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Condor Choca Militantes

Janer Cristaldo

Baguete Diário, 26 de maio de 2000

Para eles, as nações não tinham fronteiras e o palco de lutas era o planeta todo. Em 35, uma judia berlinense, oficial do Exército Vermelho soviético, veio coordenar a revolução no Brasil, assessorada por aparatchiks belgas, alemães, franceses e argentinos. Osvaldo Peralva, membro brasileiro do Kominform, sediado em Bucareste, ao denunciar a conspiração toda em O Retrato (Editora Globo, 1962), foi banido do mundo intelectual e classificado como agente da CIA. O que Peralva denunciou com conhecimento de causa foi mais tarde documentado por William Waack, no excelente Camaradas (Companhia das Letras, 1993), com pesquisas nos arquivos do Kremlin.

Em 36, foram todos para a Espanha, dar apoio bélico e moral a Stalin, que tentava imobilizar a Europa estrangulando-a com o controle do Mediterrâneo. Juan Negrín, ministro da Fazenda do governo Largo Caballero, raspou os cofres da Espanha em troca de aviões, carros de combates, canhões, morteiros e metralhadoras russas. Ao celebrar com um banquete no Kremlin a chegada das 7.800 caixas com 65 quilos de ouro cada uma (três quartos das reservas espanholas), Stalin, evocando um ditado russo, comemorou: “Os espanhóis não voltarão a ver seu ouro, da mesma forma que ninguém pode ver as orelhas”. Aproveitando a vaza, um vigarista malaguenho fez fortuna internacional, dando o título de Guernica a um quadro em torno à morte de um toureiro.

Em 59, eles deram apoio logístico e de mídia a Fidel e Che, para instalar a mais longa ditadura da América Latina. De Paris, um filósofo feio, baixinho e confuso veio dar seu aval ao tirano do Caribe. Uma foto da época é das mais emblemáticas: Sartre, de pescoço espichado para o alto, adorando Castro como um Deus. Em La Lune et le Caudillo (Gallimard, 1989), Jeannine Verdès Leroux nos relembra este momento de extraordinária poesia.

— Todos os homens têm direito a tudo que eles pedem – pontifica Castro. – E se eles pedem a lua? – pergunta Sartre. O ditador retoma seu charuto e se volta para o filósofo baixinho: – Se eles pedem a lua, é porque têm necessidade dela.

Pediam a lua no bestunto do ditador e do filósofo. Em verdade, queriam dólares, pão e liberdade. Da mesma forma que a Espanha, em 36, foi um campo de treinamento para a Segunda Guerra, a América Latina era laboratório de experimentos sociais para os filosofadores europeus que, no dizer de Camus, assestavam suas poltronas no sentido da História.

Também dos salões de Paris vinha o apoio teórico a Che Guevara e seus celerados, através de Régis Debray, mais tarde ministro de Mitterrand. Che morreu em odor de santidade e hoje é cultuado na Bolívia, como San Ernesto de la Higuera. Danielle Mitterrand, a viúva enamorada pela figura romântica do guerrillero, dá apoio a guerrilha zapatista em Chiapas, comandada por um agitprop branco travestido de líder indígena, o subcomandante Marcos. E a mulher de Debray criou a biografia fictícia da guatemalteca Rigoberta Menchú, embuste que mereceu o prêmio Nobel da Paz de 92.

Nos anos 60, eles tentaram reeditar no Brasil a Intentona de 35. Para isso, foram treinados na China, União Soviética, Cuba e Argélia. Fracassados e escorraçados em 64, os sobreviventes migraram ao Chile para assessorar Allende e ao Uruguai para dar apoio aos tupamaros. De Cuba, vinha o brado de guerra: “un, dos, tres, mil Vietnãs”. Derrotados no Uruguai em 73 por Bordaderry, deixaram o país conhecido como a “Suíça latino-americana” em destroços, com mais da metade de sua população ativa refugiada no exterior. Para simbolizar o apoio de Cuba ao regime marxista que se instalara no Chile, Castro presenteou Allende com uma submetralhadora. Presente de grego: foi a mesma que o líder marxista usou para suicidar-se em 73. Derrubado o regime de Allende, eles rumaram à Argentina e Portugal, onde a “Idéia” estava em marcha. Em 76, instaura-se, com Videla, a ditadura militar na Argentina. Era o momento de dar de rédeas rumo a outros nortes.

Em 75, alguns militares lusos, entusiasmados com a derrocada de um salazarismo já moribundo, tentaram instalar na península ibérica a república socialista que os espanhóis já haviam exorcizado. A esperança migrara para Portugal. Ou para o Peru, onde o Sendero Luminoso e o Tupac Amaru assassinaram, nos 80, milhares de peruanos, sob a inspiração humanitária do Grande Timoneiro.

Era o que, em Paris, chamávamos de la grande randonée. Aventureiros de todos os quadrantes, alguns imbuídos de nobres ideais, outros de ressentimentos e vontade de poder, migravam de um país a outro para “fazer a Revolução”. Em qualquer geografia sentiam-se em casa: sempre havia um comitê para recebê-los como heróis e delegar-lhes novas tarefas. Só no Rio de Janeiro, o cardeal Eugenio Sales alugou 80 apartamentos para abrigar aparatchiks de toda a América Latina, que chegaram a acolher grupos de 150, simultaneamente. O total de militantes hospedados, entre 76 e 82, chegou a cinco mil pessoas.

Eles percorreram o século e o continente latino-americano, receberam doutrinação ideológica e treinamento de guerrilha em diversos países. Quem atesta esta internacionalização são os próprios guerrilheiros em suas memórias. Foram financiados pela China, ex-URSS e até pela miserável Cuba. Além de dispor santuários para onde quer que fugissem, gozavam de exílios confortáveis nas sociais-democracias européias. Se um aparatchik era preso na mais discreta fronteira do mundo, no outro dia manifestantes em Paris, Berlim, Estocolmo ou Londres pediam sua libertação. A luta não tinha fronteiras. Agora condenam, indignados, a chamada operação Condor.

Que horror! Os militares da América Latina trocavam informações e serviços para combatê-los. Isto me lembra um debate dos anos 70 em Estocolmo. Pacifistas denunciavam as Forças Armadas suecas, porque estas usavam armas que feriam e matavam. Um oficial, muito pedagógico, teve de vir a público para esclarecer: “a função de uma arma é ferir e matar”.

Consta que os responsáveis pela operação Condor até se comunicavam em código. Maquiavélicos, estes senhores.

Baguete

Coerência e adivinhação

Olavo de Carvalho

São Paulo, Jornal da Tarde, 25 de maio de 2000

O que se entende como coerência no Brasil é a unidade de um núcleo de atitudes – e nem mesmo de atitudes gerais, mas especificamente políticas -, que devem permanecer constantes ao longo da vida e colorir com a sua peculiar tonalidade todas as nossas opiniões sobre esportes e culinária, física quântica e vida familiar, crenças religiosas e adestramento de animais. Isso não é coerência, é obsessão monomaníaca, é teimosia no erro, é, na melhor das hipóteses, falta de imaginação. Mas, acostumados à idéia de que coerência é isso, muitos leitores, mesmo nas classes falantes e sobretudo nas mais falantes que são a dos escritores e professores, lêem tudo em busca dessa unidade compacta que, segundo crêem, deve haver por trás do que quer que um sujeito diga sobre o que quer que seja. De julgamentos que ele faça sobre determinados casos particulares ao seu alcance, tiram deduções sobre o que diria sobre tudo o mais e daí extraem o que lhes parece ser a identidade ideológica do infeliz, pondo-se a falar dela com a ilusão de estar falando dele.

É claro que, depois de ter opinado sobre várias coisas, um homem pensante deve procurar a coerência do conjunto, se não quiser dispersar seus neurônios em puro minimalismo. Mas a coerência não pode existir no nível das opiniões específicas tomadas duas a duas; para encontrá-la, é preciso subir na escala de generalização e, enfrentando problemas lógicos cada vez mais espinhosos à medida que se alcançam os patamares mais altos de universalidade, esboçar um sistema filosófico. Quem não tenha forças para construir um pode ao menos aproximar-se – ou descobrir que se aproxima – de algum que encontrou pronto. É certo, ademais, que pode haver um sistema filosófico implícito e até semiconsciente por trás de opiniões específicas.

Mas não se pode captá-lo sem ter apreendido antes todas as complexidades e nuances do pensamento de um autor sobre assuntos vários. Não sendo capazes de fazer isso, nossos examinadores de plantão na mídia e na universidade apanham uma frase e, como arquéologos que de um pedaço de pote deduzem uma civilização inteira, tiram daí as mais espantosas conclusões não só sobre as concepções gerais do autor como também sobre sua filiação histórica a correntes que, no mais das vezes, lhe são perfeitamente estranhas.

Por esse método, um ilustre leitor e opinador (digo até quem foi: foi o dr. Luís Eduardo Soares), lendo o que eu escrevia sobre determinado acontecimento local, concluiu que nas minhas concepções gerais eu era um seguidor fiel de Robert Nozick, um autor que eu nunca tinha lido e que, quando o li na esperança de finalmente encontrar o meu guru, me pareceu supremamente desprovido de interesse.

Acrescentem a esse “modus legendi” o desejo de carimbar, tão útil nas polêmicas de botequim, e terão o retrato perfeito do que neste país se entende por debate de idéias.

Com freqüência essa propensão ao automatismo generalizante consiste em deduzir, da crítica que um sujeito faça a alguma coisa, sua adesão positiva à coisa contrária, ou melhor, à coisa que, no catálogo de chavões admitidos, pareça a sua contrária. Se um sujeito é contra a aspirina, é porque é adepto da febre. Se maldiz a chuva, é partidário da seca. Se fala mal da polícia, é admirador dos bandidos, e vice-versa. Feito isso, só resta graduar quantitativamente o diagnóstico. Se alguém fala mal do comunismo, é “de direita”. Se fala muito, muito mal, é “extrema-direita”. O restante da dedução vem como sobre rodas, pelo sistema geométrico das progressões, sem o menor esforço mental: se é direita, é racista, se é racista, é machista, se é machista, é homofóbico, e assim por diante. O quanto isso pode ir parar longe do assunto é incalculável. Eu próprio já tive a ocasião de ser chamado de “homofóbico” por ter escrito alguma coisa contra o dr. José Carlos Dias, cujas preferências sexuais, além de não estar em questão naquela oportunidade, devem ser, segundo tudo indica, das mais conservadoras.

Curiosamente, em geral as pessoas que mais fazem esse tipo de julgamentos são as que mais vociferam contra “preconceitos”, sem se dar conta de que sua própria mentalidade é preconceituosa desde a base. Pois adivinhar uma crença geral por trás de opiniões isoladas que não tenham com ela um nexo indissolúvel de implicação recíproca é, rigorosamente, preconcebê-la.

Filósofo acidental

Entrevista de Olavo de Carvalho a Rachel Bertol

Publicada em O Globo em 25 de maio de 2000

Ano passado, Olavo de Carvalho recebeu o telefonema de um militante de esquerda avisando que havia um complô para assassiná-lo. Filósofo autodidata e autor de livros como “O imbecil coletivo”, que causou ira em segmentos da intelectualidade, Olavo ficou assustado. Mesmo sem saber se a informação era verdadeira, aceitou o convite de um amigo para trabalhar na Romênia. Ficou quatro meses fora e na volta não deixou a pena cair: continuou a escrever, diariamente, suas apostilas, tratados de filosofia, críticas agudas à política, aos intelectuais, à imprensa. Agora, oferecerá um pouco de sua verve aos leitores do GLOBO, escrevendo semanalmente a partir deste sábado na página 7 do jornal. Também estreará na revista “Época”.

– Posso até ser um polemista, mas não é este o centro das minhas atenções. Estou contente com essas novas colaborações. Serão oito artigos por mês, em que falarei de assuntos variados, não só dos polêmicos. Terei espaço para explicar minhas posições – afirma Olavo, de 53 anos, e que só há cinco começou a se lançar em controvérsias públicas, quando seu desentendimento com a Sociedade Brasileira para a Pesquisa Científica (SBPC) ganhou ampla cobertura na imprensa.

Um comitê da entidade rejeitara a publicação de um trabalho seu sobre Aristóteles com argumentos cujas críticas Olavo passou a distribuir encartadas na apostila de aula. Em pouco tempo, o caso virou notícia. Nessa época, publicou por insistência do poeta Bruno Tolentino seu primeiro livro de filosofia, “O jardim das aflições – de Epicuro à ressurreição de César: ensaio sobre o materialismo e a religião civil”.

Prazer e divertimento na esgrima intelectual

A fama de polemista cresceu com a publicação de “O imbecil coletivo”, em 1997, uma reunião de críticas ao tratamento dado à cultura nos jornais.

– Fazia anos eu acompanhava o movimento intelectual brasileiro e via uma decadência acentuada cada vez que abria o suplemento de cultura de um jornal. Eram publicadas coisas de um primarismo que há 20 anos não seriam aceitas no ginásio – afirma Olavo, que contesta o tipo de reação que causou. – Por que não podemos ser contra uma, duas, três ou 20 coisas ao mesmo tempo? Mas no Brasil, se somos contra algo, cria-se logo a idéia de que somos a favor do seu contrário.

A principal crítica à esquerda e aos intelectuais brasileiros em geral refere-se à falta de rigor que advém, segundo Olavo, do pensamento ideológico, modelo concebido a partir de Gramsci. A expressão “imbecil coletivo” é uma paródia do intelectual coletivo proposto pelo filósofo italiano.

– O pensamento ideológico não quer saber da realidade, mas busca produzir acontecimentos. Todo o conhecimento vira pretexto para forçar acontecimentos. Sou contra o próprio Gramsci, culpado dessa concepção que abre a porta ao vale-tudo. A ideologização da cultura imbecilizou as pessoas. No século XX, o malefício do pensamento ideológico é contado em milhões de mortos.

Na raiz da sua crítica, porém, não há apenas indignação. Olavo confessa ter prazer com a esgrima intelectual.

– Divirto-me um bocado. Enquanto escrevo, fico rindo, prevendo como o adversário ficará bravo e será em vão. Nunca tive raiva de ninguém nesse negócio. Mas se o sujeito quer virar objeto de gozação, a gente faz isso – afirma ele rindo.

Olavo não se diz de direita, mas gostaria que houvesse um partido de direita no país, “pela democracia”. A política brasileira, na sua visão, é hoje um jogo exclusivo de partidos de esquerda. Nos artigos do GLOBO, discutirá essas opiniões e questões que o inquietam e são temas dos livros em preparação. Em “O olho do Sol”, já com 700 páginas, busca fundamentar a idéia de evidência científica; em “Ser e poder: a questão fundamental da filosofia política”, até o momento com 200, apresenta uma nova definição do poder. Sua homepage (http://www.olavodecarvalho.org/) é uma boa porta para se entrar em contato com esse universo.

Olavo diz que o saber foi sua única ambição. Na adolescência, vivia com a deprimente sensação de nada entender. Na escola, a biologia e o latim foram seus únicos interesses, por influência de dois ótimos professores. Quando, aos 17 anos, começou a trabalhar em jornal – no “Notícias populares”, de São Paulo – e filiou-se ao Partido Comunista, sentiu um buraco em sua formação. Freqüentou como ouvinte aulas na PUC e na USP, mas se decepcionou.

– Tive uma impressão de carência: eu precisava me educar e não encontrava educação à altura do que queria. Faltava-me um abismo de conhecimento e nas aulas não aprenderia nada – conta Olavo, que então decidiu traçar um programa individual de estudo.

Ao jornal, precisava dar apenas cinco horas por dia e o resto do tempo passou a ser ocupado com aulas de cinema, teatro e muita leitura. Formou pouco a pouco uma biblioteca que refletia o desenvolvimento histórico das disciplinas que elegera: filosofia, estudos literários e religiões comparadas. Ao longo dos anos e das mudanças – teve oito filhos em três casamentos – vendeu quatro bibliotecas, com cerca de 15 mil volumes no total.

– Na ditadura militar, com muitos amigos presos, torturados, mortos, percebi que o Brasil ia ladeira abaixo para as trevas. Achei que o melhor era me retirar e estudar para entender o que se passava. Isolei-me dos 20 aos 47 anos.

A astrologia da Idade Média como base

Com o tempo, diminuiu a atividade jornalística para se dedicar mais aos cursos, os Seminários de Filosofia, que dá duas vezes por mês no Rio e em São Paulo. Calcula ter tido cerca de cinco mil alunos e escrito umas dez mil páginas. A filosofia veio por contingência.

– Quando quis estudar, estava resolvendo um problema pessoal. A perspectiva profissional em filosofia é muito prejudicial. Quando se quer virar filósofo ou professor de filosofia, estuda-se já com esse canal, como se fosse uma profissão. Mas a filosofia não é essencialmente isso, ela é acidentalmente isso. A filosofia é sobretudo um saber, uma consciência que se adquire.

A visão de mundo de Olavo tem raiz no mergulho que fez aos 30 anos na cultura da Idade Média, época que estudou por mais de dez anos, aproveitando seus conhecimentos de latim. Ele diz-se aficionado por astrologia.

– Sem conhecer astrologia não se conhece nada da cultura medieval. Quis estudar a simbólica daquela época.

Durante um tempo, dedicou-se aos estudos islâmicos – aprendeu árabe e recita trechos do Alcorão – e ganhou um prêmio na Arábia Saudita em 1985 por um livro de 200 páginas (não publicado) sobre Maomé, no qual usou os conhecimentos da simbólica medieval para interpretar episódios da vida do profeta. Pratica o cristianismo, mas afirma que ficaria à vontade para professar o islamismo. Isso porque, na sua opinião, cristianismo, islamismo e judaísmo têm no fundo o mesmo objetivo. A existência de Deus é para Olavo uma obviedade suprema, a base fundadora de tudo.

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