Gilberto de Mello Kujawski

O Estado de S. Paulo, quinta-feira, 1 de junho de 2000

As manchetes enganam. O Caderno 2 publicou, no dia 29 de abril passado, matéria assinada por Antonio Gonçalves Filho com o título “Despolitização é a preocupação de Marilena Chauí”. Imaginei logo que a filósofa uspiana estivesse preocupada com o excesso de politização que campeia nos países subdesenvolvidos. Ao ler a matéria, dei-me conta de que era o contrário. Dona Marilena reclama da falta de politização em nossa sociedade e em nossa juventude.

Tem ela razão, mas nem toda a razão. Politização significa consciência social e nacional, e tanto nossa sociedade como nossa juventude vivem enclausuradas no individualismo, na mais perfeita indiferença pelo destino coletivo, o que é muito grave. Primeiro, porque, assim, deixam de participar do futuro do seu país, no qual estão envolvidos como a gota d’água dentro da nuvem. Para onde for o Brasil, irá cada um de nós. Segundo, porque quem não quer saber de política cai, indefeso, em sua trama maquiavélica, feito presa fácil da demagogia e da mentira, sem saber distinguir o trigo do joio. Quem não desenvolve um mínimo de consciência política será facilmente arrastado, sem defesa, pelas correntes políticas que atuam em seu meio em busca de aliciamento.

Até aqui, tudo bem. A consciência política é indispensável a quem vive na sociedade dos homens, e o brasileiro está muito atrasado nessa matéria.

Entretanto, tenho motivos para suspeitar que a “politização” requerida por dona Marilena não está bem no lugar em que deveria estar. Explico-me. A politização está bem e é indispensável, mas não tem de ser colocada na frente de tudo, como o carro-chefe ou a locomotiva arrastando todos os compartimentos da vida e da cultura. Porque a politização, sustentada polemicamente como atitude “a priori”, produzirá o efeito deletério de subjugar todas as coisas ao critério político, tomado como medida universal de tudo o que existe.

A politização “avant toute chose” gera o maniqueísmo, a divisão do mundo entre o bem e o mal, a luz e as trevas, a direita e a esquerda. Na matéria do Caderno2 está escrito que dona Marilena “não admite a existência de um deus onipotente controlando seu destino”, afirmação que me lembrou certa passagem em que o compositor Reynaldo Hahn, fanático por Mozart, ouve de certa senhorita da sociedade que ela “não gostava de Mozart”. Hahn responde, de pronto: “Isso não tem nenhuma importância.” Dona Marilena não acredita em Deus? Isso não tem a menor importância. “Para ela, o mundo é governado pelos homens e continua dividido entre direita e esquerda.” Magnífica declaração de maniqueísmo.

Na obsessão pela politização geral e irrestrita de tudo vai implícita a crença de que a política tem o poder de transformar o mundo. Essa é posição ainda muito século 19. Não se percebe que a política é uma bitola estreita, instrumento menor e de curto alcance, insuficiente para por si só transformar o mundo. A política somente transforma o mundo quando a transformação já está condicionada pela ação conjunta de fatores sociais, religiosos, econômicos e culturais. Por isso a politização não pode ser posta na frente de tudo.

Ao contrário do que presume a esquerda, a politização não deve ser transmitida no leite materno. A politização deve ocorrer só depois que os ossos do esqueleto e do crânio ficarem mais fortes. É preciso ler muitas e variadas matérias, amealhar alguma experiência da vida, experimentar a existência por todos os lados, antes de aderir a esta ou àquela confissão política. A politização é obra da maturidade. Só assim ela evita o maniqueísmo.

Os intelectuais da esquerda levam a politização ao delírio. E a direita faz outro tanto. De ambos os lados se cai em conceitos ridículos como a “ciência judaica” de que falavam os nazistas, ou a “ciência burguesa” denunciada pelos stalinistas. Coisas existem que não podem ser politizadas, como a ciência, a arte, a religião. Porque, quando politizadas, degeneram em outra coisa, na pseudociência, na subarte e na falsa religião.

Como politizar o amor e a amizade? A dor de um pai que perdeu o filho, a graça de um chafariz ou a beleza peregrina da mulher que passa?

Foi em Madri, às vésperas da Guerra Civil, quando lavrava a discórdia e os ânimos estavam acaloradíssimos. Entrou no bonde uma mulher magnífica, de radiosa beleza e sedução, muito elegante e bem vestida. Todos os presentes, homens e mulheres, a olharam, embevecidos. Menos o condutor. Este dirigiu-lhe um olhar de ódio mortal. Comentário de uma testemunha: “Estamos perdidos. Quando Marx pode mais que os hormônios, já não há o que fazer.”

Eis aí o que faz a politização cega e fanática: substitui a realidade concreta, uma pessoa de carne e osso, na pujança de seu significado, na diversidade de seus aspectos, na sua riqueza inexaurível de aspectos e sabores, por um mísero esquema classista, uma tosca classificação, um rótulo vazio. A politização cega suprime o concreto em favor de uma abstração.

Semelhante atitude pode servir à causa e ao partido, mas empobrece atrozmente a realidade.

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