto e outros derivados do totalitarismo no Ocidente, e de exploração e pobreza imposta por políticos corruptos no terceiro mundo, o papa apresenta-se como o grande representante do poder dos valores. Numa época em que os media propagam banalidade, brutalidade, egoísmo, desconfiança, ele apela ao amor e à solidariedade, e mostra como vale a pena viver a humanidade. Ninguém pode viver os valores por ninguém. E esta mensagem, na linguagem das filosofias ou na linguagem de Jesus Cristo, não é manipulável.

JP II adquiriu um saber de experiência nativa. Lutou contra o totalitarismo nazi na 2ª guerra. Opôs-se ao comunismo na sua Polónia desde a década de 40. Na primeira metade da década de 1980, papa e Igreja foram um ponto seguro para o sindicato Solidariedade. Os acontecimentos de 1989, como mostra na encíclica Centesimus Annus de 1991, foram possibilitados pela actuação polaca. A história confirma que JP II estava decidido a regressar à terra natal caso os tanques soviéticos rolassem em Varsóvia. E em Junho de 1999, demonstrou na sua pátria por que razão materialismo e liberdade são rivais, e disputam a economia de mercado. A história dirá ainda, como afirmou o cardeal Sodano em 13 de Maio de 2000, que o terceiro segredo de Fátima também anuncia o fim da guerra fria.

O exemplo polaco multiplicou-se e permitiu ao Papa adquirir uma voz social e política absolutamente isenta que mudou a agenda da Igreja. O modelo repetiu-se com variações em todo o globo. À América Latina, o papa trouxe a sua intensa devoção individual e excelentes credenciais anti-totalitárias. No México e no Brasil, envergonhou os capitalistas de coração insensível à solidariedade. Em Cuba esteve contra o embargo comercial imposto pelos EUA e contra as violações dos direitos humanos por Fidel, mais preocupado com o sofrimento dos cubanos no actual regime do que com os resíduos comunistas do mesmo.

É um papa sem papas na língua. Chama subdesenvolvidos aos países com desemprego. Indicou que a unidade de Europa é somente possível com um retorno à fé cristã. Insistiu que cada nação deve conceder a instrução e a pesquisa científica a todos. No vácuo deixado pelo comunismo, JP II está cada vez mais incomodado pelo ídolos do capitalismo. Um ídolo é sempre um ídolo, mesmo que se pareça com um dólar. Nem o “padre” Nobel Kenneth Arrow – o mentor da Centesimus Annus – ensinou que o mercado resolve a distribuição de bens públicos. Nem JP II foi apenas um bom parceiro da guerra fria para os EUA.

Quando João Paulo II fala, a maioria das populações rejubila embora a maioria dos intelectuais ainda desconfie. Mas por que razão centenas de milhões de mulheres e homens escutam com cuidado e amor as suas palavras ? Talvez porque ele mostra, simplesmente, como vale a pena viver. Depois, é acusado de restringir o direito de escolha no uso das pílulas e preservativos, de estar contra o controle de nascimento, o aborto, a pena de morte, a eutanásia, contra as segundas núpcias após o divórcio, contra padres do sexo feminino, e pelo celibato no sacerdócio. Mas ninguém discute que ele defende acima de tudo a dignidade da vida humana.

Tendo nomeado mais de 3/4 quartos dos cardeais que escolherão o seu sucessor, e um grande número de bispos que um dia serão cardeais, João Paulo II estabilizou a agenda da Igreja para a geração vindoura. Seja qual for o sucessor – Carlo Maria Martini, Arcebispo de Milão, ou o Cardeal Camillo Ruini, ou o brasileiro Lúcio Moreira Neves ou, mais provavelmente nenhum destes três, a agenda da Igreja está traçada.

À medida que transitamos do séc. XX para o XXI, e do 2º para o 3º milénio, sente-se como o papa trabalhou, oportuna e inoportunamente, por toda a humanidade ao levar a Igreja onde ela foi desejada. Não é apenas o bilião de católicos que lhe deve estar grato. Ante o novo silêncio que se aproxima e os mitos que ficam pelo caminho, todos podem agradecer que alguém cuide da humanidade como o fez Karol Wojtyla, bispo de Roma e pastor universal da Igreja.

 

Dona Marilena e a politização

Gilberto de Mello Kujawski

O Estado de S. Paulo, quinta-feira, 1 de junho de 2000

As manchetes enganam. O Caderno 2 publicou, no dia 29 de abril passado, matéria assinada por Antonio Gonçalves Filho com o título “Despolitização é a preocupação de Marilena Chauí”. Imaginei logo que a filósofa uspiana estivesse preocupada com o excesso de politização que campeia nos países subdesenvolvidos. Ao ler a matéria, dei-me conta de que era o contrário. Dona Marilena reclama da falta de politização em nossa sociedade e em nossa juventude.

Tem ela razão, mas nem toda a razão. Politização significa consciência social e nacional, e tanto nossa sociedade como nossa juventude vivem enclausuradas no individualismo, na mais perfeita indiferença pelo destino coletivo, o que é muito grave. Primeiro, porque, assim, deixam de participar do futuro do seu país, no qual estão envolvidos como a gota d’água dentro da nuvem. Para onde for o Brasil, irá cada um de nós. Segundo, porque quem não quer saber de política cai, indefeso, em sua trama maquiavélica, feito presa fácil da demagogia e da mentira, sem saber distinguir o trigo do joio. Quem não desenvolve um mínimo de consciência política será facilmente arrastado, sem defesa, pelas correntes políticas que atuam em seu meio em busca de aliciamento.

Até aqui, tudo bem. A consciência política é indispensável a quem vive na sociedade dos homens, e o brasileiro está muito atrasado nessa matéria.

Entretanto, tenho motivos para suspeitar que a “politização” requerida por dona Marilena não está bem no lugar em que deveria estar. Explico-me. A politização está bem e é indispensável, mas não tem de ser colocada na frente de tudo, como o carro-chefe ou a locomotiva arrastando todos os compartimentos da vida e da cultura. Porque a politização, sustentada polemicamente como atitude “a priori”, produzirá o efeito deletério de subjugar todas as coisas ao critério político, tomado como medida universal de tudo o que existe.

A politização “avant toute chose” gera o maniqueísmo, a divisão do mundo entre o bem e o mal, a luz e as trevas, a direita e a esquerda. Na matéria do Caderno2 está escrito que dona Marilena “não admite a existência de um deus onipotente controlando seu destino”, afirmação que me lembrou certa passagem em que o compositor Reynaldo Hahn, fanático por Mozart, ouve de certa senhorita da sociedade que ela “não gostava de Mozart”. Hahn responde, de pronto: “Isso não tem nenhuma importância.” Dona Marilena não acredita em Deus? Isso não tem a menor importância. “Para ela, o mundo é governado pelos homens e continua dividido entre direita e esquerda.” Magnífica declaração de maniqueísmo.

Na obsessão pela politização geral e irrestrita de tudo vai implícita a crença de que a política tem o poder de transformar o mundo. Essa é posição ainda muito século 19. Não se percebe que a política é uma bitola estreita, instrumento menor e de curto alcance, insuficiente para por si só transformar o mundo. A política somente transforma o mundo quando a transformação já está condicionada pela ação conjunta de fatores sociais, religiosos, econômicos e culturais. Por isso a politização não pode ser posta na frente de tudo.

Ao contrário do que presume a esquerda, a politização não deve ser transmitida no leite materno. A politização deve ocorrer só depois que os ossos do esqueleto e do crânio ficarem mais fortes. É preciso ler muitas e variadas matérias, amealhar alguma experiência da vida, experimentar a existência por todos os lados, antes de aderir a esta ou àquela confissão política. A politização é obra da maturidade. Só assim ela evita o maniqueísmo.

Os intelectuais da esquerda levam a politização ao delírio. E a direita faz outro tanto. De ambos os lados se cai em conceitos ridículos como a “ciência judaica” de que falavam os nazistas, ou a “ciência burguesa” denunciada pelos stalinistas. Coisas existem que não podem ser politizadas, como a ciência, a arte, a religião. Porque, quando politizadas, degeneram em outra coisa, na pseudociência, na subarte e na falsa religião.

Como politizar o amor e a amizade? A dor de um pai que perdeu o filho, a graça de um chafariz ou a beleza peregrina da mulher que passa?

Foi em Madri, às vésperas da Guerra Civil, quando lavrava a discórdia e os ânimos estavam acaloradíssimos. Entrou no bonde uma mulher magnífica, de radiosa beleza e sedução, muito elegante e bem vestida. Todos os presentes, homens e mulheres, a olharam, embevecidos. Menos o condutor. Este dirigiu-lhe um olhar de ódio mortal. Comentário de uma testemunha: “Estamos perdidos. Quando Marx pode mais que os hormônios, já não há o que fazer.”

Eis aí o que faz a politização cega e fanática: substitui a realidade concreta, uma pessoa de carne e osso, na pujança de seu significado, na diversidade de seus aspectos, na sua riqueza inexaurível de aspectos e sabores, por um mísero esquema classista, uma tosca classificação, um rótulo vazio. A politização cega suprime o concreto em favor de uma abstração.

Semelhante atitude pode servir à causa e ao partido, mas empobrece atrozmente a realidade.

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