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Piada sinistra

Olavo de Carvalho

Ombro a Ombro, Ano XII, no 133, junho de 1999

Quando criança, fiquei muito impressionado ao ver na série de documentários Século XX o célebre prefeito de Nova York, Fiorello La Guardia, destruindo a marretadas uma montanha de máquinas caça-níqueis. Também fiquei impressionado ao ver há poucos dias, na TV brasileira, o governador Anthony Garotinho destruindo a marretadas uma pilha de armas apreendidas. Era o mesmo símbolo, nos dois casos, ambos calcados no estereótipo de Elliot Ness triunfante sobre o mal e a desordem. Mas o que me impressionou foi constatar como duas cenas aparentemente similares e originadas num modelo comum podiam ser, no seu sentido profundo, simetricamente opostas. Os caça-níqueis de La Guardia tinham sido apreendidos da Máfia: durante anos tinham servido à jogatina ilegal. As armas foram apreendidas de cidadãos honestos: nenhuma jamais serviu à prática de crime, nem havia o menor sinal de que seus proprietários planejassem usá-las para esse fim.

O aparente enigma da identidade dos símbolos com oposição de significados resolve-se pela velha fórmula de Karl Marx: a História se repete como farsa. E no caso brasileiro a farsa ainda teve o desplante de repetir-se a si mesma, ampliada em escala federal, na hora em que o presidente da República enviou ao Congresso a nova lei que proíbe em todo o país a venda de armas.

Embora o presidente tivesse ao menos a prudência de declarar que a nova lei tem um sentido “simbólico”, o que é o mesmo que confessar que é inócua e não vai diminuir em nada a violência e o crime, é manifesto que ela se inspira no exemplo do governador carioca.

Ora, o que Anthony Garotinho tem a ensinar ao país sobre o controle da criminalidade é rigorosamente nada. Até o momento, a campanha “Rio Desarme-se” não tomou uma única arma de bandido. Sua única realização no combate à criminalidade foi desarmar as vítimas. E que essa estupidez se consume por meio de pressão publicitária ou de uma lei não faz a menor diferença. Fiorello La Guardia acabou com a exploração dos caça-níqueis em Nova York porque tomou aos criminosos o instrumento do crime. Não havia por lá nenhum Anthony Garotinho para lhe sugerir que tentasse obter o mesmo resultado apreendendo as moedas do bolso dos cidadãos.

Na verdade, não foi essa a única vez em que o governador demonstrou sua tendência incoercível à inversão grotesca da ordem das coisas. Quando um bandido foi morto pela polícia num tiroteio, e seus comparsas, em protesto, invadiram o Túnel Santa Bárbara para atear fogo em viaturas de propriedade do Estado, Garotinho ficou solidário com os revoltosos, subindo o morro para pedir desculpas pela brutalidade… dos policiais.

As duas atitudes, na verdade, se complementam: se bandido também é povo, logo, povo também é bandido. Uma vez que os bandidos são bons cidadãos que merecem desagravo oficial quando enfrentam a polícia a tiros, nada mais lógico do que apreender as armas do povo para que não cometa qualquer atrocidade contra assaltantes, assassinos, estupradores e traficantes. Depois disto restaria ainda a hipótese de agredi-los a tapa, se não fosse cruel atentado contra os direitos humanos.

Mas coerente é também o governador com a política de seu partido, pois, se alguém ainda se lembra, foi sob idêntica alegação e promessa de diminuir por esse meio a violência no Rio que o ex-governador Leonel Brizola, criador e primeiro mentor de Garotinho, suspendeu toda ação da polícia nos morros, instaurando ali o regime feudal dos chefes do tráfico que exclui do Estado de direito os tristes habitantes daquela parte da cidade. Na época, não foi menor do que hoje a gritaria em favor da “nova política de segurança pública” que, como a de Garotinho, prometia mundos e fundos. O fracasso inevitável custou, para os cidadãos cariocas, milhares de vidas. Para o sr. Leonel Brizola, custou apenas uns arranhões passageiros na sua reputação de político esperto. A única diferença é que na época ainda houve na imprensa alguma oposição a Brizola, enquanto hoje Garotinho conta com o apoio maciço da mídia monoliticamente dominada pela esquerda.

Coerente, ainda, é o governador com a estratégia da revolução comunista, que seu partido tão bem representou ao longo das últimas décadas. Pois Lênin, logo após chegar ao poder, recomendava aos agentes do novo governo: “Procure catalogar todos aqueles que possuam armas de fogo, para que as mesmas sejam confiscadas no momento oportuno, tornando impossível qualquer resistência à nossa causa.”

Coerente não só com a linha geral, mas com as tradições de luta da esquerda no Brasil. Pois, se durante os anos da ditadura militar os esquerdistas presos selaram no cárcere uma aliança com o banditismo organizado, na esperança de cooptá-lo para a luta armada, e se nos anos seguintes a proteção ostensiva do brizolismo aos senhores dos morros consolidou esse pacto infernal, é sensato que, numa etapa seguinte da tomada do poder, o esquerdismo já elevado à condição de dominador do Estado reparta com seus tradicionais aliados o monopólio da posse das armas, excluindo desse privilégio o restante da população. Cercado desde baixo pelas forças policiais devidamente doutrinadas, e desde cima pelo exército informal dos morros, o povo inerme e acovardado nada mais poderá fazer senão dizer amém ao formidável poder totalitário que não terá sequer de recorrer à violência para fazer-se obedecer.

Coerente, ademais, com as grandes mudanças havidas no cenário ideológico da esquerda internacional. Pois, se de um lado a estratégia gramsciana da ocupação lenta e sutil do aparelho de Estado foi progressivamente aceita como superior à técnica leninista da insurreição, de outro lado a velha ortodoxia da estatização radical dos meios de produção cedeu lugar a um melting pot meio socialdemocrático, meio fascista, onde as grandes empresas, seguras de terem um lugar privilegiado na nova ordem, passam a colaborar generosamente com a esquerda em ascensão, sabendo que sua liberdade econômica não será debilitada mas sim reforçada pela extinção de todas as demais liberdades. Aderindo à estratégia mais recente, mas conservando um pé nas tradições pedetistas, Garotinho soube tirar proveito do que há de melhor nos dois mundos, pondo o prestígio posadamente nacionalista da velha esquerda a serviço do oportunismo internacionalista da nova.

Coerente é finalmente o governador ao defender a hipótese de diminuir a criminalidade tomando as armas de brinquedo das mãos das crianças. Coerente porque nada mais lógico, para acabar com a brincadeira, do que um garotinho tomar os brinquedos dos outros.

É verdade que Garotinho não saiu tomando brinquedos à força, covardemente, mas ofereceu trocá-los por chocolates. Garoto esperto. Mas, se a proposta for estendida aos delinqüentes, adultos na maioria, não creio que chocolates sejam ainda uma barganha tentadora. Será preciso trocar as metralhadoras Uzi e os fuzis AR-15 por papelotes de cocaína — com o risco, é claro, de que os traficantes venham a acusar o governo de concorrência desleal.

Quando o governador promete, com atos dessa natureza, libertar o Rio do crime e da violência, o mínimo que qualquer pessoa em seu juízo perfeito deve concluir é que está diante de uma piada sinistra. E seria realmente uma piada, se a proibição das armas tivesse o objetivo alegado pelo governador e não o de simplesmente enfraquecer a população para que não resista, amanhã ou depois, às imposições da nova ordem socialista.

É possível, no entanto, que, mesmo do ponto de vista do alegado propósito de refrear o banditismo, essas medidas surtam algum efeito. Pelo menos um efeito psicológico: alguns bandidos devem estar tão perplexos de que alguém pretenda combatê-los por meios tão formidavelmente inócuos, que se absterão de fazer todo mal pelos próximos meses e se manterão paralisados, em ansiosa expectativa, supondo que o governador, ao fazer-se de louco, deva estar escondendo alguma carta na manga.

Quando passar esse efeito, quando eles perceberem que as autoridades não têm nenhuma arma secreta por baixo da afetação de esquisitice, que, bem ao contrário, o governo apostou na encenação precisamente porque nada mais pode nem pretende fazer contra eles, aí uma imensa gargalhada de alívio sacudirá os morros, e na cidade haverá choro e ranger de dentes.

E então surgirá a pergunta temível, que por enquanto ninguém quer fazer: se amanhã ou depois, num assalto, for morto a tiros algum ex-proprietário de arma que a tenha depositado piedosamente no altar da “Rio Desarme-se”, os autores da lei de proibição das armas serão responsabilizados criminalmente por o haverem desprovido de seus meios de legítima defesa?

A resposta é: Não. A campanha e a lei que gerou foram concebidas de modo a que seus criadores possam lucrar com a mera hipótese de seus efeitos positivos, sem ter de arcar com a responsabilidade de qualquer conseqüência negativa, por mais material, direta e imediata que seja. No entanto, é fato: submetido a um massacre publicitário que não deu a menor chance aos argumentos contrários, o povo aceitou a proposta. Embriagados de crença milenarista na possibilidade de mudar a realidade por um gesto patético de autonegação histérica, milhares de bons cidadãos incapazes de matar uma mosca fizeram fila para livrar-se de revólveres enferrujados e espingardas de caça, na esperança louca de assim abrandar uma violência para a qual nem eles nem suas armas jamais contribuíram no que quer que fosse. Jamais um contrato leonino foi assinado pela parte mais fraca com tanta presteza, alegria, confiança e esperança. Não faltou, no rito de autocastração popular, nem mesmo um esforço para envolver a mistificação numa atmosfera beatífica de sacrifício religioso, com os altares das igrejas abertos para a deposição dos instrumentos do mal que nunca fizeram mal algum. E, como se não bastasse toda essa tempestade de injeções de morfina mental, a TV Globo, uma vez assinado pelo governador o decreto de proibição da venda de armas, rapidamente selecionou para a noite seguinte o filme Tombstone — a história do valente xerife que proibiu o porte de armas na sua cidade —, acrescentando-lhe nas legendas um subtítulo que vale por uma campanha eleitoral: “A justiça está chegando.” Se isso não é manipular a opinião pública, se isso não é abusar da boa-fé popular, não sei o que mais pode ser.

Com um ar de inocência que raia o cinismo, o governador alega, em prol da nova lei, que defender a população é dever do Estado, não do próprio povo. Em lógica isto chama-se um non sequitur — um raciocínio descaradamente sofístico em que a conclusão não se segue da premissa: de que o Estado tenha o dever de nos defender não se segue que ele tenha o direito de impedir que nos defendamos se ele não nos defende. Pois, a partir do momento em que os meios de exercício da legítima defesa são suprimidos, a integridade física de cada cidadão deixa de ser um bem que lhe pertence por direito natural e se torna uma concessão do Estado. E mesmo que houvesse — para raciocinar per absurdum — a pretendida conexão lógica entre o dever alegado e o direito suprimido, o Estado teria ainda a obrigação de cumprir primeiro o seu dever, antes de exigir que abdicássemos do nosso direito. O xerife de Tombstone, afinal, já era célebre inimigo e matador de bandidos quando proibiu as armas na cidade, enquanto a corrente política do sr. Garotinho, ao contrário, só tem na sua folha de serviços uma história de tolerância cúmplice, para não dizer uma história de amor com o banditismo. Virgil Earp pagou com seu próprio sangue e o de seus irmãos o acréscimo de autoridade que exigiu aos moradores de Tombstone. Já o sr. Garotinho, ao desprover os cidadãos de seus meios de defesa pessoal em troca da mera promessa de uma proteção policial que não tem meios de lhes dar, assina uma promissória que será resgatada com o sangue dos outros. O que ele exige é que apostemos, na sua promessa de nos dar uma segurança impossível, nada menos que a nossa própria vida e a de nossos familiares, enquanto ele não aposta senão seus votos na próxima eleição. E se o governador não tem o poder de nos dar uma proteção à altura do sacrifício que nos exige, quanto mais não estará abaixo tal encargo o governo federal, o qual não consegue controlar nem mesmo a polícia palaciana que grampeia impunemente os telefonemas do próprio presidente da República!

Do ponto de vista moral e lógico, é óbvio que, se a obrigação de desarmar-se é total e incondicional, — como tende a sê-lo na medida em que os sofismas de Garotinho sejam aceitos como sã filosofia pela legislação federal —, também será total e incondicional a obrigação da polícia de extinguir a criminalidade por completo, pois, se o Estado não tolera que o cidadão tenha meios de autodefesa contra a agressão armada, o cidadão não tem por que tolerar a mínima falha do Estado na tarefa de defendê-lo. No entanto, essa justa proporção dos direitos e deveres recíprocos entre cidadão e Estado não será respeitada. O cidadão que seja encontrado com uma arma será preso, e se depois de solto for assassinado a tiros na primeira esquina antes que a polícia possa socorrê-lo, ninguém será punido por tê-lo tornado indefeso. Ora, não há responsabilidade quando não há punição pelos erros. A lei contradiz portanto, da maneira mais flagrante, o preceito que a justifica: o Estado, por meio dela, se exime de toda responsabilidade pela nossa segurança no instante mesmo em que diz assumir o monopólio da sua proteção. Uma lei tão arrogante, pretensiosa e leviana, que atenta não só contra a letra da Constituição Federal mas contra os princípios elementares do direito, é uma lei nula e inane desde o momento em que se assina.

O voto de confiança que o governador está cobrando dos cariocas só é comparável, na proporção do risco envolvido, àquele que Deus exigiu de Abraão, com a diferença de que Garotinho não terá nenhuma obrigação de fornecer o carneiro para colocar no lugar das vítimas sacrificiais. Por aí se tem a medida do impacto psicológico da operação, que parece calculada por engenheiros comportamentais para deixar o povo paralisado e sonso numa espécie de transe emotivo no qual ele se disporá a ceder tudo, tudo, em troca da miragem de um bem impossível. Tenho razões para supor que tão fina estratégia de manipulação da opinião pública não brotou espontaneamente da cabeça de Garotinho, como Minerva da cabeça de Júpiter, mas veio pronta de organismos internacionais dispostos a usar os brasileiros como cobaias para a aplicação de uma política de desarmamento geral das populações que é, comprovadamente, um item prioritário do programa da Nova Ordem Mundial. A suspeita é tanto mais razoável quando se nota que a poderosa revista Time, trocando sua aparente função noticiosa pela auto-atribuída missão de decretar os rumos da História alheia, já se adiantou à decisão dos brasileiros para nomear Garotinho um dos líderes maiores incumbidos dirigir o Brasil globalizado do século XXI. E por que Garotinho deveria merecer tamanho destaque antecipado, se até o momento sua única realização foi precisamente a campanha que segue item por item a receita de sociedade ideal ditada pelas potências globalizantes? Estas coisas, sim, requereriam investigações e uma CPI, se este país ainda tivesse um mínimo de sanidade e senso de honra nacional.

Mas, qualquer que seja o caso, o que o governador Anthony Garotinho está exigindo de nós é um crédito de confiança que, em todas as hipóteses imagináveis, não será pago pelo depositário da confiança e sim pelo depositante. Exatamente como aconteceu com quem confiou na política de segurança de Leonel Brizola.

A proposta é tão obviamente imoral, ilógica, insensata e irresponsável, que, pelo simples fato de tentar impô-la à credulidade dos cidadãos, os mentores da campanha “Rio Desarme-se” já deveriam ser postos na cadeia por exploração da boa-fé popular. Tanto mais porque, se o monopólio estatal das armas só por uma hipótese implausível poderá refrear criminosos que nunca precisaram de autorização do Estado para ter e usar armas, seu efeito imediato e incontornável é o de deixar a população tão desarmada ante os bandidos quanto ante a autoridade estatal, hoje depositada nas mãos de uma corrente política cujo namoro com o banditismo organizado é fato histórico conhecido de todos.

A piada sinistra de Garotinho só é piada quando damos crédito a seus objetivos declarados. Basta compreender que o propósito da estratégia adotada nada tem a ver com a eliminação do banditismo, e a piada revela sua face de coisa mortalmente séria.

De Bobbio à Bernanos

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde (São Paulo), le 6e. juin 1999

(Traduit par Henri Carrières et Armand Grabois)

Le XXe siècle a commencé avec la proclamation presque universelle de la fin des démocraties et, après une succesion d’expériences totalitaires dont le bilan se monte à presque 200 millions de morts, se termine par l’universelle reconnaissance que nous ferions mieux d’apprendre définitivement à nous intéresser à la démocratie.

Pour la première fois dans les temps modernes, l’Humanité semble être arrivée à un accord. Quoiqu’il y ait encore des dictatures un peu partout, l’idée de dictature a perdu toute crédibilité intelectuelle, et l’on croit, avec un optimisme assez platonique, que ce qui disparaît du ciel des idées devrait tôt ou tard disparaître de ce bas monde. Et, quoique personne n’attribue aux démocraties actuelles la vertu de la perfection, il y a un consensus général que Norberto Bobbio a résumé en une sentence lapidaire: “La seule solution pour les malheurs de la démocratie, c’est un surplus de démocratie”.

Mais cette formule est-elle celle d’un consensus ou celle d’un problème?

En premier lieu, que signifie “plus de démocratie”? Un libéral croit que c’est moins d’intervention de l’État dans l’économie; un social-démocrate croit que c’est plus de secours de l’État aux pauvres ou défavorisés. Ainsi, non seulement on réédite la vieille confrontation entre capitalisme et socialisme, tous les deux sous le nom de démocratie, mais on arrive finalement à un cul-de-sac, puisque pour réaliser la première alternative il faudrait accroître le contrôle étatique sur la vie privée (pour le moins afin que l’État, dépourvu de son fardeau économique, acquière de nouvelles fonctions qui légitiment son existence), et pour réaliser la seconde il faudrait augmenter les impôts et gonfler la bureaucratie étatique jusqu’à paralyser l’économie et paupériser encore plus le pauvres.

En deuxième lieu, il y a de bonnes raisons de douter que “plus de démocratie” soit encore de la démocratie. La démocratie n’est pas comme un pain, qui croît sans perdre l’homogénéité: à mesure qu’elle s’étend, sa nature change jusqu’à se convertir en son contraire. L’exemple le plus caractéristique — mais, certes, pas unique — est ce qui se passe avec la “démocratisation de la culture”. En un premier moment, démocratiser la culture c’est distribuer généreusement aux masses les soi-disant “biens culturels”, autrefois réservés, dit-on, à une élite. En un deuxième moment, on exige que les masses aient aussi le droit de décider ce qui est et ce qui n’est pas un bien culturel. Alors, la situation se renverse: offrir aux masses les biens de l’élite n’est plus pratiquer la démocratie: c’est insulter le peuple. Les couches populaires, affirme-t-on, ont droit à “leur propre culture”, dans laquelle la musique rap peut être préférable à Bach. L’intellectualité se livre alors à toute sorte de théorisations afin de prouver que les biens supérieurs autrefois convoités par la masse n’ont pas, en fin de compte, plus de valeur que tout ce que la masse possédait déjà avant de les conquérir. Et, quand l’ancienne différence entre culture d’élite et culture de masses semble finalement rétablie sous le nouveau et réconfortant prétexte de la relativité, les intellectuels se révoltent encore plus, car il découvrent que tous les biens, égalisés par l’universel rélativisme, sont devenus de pures marchandises sans valeur propre: Bach est devenu fond sonore pour les campagnes publicitaires de culottes et le rap, grâce au marché du disque, a créé une nouvelle élite de millionaires, cyniques et arrogants comme ne l’aurait osé être l’ancienne élite. Un processus identique se répète dans les domaines de l’éducation, de la morale et même de l’économie, où chaque nouvelle fournée de bénéficiaires du progrès s’accroche à ses nouveaux privilèges avec une avarice et une violence inconnue des élites plus anciennes: le fascisme a surgi parmi les nouvelles classes moyennes créés par la démocratie capitaliste, et la “Nomenklature” soviétique, la plus jalouse des classes dominantes qui n’ait jamais existé dans ce monde, est née de l’ascension de soldats et d’ouvriers dans la hiérarchie du Parti.

En troisième lieu, on a peut-être le danger le plus grave: un consensus en faveur de la démocratie n’est constructif qu’en apparence, car la démocratie, par définition, consiste à se passer de tout consensus. Démocratie n’est pas concorde: c’est une manière intelligente d’administrer la discorde. Et la clameur universelle pour “plus de démocratie”, dans la mesure même où elle s’affirme comme un consensus, donne des signes de ne plus pouvoir supporter aucune voix discordante.

Ainsi, il y a des raisons pour craindre que, si le XXe siècle a commencé par demander des dictatures et s’est terminé par exiger la démocratie, le nouveau siècle finisse par suivre le parcours dans le sens précisément inverse. Car, comme disait Bernanos, la démocratie n’est pas l’opposé de la dictature: elle en est la cause.

Carta de um cego acordado a uma vidente adormecida

Olavo de Carvalho

Maio de 1999

NB — Recebi em 28 de maio de 1999 um longo e-mail, de uma leitora cujo nome não divulgarei exceto se ela tomar a iniciativa de me autorizar a fazê-lo, o qual julguei merecer uma resposta detalhada, não só porque parecia de boa-fé, mas porque resumia, de certo modo, alguns enganos padronizados que determinada categoria de leitores (não muito vasta, graças a Deus) comete quase que invariavelmente na interpretação de meus escritos. Esses erros são sempre do tipo assinalado certa vez pelo educador Cláudio Moura Castro, ao dizer que neste país ninguém lê o que um autor escreveu, mas o que se imagina que ele quis escrever. Lendo-me desta maneira, e diagnosticando minhas intenções com aquela espevitada psicologia divinatória que tantas vezes substitui a pura e simples atenção à leitura, minha correspondente chegou à conclusão de que sou um sujeito “cego de ódio” — um diagnóstico que supõe em quem o faz a capacidade de enxergar, para além do texto, os rins e o coração do infeliz autor. Respondendo-lhe, respondo a outros e me poupo, assim, algumas horas de escrita. Transcrevo a seguir a resposta, intercalada com o texto integral da carta recebida.

 

Caro Sr. Olavo de Carvalho,

Tenho acompanhado (não sem certa perplexidade) o gradual aumento do seu indisfarçado ódio pela “esquerda” ou qualquer coisa que lembre comunismo.

Sempre gostei muito de ler as coisas que o senhor escreve. Tenho simpatia por iconoclastas. Mas o senhor tinha algo mais, era mais consistente, mais coerente. Hoje, quando leio alguns de seus últimos textos, penso sempre num homem dominado pela emoção, pela raiva, espumando enquanto digita.

Antes que o senhor me identifique com o que chama de “hipócritas da KGB” ou coisa equivalente, gostaria de dizer que sou uma leitora imparcial e só.

A razão da minha perplexidade vem de eu ter me enganado a respeito daquilo que o movia a escrever. Achava eu, ingenuamente, que o senhor pretendia sempre buscar a verdade em tudo e em todos, não poupando ninguém. Vejo, desolada, que não se trata disso. O senhor está cego de ódio..

 

Prezada amiga,

Já que a senhora tem dado atenção a meus livros, devo retribuir dando à sua carta a atenção que merece, respondendo-a ponto por ponto, para que não sobrem no fim dúvidas ou suspeitas quanto aos motivos e propósitos do que escrevo.

Não estou entre os que crêem que o ódio seja um sentimento abominável. Estes fingem que nada odeiam, que agem sempre pelo puro amor — mas na verdade não se pode amar o que quer que seja sem odiar aquilo que o nega ou ameaça. A escolha não é entre amor e ódio, mas entre diferentes objetos de amor e de ódio. A perversão lingüística que fez do ódio e do amor respectivamente sinônimos do mal e do bem só serviu para desorientar as pessoas e disseminar a hipocrisia que ama o bem sem odiar o mal ou odeia o mal sem amar o bem. Essa perversão é um dos mecanismos mais insidiosos de esvaziamento do cristianismo para trocá-lo por um pseudocristianismo que se esgota em pura disputa política e que sabemos muito bem quem inaugurou. Cristo, ao contrário de todos os Gandhis de Hollywood, jamais condenou o ódio. O que Ele disse foi: “Na verdade, amais o que devíeis odiar e odiais o que devíeis amar”. Coisas como o comunismo, o nazismo, o fascismo, o regime haitiano dos Tonton Macoute, o estupro, o aborto em massa, a pedofilia, etc., DEVEM ser odiadas por todos os homens de bem e este ódio em nada empana a objetividade do julgamento, já que a objetividade em moral consiste precisamente em discernir e reconhecer nas coisas, segundo o mandamento de Cristo, o odiável e o amável, segundo as várias gradações de relatividade compatíveis com o caráter complexo e misto das realidades deste mundo que não é céu nem inferno. Quanto ao caráter inteiramente odioso do comunismo, ninguém que se pretenda católico pode hesitar um só instante em proclamá-lo, de vez que a isto o obrigam duas sentenças papais proferidas ex cathedra e incorporadas, portanto, à doutrina da Igreja: “O comunismo é intrinsecamente mau” (Pio XI, Divini Redemptoris, 1937) e “O comunismo é doutrina nefanda totalmente contrária ao direito natural” (Pio IX, Qui pluribus, 1846). Terei sido, acaso, mais duro com a esquerda do que o foram esses papas? É evidente que mesmo um fiel católico tem o direito de sondar as razões de tão rigorosa condenação — e não se pode sondar as razões de nada, filosoficamente, sem colocá-lo ao menos temporariamente em dúvida —, mas o fato é que já fiz esse exame, durante trinta anos, tanto pelo conhecimento direto que tive do assunto como militante do Partido Comunista entre 1966 e 1969, como pela reflexão posterior e pelo estudo de livros cuja relação sobe a muitas centenas, incluindo os clássicos do marxismo: tudo isto com a ressalva de que durante um longo período de recolhimento nada escrevi nem disse sobre o assunto, só me pronunciando a respeito a partir de 1995, sem nenhuma pressa portanto. A senhora há de compreender facilmente que atribuir minhas opiniões ao puro ódio — no sentido pejorativo de emoção cega — não é nem um pouco realista.

 

Cego e desmemoriado, pois, se assim não fora, talvez lembrasse do que escreveu sobre Bernanos. Aliás, um lindo ensaio publicado na Revista Bravo. Uma das coisas mais contundentes que já li. Dizia o senhor que Bernanos tinha “razão contra todos”.

 

Cara senhora: quando Bernanos escrevia, existiam na sua pátria uma poderosa direita e uma poderosa esquerda, cada uma com seus jornais, suas cátedras universitárias, suas glórias literárias, seus militantes furiosos, suas tropas de choque, etc. Ele podia colocar-se entre duas facções porque, simplesmente, elas existiam. No Brasil um longo trabalho de “ocupação de espaços” fez com que só restassem em campo as idéias esquerdistas, o vocabulário esquerdista, os sentimentos esquerdistas, etc., de modo que hoje até mesmo o PFL subscreve teses tão profundamente esquerdistas como a affirmative action, enquanto o governo nominalmente de centro-direita dissemina através das cartilhas do MEC a mais pura doutrinação marxista. O deslocamento do panorama mental para a esquerda foi tão completo que hoje um simples neoliberal como Roberto Campos, um centro-direita voitaireano e anticlerical, já é rotulado de “extrema-direita”, o que prova que ninguém mais sabe, sequer, o que é direita. A idéia mesma de direita desapareceu do horizonte visível dos brasileiros. A imparcialidade supõe a existência de partes, minha senhora. Não se pode ficar no meio entre nada e alguma coisa, mas só entre alguma coisa e outra coisa. Opor-me violentamente à esquerda é a única maneira de abrir um espaço para que venha a existir uma direita, e acho imprescindível que exista uma direita, o que não significa que, quando ela aparecer, eu vá estar comprometido com ela e não vá me permitir escrever a seu respeito coisas tão horríveis quanto escrevo hoje sobre a esquerda. O que não teria cabimento seria escrever, hoje, contra uma facção que não existe. Quanto à centro-direita neoliberal, que com todo o seu comprometimento esquerdizante é o máximo de direita possível hoje em dia, tenho escrito um bocado de coisas contra ela, e a senhora as encontrará facilmente na coleção de meus artigos publicados no Jornal da Tarde. Não tenha a menor dúvida de que alguns neoliberais, chocados com meu artigo “Viva o fascismo!” de 5 de março de 1999, me escreveram e-mails tão furiosos quanto o seu, acusando-me de estar cego de ódio contra o neoliberalismo. Discursos contra o ódio, como a senhora vê, não são monopólio de ninguém, e aliás são a ocupação predileta de quem não tem o que dizer.

 

Ainda estava maravilhada com esse texto quando descobri uma palestra feita no Clube Militar em que o senhor dizia aos ouvintes “Não se envergonhem da sua obra. Levantem as suas cabeças, tenham orgulho e não permitam que nenhum hipócrita comunista venha se fazer de seu fiscal.” Que estranho, pensei… Desde quando tortura e perseguição são motivo de orgulho? Ou isso não deve ser considerado parte da obra dos militares? Nesse caso, então Fidel Castro também tem do que se orgulhar, pois não há em Cuba uma criança que não esteja na escola ou que careça de assistência médica.

 

Sua argumentação simplesmente não é honesta. Louvar o saldo global da obra dos militares, somando os bens e descontando os males, é bem diferente de louvar os males. A feiúra moral dos atos de violência cometidos pelo governo militar foi explicitamente afirmada no meu discurso, junto com a grandeza de seus atos positivos, que, no resultado final e dentro do quadro das alternativas permitidas pela situação, superaram grandemente esses males.

Mas trinta anos de hegemonia cultural da esquerda neste país mudaram tão profundamente os hábitos de pensamento e os simples reflexos automáticos da opinião pública, que hoje se tornou natural para muitas pessoas — que nem se imaginam esquerdistas — uma completa duplicidade moral no julgamento de atos e homens. De um lado, essas pessoas se acreditam esclarecidas e democráticas, abominam qualquer dogmatismo moral, detestam a idéia de um bem e de um mal absolutos e professam tudo julgar de acordo com a relatividade das situações e circunstâncias. Mas, quando o que está em julgamento é “a direita”, a execrável direita, então abdicam de todo senso das proporções, recusam-se a qualquer avaliação comparativa das circunstâncias e alternativas reais, e tudo julgam segundo padrões absolutistas de certo e errado. Se dizemos que de todas as reações a uma revolução comunista já havidas no mundo a brasileira foi documentadamente a mais branda, a mais respeitosa das leis e direitos, a menos violenta, a menos repressiva, e desafiamos nosso adversário a nos citar um único exemplo contra a nossa tese, ele imediatamente escorrega para fora do ponto em discussão e declara solenemente que um só ato de violência já é abominável e que o fato de a contra-revolução brasileira ter sido menos violenta que as outras é apenas um fator quantitativo que nada significa. Ou seja: quando se trata de julgar “a direita”, a moral dogmática absolutista, abstratista e a-histórica, que essas mesmas pessoas condenam como um reacionarismo ideológico, torna-se de repente o critério único e legítimo para o julgamento de tudo.

Assim, minha senhora, não há condição de discutir, pois o pressuposto de toda discussão é um mínimo de honestidade e de fidelidade de cada parte às suas próprias premissas.

Se a senhora compreende que atos humanos devem ser julgados de acordo com padrões humanos, admitirá também que, em política, não existe o bem absoluto, mas apenas o mal menor ou um bem aproximativo. Nesse sentido, o movimento de 1964, como reação a uma revolução comunista em marcha, foi excepcionalmente brando, considerando-se que os hábitos sanguinários dos comunistas deixavam prever um morticínio incalculavelmente maior no caso de chegarem ao poder. Só para a senhora fazer uma idéia, O LEVANTE COMUNISTA DE 1935 MATOU MAIS DE QUINHENTAS PESSOAS EM MENOS DE UMA SEMANA. Os militares que se puseram em ação no dia 31 de março tinham plena consciência de estar prevenindo o mal maior, pois lembravam-se bem dessas vítimas, então recordadas anualmente numa celebração oficial que o establishment esquerdista pós-Constituição de 1988 aboliu para evitar comparações incômodas e perguntas irrespondíveis. Como a senhora vê, todos os cadáveres são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais que os outros.

Ademais, senhora, faça um breve cálculo sobre os acontecimentos de 1964-1984. Do lado das forças do governo, havia aproximadamente 30 mil soldados e policiais mobilizados contra a guerrilha rural e urbana. Do lado da guerrilha, havia não mais de quinhentos combatentes. O governo fez aproximadamente trezentas vítimas, os guerrilheiros duzentas, o que significa a média de 0,01 vítima para cada combatente governista, em contraste com a média de 0,4 feita por cada guerrilheiro individual. É uma diferença, senhora, de 1 para 40, por soldado. Proporcionalmente, se a esquerda tivesse o mesmo número de combatentes que as forças legais, conservando o poder de fogo de cada soldado, teria matado 12 MIL PESSOAS. Diga agora qual das duas forças, a governista e a esquerdista, foi mais assassina, e diga se para impedir a morte de doze mil pessoas é excessivo matar trezentas. Esses cálculos, senhora, são obrigatórios para quem quer que pretenda, no julgamento de tais fatos, ser justo e imparcial como a senhora diz que é. Recusar-se a essa comparação é ceder a impressões carregadas de ódio irracional, coisa bem diferente do ódio refletido e justo a que se refere N. S. Jesus Cristo.

 

Concordo com o senhor que os militares eram muito menos castradores do que qualquer outro representante de governo comunista e mataram menos. Isso é verdade, mas ainda não vejo motivo de “orgulho”.

 

A senhora não chega a compreender que paralisar com tão pouco derramamento de sangue uma revolução em marcha é uma proeza NUNCA IGUALADA, nem de longe, em toda a história ocidental? Não chega a compreender que, nas circunstâncias, manter a disciplina e reduzir ao mínimo possível os inevitáveis atos de crueldade foi um feito político e moral de grandeza excepcional? A senhora, no comando de um Exército incumbido de enfrentar uma revolução, conseguiria fazer melhor? Quem, no mundo, conseguiu? A senhora se imagina investida de poderes divinos?

 

Lembro de outra passagem do mesmo discurso em que o senhor diz assim “Será que não está na hora de os adultos aprenderem que os jovens não devem ser lisonjeados e sim educados (…) ?” Eu pergunto, será que a lição das lisonjas só serve para os jovens? Acho que não, acho que é para todos. Não diz a Bíblia que homem que lisonjeia o próximo arma-lhe uma rede aos passos?

 

Cara senhora, quantos candidatos a senhora já ouviu fazerem a apologia do eleitor adulto ou ancião? Quantos filmes e novelas a senhora já viu fazerem a defesa dos pais contra a rebelião dos jovens? Quantas canções populares a senhora ouviu assumirem a defesa dos sentimentos dos adultos contra as pretensões das novas gerações? Por favor, não me faça descrer da sua inteligência. O mundo, no século XX, regurgita de lisonjas à juventude.

 

Bem, eu não tenho nada contra os militares, só por eles serem militares. Mas não gosto de qualquer governo que seja totalitarista. Tanto os confessos quanto os camuflados.

 

O conceito de totalitário não se aplica ao regime militar brasileiro, exceto como figura de retórica muito chinfrim. O totalitarismo implica, além de uma concepção global que os militares nunca tiveram, uma organização popular de apoio, que não houve, o controle da cultura e da linguagem, que não foi sequer tentado, a implantação de uma nova ética através da educação, que não foi nem mesmo cogitada, etc. etc.

 

Apesar de ter ficado bastante intrigada com o seu discurso, ainda achava que o senhor talvez tivesse escrito aquele texto sob coação moral irresistível. Afinal, o autor do “Imbecil Coletivo” não ia dizer a ninguém que se orgulhasse de nada. Pelo contrário, questionaria sempre.

 

Questionar por questionar é tão bobo quanto nunca questionar nada. E direi a um homem que se orgulhe de seus atos, para levantar seu moral, sempre que o veja cercado de acusadores que, imputando-lhe crimes que não cometeu, procurem lhe incutir falsas culpas para o manipular melhor.

De novo, senhora, peço que faça as contas, agora com relação às torturas. O Brasil teve, no regime militar, não mais de 2.000 presos políticos. Supondo-se, para raciocinar per absurdum, que TODOS tivessem sido torturados por um total de 30 horas cada um, seria preciso 60 mil horas de trabalho dos torturadores, ao longo de 20 anos, ou seja, 3 mil horas anuais. Portanto: bastaria um único torturador, trabalhando 8 horas por dia durante 20 anos, para fazer TODO esse serviço. Suponhamos, porém, que o torturador não trabalhasse sozinho, mas com um parceiro: para torturar todos os presos políticos do Brasil seria preciso DOIS torturadores. Para ser mais flexíveis ainda, admitamos que cada torturador só trabalhasse três meses por ano. Neste caso, OITO torturadores bastariam. Mas, para irmos ao absurdo da concessão, admitamos que cada dupla de torturadores agisse sob ordens de toda uma cadeia de comando que, descendo de um general para um coronel, deste para um tenente-coronel, deste para um major, para um capitão, para um tenente, um sargento e um cabo, então teríamos, para cada uma das quatro duplas, mais oito cúmplices. Sendo quatro as duplas, teríamos, além dos torturadores diretos, mais 32 cúmplices, ou seja: um total de 40 torturadores, diretos e indiretos, bastaria, com sobras inconcebivelmente generosas, para torturar TODOS os presos políticos brasileiros, na hipótese aberrante de que nenhum destes tivesse sido poupado. Ora, a senhora acha mesmo que todas as forças armadas brasileiras — 300 mil homens — deveriam se sentir culpadas, e continuar a sentir-se culpadas vinte anos depois, pelas ações de 40 indivíduos? Não é antes mais justo dizer aos outros 290.960 que ergam suas cabeças e não se deixem intimidar por acusadores mal intencionados?

 

Durou pouco essa ilusão. Li há poucas horas o seu comentário da semana e constatei que o senhor acha que a Esquerda é o mal encarnado assim como a Esquerda acha que a Direita é o mal encarnado. Em outras palavras, o senhor ainda é o mesmo jovem indignado e cego dos idos de 64. Está cometendo agora o mesmo erro de julgamento apressado de outrora. Será que daqui a 30 anos o senhor vai estar no Clube Comunista pedindo desculpas também?

 

A esquerda não é o mal encarnado porque o mal encarnado é o espírito revolucionário que ora se expressa por meio da esquerda, ora da direita — a Montanha e a Gironda da Revolução Francesa, Leviathan e Behemoth do livro de Jó na interpretação de Blake. Como no momento a expressão dominante e quase única no Brasil é a esquerda, esta assume de fato o papel de encarnação do mal, até que a roda da História complete seu giro e esse papel seja novamente assumido pela direita. Se meus livros tomam como referência uma escala temporal mais vasta, é natural que meus escritos jornalísticos, concentrando-se na atualidade, tomem por alvo o mal onde ele está no momento, e não onde poderá estar amanhã. Para ter uma visão mais completa de ambos os lados da coisa, leia O Jardim das Aflições.

Quanto à pergunta sobre o Clube Comunista, é evidente que, se minhas palavras de hoje servirem algum dia para legitimar uma onda atroz de mentiras contra comunistas e eu na ocasião nem me der conta do que esteja acontecendo, só tardiamente vindo a perceber o mal, terei a obrigação moral de pedir desculpas aos comunistas tão logo venha a percebê-lo. Nunca me considerei superior a esse tipo de dever moral. Apenas espero que, se essa onda de mentiras de fato vier a se desencadear contra os comunistas, eu não esteja na ocasião tão surdo e cego quando estive quando começaram a se espalhar, com a minha insensata ajuda, as mentiras contra os militares. No momento, porém, semelhante onda não é nem de longe previsível, visto que os comunistas dominam com mão de ferro quase todas as redações de jornais e, nas TVs, só não controlam o valente Boris Casoy e o teimoso Alexandre Garcia (a terceira exceção era Paulo Henrique Amorim, mas já deram cabo da carreira dele tão logo ele cometeu o pecado mortal de anunciar diante das câmeras que 96 por cento dos telespectadores consultados eram contra a libertação dos seqüestradores de Abílio Diniz).

 

Isso me lembra outro texto seu: “O abandono dos Ideais”. Quase me esqueço de explicar o que foi que eu vi no comentário que me fez constatar as minhas suspeitas. Bem, o senhor falava sobre o Estado de Direito que “os hipócritas da KGB” gostam tanto de defender. Dizia que hoje não há mais direito a privacidade, que o dinheiro público não pode se sobrepor ao direito de conversar numa boa no telefone.

Caro senhor Olavo, a mesma Constituição que consagrou o Estado de Direito e o direito de privacidade, consagrou outros princípios. Só no artigo quinto são mais de 70. E, sabe de uma coisa, não há hierarquia entre eles. Pois é. Freqüentemente, alguns princípios entram em choque. Aí os juristas precisam fazer uma escolha, uma vez que um terá de prevalecer sobre o outro. Então eles fazem uma ponderação, no caso concreto, para saber qual princípio privilegiar. Parece-me que é justamente o que acontece agora. O senhor sabe que as pessoas que lidam com a coisa pública estão vinculadas a lei. Pois muito bem, a lei diz que o administrador, o agente público deve se reger por princípios tais como o da moralidade, imparcialidade, igualdade e coisas assim. Tais princípios devem ser rigorosamente respeitados porque o agente não está ali administrando o seu dinheiro, o seu patrimônio, para que se tenha alguma garantia de que as coisas se processarão de modo limpo. Ele esta ali com um poder que lhe foi conferido, delegado. Portanto tudo quanto ele fizer deverá e será passível de controle externo. A ponderação de princípios entra aí, estão em jogo dois direitos: o da privacidade do agente e o da sociedade de ver seu patrimônio administrado honestamente, de acordo com a lei, a qual consagra o bem público, se sentir segura. Qual o senhor acha que deve prevalecer, nesse caso?

 

Suas especulações jurídicas, cara senhora, são absolutamente desnecessárias, pois não há contradição alguma entre o direito individual à privacidade e o direito da sociedade à honesta administração de seus bens — e o que está em jogo não é nada disso. O que está em jogo é que, sob a alegação de proteger o dinheiro público, foi feita uma escuta ILEGAL, isto é, um “grampo” não autorizado pela competente autoridade judicial. Isto, em si, é crime infinitamente mais grave do que qualquer desvio de dinheiro público, pois importa em usurpar a autoridade mesma do Estado e não apenas os seus bens materiais. A custódia que o Estado exerce sobre os bens materiais do povo advém da sua autoridade, e não esta dos bens materiais. De maneira complementarmente análoga, o direito que a senhora exerce sobre seu dinheiro advém da cidadania, e não esta da posse do dinheiro, a qual está para o primeiro como a conseqüência está para a causa, ou como a parte está para o todo. Logo, a usurpação de seus bens materiais atenta contra um de seus direitos, mas um atentado contra a sua cidadania viola todos eles ao mesmo tempo. Do mesmo modo, é mais grave atentar contra a autoridade do Estado do que contra os bens públicos. Qualquer criança pode compreender este raciocínio, que é juridicamente insofismável, moralmente certo e logicamente exato.

É evidente que, no curso de uma investigação de corrupção ou de qualquer outro crime, o Estado tem o direito de grampear telefones, contanto que isto seja feito de maneira legal, isto é, determinado pela autoridade judicial competente e não pelo arbítrio de um policial qualquer e muito menos de um “araponga” a serviço de uma facção política. Se, por acaso, o grampo ilegal revela uma verdade, ele presta com isto um desserviço à justiça, pois invalida essa verdade como prova judicial e dá ao suspeito uma oportunidade de ouro para se safar incólume. Ademais, só quem pode decidir da veracidade ou não de uma prova judicial é a própria justiça e não a senhora, nem a imprensa, nem a assembléia inteira dos arapongas reunidos. Ao proclamar que o grampo é prova verdadeira de um verdadeiro crime, a senhora prejulga o acusado e dispensa o exame judicial da questão. Se milhões de pessoas pensarem como a senhora, a gritaria do povo numa praça valerá como tribunal supremo, e isto evidentemente nada tem a ver com o Estado de direito, que NUNCA é o reinado absoluto da massa enfurecida. O poder emana do povo, sim, mas não por quaisquer meios, e sim somente através das leis que esse mesmo povo tenha aprovado por meio de uma assembléia eleita pelo voto. Se o povo deseja tornar lícitos todos os grampos e instituir o direito universal à espionagem, então que eleja outra assembléia e vote outra Constituição, louca o quanto seja — mas, até lá, que aja dentro das leis que ele próprio instituiu.

 

O indivíduo ou a sociedade? Essa “autoridade do Estado” que o senhor fala não casa com o princípio dito violado pelos “arapongas” da esquerda. Que eu saiba, no Estado de Direito, o poder é do povo. O povo é o poder constituinte originário, portanto, não há que se falar em autoridade estatal, como se isso fosse uma redoma insuspeita e inviolável.

 

O povo, senhora, não é um monarca absoluto que possa mudar o curso das coisas por mero capricho, a qualquer momento. O povo, senhora, não tem todos os direitos e, sobretudo, não tem só direitos. Mais que o governante, ele tem deveres — e o primeiro deles é não violar, movido pelo ódio que lhe inspire uma determinada pessoa ou um fato em particular, os princípios gerais que ele mesmo estabeleceu antes que o ódio lhe subisse à cabeça. Um povo que não é capaz disto não é um povo — é uma horda de loucos e bandidos. Infelizmente, esta distinção, apagada pelo discurso interesseiro de jornalistas intrigantes e políticos ávidos de poder, está desaparecendo cada vez mais das consciências neste país, e as pessoas, de boca cheia, chamam de “Estado de direito” a tirania da massa insuflada por demagogos.

 

O presidente deve satisfações (e muitas) de tudo o que faz. Então o princípio da moralidade pode ser mitigado pelo princípio do sigilo das ligações telefônicas? Pode até ser que isso ocorra em sede de direito penal, mas é inconcebível em política.

 

O favorecimento ilícito é crime previsto na legislação penal e é portanto uma questão penal. Nenhum julgamento político deste mundo pode, legitimamente, sentenciar que houve ou não houve crime, nem muito menos condenar o acusado a qualquer penalidade que seja. O julgamento político pode apenas decidir de o acusado deve ou não permanecer no cargo, INDEPENDENTEMENTE DE SER ELE CULPADO OU INOCENTE. Julgamentos políticos decidem mandatos, não culpa ou inocência. Se a senhora quer um julgamento político para FHC, tem todo o direito de defender a sua proposta, mas jamais o de proclamar, antes do julgamento pelo devido tribunal penal, que seu odiado presidente da República é culpado de crime. O simples fato de a senhora tomar uma mera punição política como atestado de uma culpa real é sinal de que o ódio cego não está precisamente onde a senhora o supôs, mas sim nos seus próprios olhos.

Infelizmente, o critério político vem se substituindo cada vez mais não apenas aos princípios do Direito mas à própria moralidade, pretendendo decidir sobre a veracidade ou inveracidade das denúncias, sobre a culpa ou inocência dos acusados e, last not least, sobre o bem e o mal em sentido absoluto. A a politização de todos os domínios da existência é, precisamente, a definição do totalitarismo.

É bom saber, minha senhora, que um impeachment é apenas uma derrota política, absolutamente alheia ao direito e à moralidade. Numa democracia, uma sentença judicial transitada em julgado prova alguma coisa; um impeachmentprova apenas que o outro lado foi mais forte. Um país onde a força política é sinônimo de justiça e de moralidade está bem próximo da ditadura pura e simples.

Para encerrar, cara senhora, talvez a senhora não esperasse uma resposta tão meticulosa, mas percebi que escreveu sua carta sob forte emoção, que prova o seu sincero interesse no assunto, e julguei que suas observações, por injustas e até insultuosas que fossem, não indicavam qualquer má-fé da sua parte, e que por isto deveriam ser respondidas com paciência e método, como perguntas de um aluno numa aula.

Creia, senhora, que não sou nada do que a senhora diz. Mas, se a senhora antes me admirava tanto quanto diz ter admirado, o choque de encontrar em meus escritos alguma opinião flagrantemente contrária às suas pode ter transformado repentinamente a admiração excessiva em injusto desprezo, pois, como diz o provérbio árabe, “se alguém te louva por qualidades que não tens, logo estará te condenando por defeitos que também não tens”.

Escreva quando quiser. Respondo em geral a todos os e-mails, mas não me comprometo a fazê-lo na hora porque viajo muito e às vezes minha correspondência fica aguardando semanas a fio.

Com meus melhores votos,

Olavo de Carvalho

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