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Dois escândalos

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 27 de maio de 1999

Um presidente norte-americano, que havia escapado incólume a cabeludas acusações de corrupção, acabou perdendo o mandato porque mandou grampear o telefone dos adversários. No Brasil, grampeiam-se telefones de deputados, de ministros e agora do presidente da República – e só o que repercute na imprensa é o conteúdo das conversações gravadas, sem que ninguém se mostre nem um pouco escandalizado com o fato mesmo da espionagem política, cuja prática assim vai se tornando hábito e direito adquirido.

Mas, mesmo que as conversações de agora trouxessem uma prova inequívoca de corrupção – o que não é o caso absolutamente –, restaria perguntar: por que as verbas públicas deveriam ser tão sacrossantas e intocáveis, se a própria autoridade do Estado não vale nada e pode ser violada impunemente por qualquer araponga travestido de guardião da moral?

Todos sabemos que a oposição de esquerda tem seu próprio serviço secreto, que, graças à estratégia gramsciana da “longa marcha da esquerda para dentro do aparelho de Estado”, nenhum cidadão e nenhum homem público está hoje a salvo dos olhos e ouvidos onipresentes da hedionda KGB tupiniquim. Onipresentes e onipotentes: seus agentes e colaboradores, infiltrados em todos os escalões da administração, vasculham os papéis e a vida privada de quem bem entendem, copiam documentos, violam segredos bancários e gravam telefonemas à vontade, sem que ninguém dê o menor sinal de perceber que isso já é um Estado policial paralelo instalado no País, aguardando apenas a posse de um candidato de esquerda na Presidência da República para oficializar o reinado do Big Brother que tudo sabe, tudo ouve e tudo vê.

É óbvio que, ao dizer isso, serei fatalmente mal interpretado e dirão que estou apenas defendendo FHC. Não haveria mal algum em defender o presidente, mas, com toda a sinceridade, digo que a sorte de nenhum político individual me comove o bastante para vencer minha preguiça de escrever em sua defesa. O que estou defendendo é um princípio – o famoso Estado de Direito do qual os hipócritas da KGB falam sempre de boca cheia, quando lhes interessa. Mas a moralidade pública deste país foi tão aviltada, tão prostituída por seus defensores oportunistas, que hoje em dia qualquer defesa de um princípio é interpretada, maliciosamente, como defesa de um interesse político determinado. Estou pouco me lixando para as interpretações suínas. O que tenho a dizer é que, se a espionagem política não for punida severamente, vai se consolidar como um hábito culturalmente aceito, uma vitória esplêndida da “revolução cultural” gramsciana, e aí será tarde para defender a democracia, porque já estaremos vivendo sob uma ditadura.

E a reação da opinião pública, irada contra as vagas suspeitas de favorecimento ilícito e indiferente à exibição confessa de espionagem, mostra que a perversão do senso moral já não afeta só os políticos, mas a Nação inteira. O povo que respeita antes o dinheiro público do que a autoridade do Estado e o direito à privacidade é um povo rebaixado ao nível mais ínfimo da moralidade – a moralidade de bandidos para os quais o dinheiro é o único valor. Que essa completa inversão do senso moral tenha se operado em nome da ética, é algo que não posso ver sem sentir ânsia de vômito.

Os policiais do pensamento, que vivem à cata de nazistas embaixo das camas, não vêem nada de mau num pouquinho de nazismo quando ele se volta contra seus tradicionais desafetos, os militares brasileiros. O filme de Sílvio Back, Rádio Auriverde , que mostra a atuação da FEB na 2.ª Guerra Mundial desde o ponto de vista da propaganda alemã, desce ao mais sórdido esculacho das nossas forças militares, sempre assumindo a opinião do governo nazista como verdade inquestionável. O texto do documentário é extraído das emissões radiofônicas de guerra psicológica nazista destinadas a corroer o moral de nossas tropas na Itália, e é usado por Sílvio Back com o mal disfarçado propósito de minar o respeito que a Nação brasileira sente pelos heróis da FEB.

O filme é ruim que dói, mas, além de produzido com dinheiro do Banco do Brasil, já foi exibido várias vezes em tevês estatais, sem que nenhum intelectual de esquerda denunciasse o nazismo ostensivo do seu conteúdo. Afinal, do ponto de vista da estratégia comunista, há nazismo ruim e nazismo bom.

The Problem of Truth and the Truth of the Problem

Olavo de Carvalho

May 20, 1999

I. Radical Questioning

§ 1. Of satisfied frivolity

Quid est veritas? This is the most serious and the most frivolous of questions, depending on the intention of the one who asks it. Some admit that the meaning and the value of human life depend on the existence of an eminently certain and reliable truth, which may serve as a measurement to verify the validity of our thoughts. Others think that life may perfectly well proceed without any truth and without any foundation. Among the latter could probably be found good old Pontius Pilate. When he exclaimed “What is truth?”, he was not exactly asking a question, but rather expressing, with a shrug, his little disposition to ask that question seriously. The prospect of there not being any truth — which would drive into despair those who judge that life needs it to justify itself — was for Pilate a relief and a consolation, a guarantee that he could go on living without any concerns. Some wager on the existence of truth and cherchent en gémissant. Others turn their backs and wash their hands of the matter. The verbal formula through which they express themselves is the same: Quid est veritas? But in the difference of their nuances lies all the distance that goes from tragic to comic.

The frivolous or comic school is widely dominant nowadays, be it in the universities, be it in culture at large. Even those who seek to believe in an effective truth surround it with all sorts of limits and obstacles, for example by reducing it to the kind of partial and provisional truth that is given to us by some of the experimental sciences. Others stick to faith, saying that truth exists, but that it is above our understanding.

In any debate on the problem of truth these days, the agenda consists almost invariably in rehashing the observations made by philosophers, from Pyrrho to Richard Rorty, on the limits of human knowledge. These limits, taken as a whole, make up a formidable mountain of obstacles to any will to know the truth. And this mountain is an ever growing one, with a peak that gets farther and farther out of reach the more we climb it. From the half-witted objections of the Pyrrhonic school against the validity of knowledge acquired through the senses, to the enormously complex constructions with which Psychoanalysis denies the priority of conscience, or Gramsci reduces all truth to the expression of ideologies that succeed themselves through History, a lot has evolved in the machine that inoculates disappointment in the truth-seeker. It causes no surprise that many of the builders of this machine, as they add a new piece to it, instead of regretting the consequent increase in human impotence, display on their lips a smile similar to Pilate’s. The inexistence of truth – or the impossibility of knowing it – is comforting for them. We shall see ahead what are the deeper reasons for this strange satisfaction.

§ 2. Provisional definition of truth

For the moment, let us leave those creatures aside, and pose the question of truth on our behalf. As we do not yet know whether truth exists nor what it affirms, we have to resort to a provisional definition that will enable us to start the investigation without prejudging its outcome. To comply with such a requirement, this provisional definition has to express the mere intentional meaning of the word, as it appears even in the mouth of those who deny the existence of any truth; because in order to deny the existence of something it is necessary to understand the meaning of the word that designates it.

So I say that truth – the truth whose existence we are still not sure of, the truth whose existence and consistence will be the object of our investigation, as it was of many other investigations that came before us – is the permanent and universal cognitive foundation of the validity of judgements. If we say, for example, that the sole foundation of the validity of our judgements is their utility, we deny the existence of a cognitive foundation. That is, we deny the existence of truth through the denial of one of the elements that makes up its definition. The same happens if we say that all valid judgements are founded on faith. If we state, however, that there are no valid judgements of any kind, then we deny the existence of any foundation, cognitive or not. If we state that judgements are valid only for a specific time and location, we deny that the foundation may be permanent. If we state that judgements are only valid subjectively to the one who utters them, we deny that the foundation may be universal. If we say that the foundation of the validity of judgements belongs only to formal logic, without ever being able to reach the real objects mentioned in the judgement, we deny that this foundation has any cognitive meaning.

All these denials of truth presuppose the definition of truth as the permanent and universal cognitive foundation of the validity of judgements. Likewise, if we say that truth exists, that it is knowable, that based upon it we can build valid knowledge, we will not have added or subtracted anything from that definition, but only stated that the object defined in it does exist. Our provisional definition, as it is therefore consistent with the two totally opposed currents of opinion that dispute the question, constitutes a superior and neutral ground from which the investigation may start without any prejudices and with all honesty and rigor.

§ 3. Is the radical questioning of truth possible?

We start thus from a consensus. The next step of the investigation consists in asking whether truth, as defined, can or cannot be the object of radical questioning. By ‘radical questioning’ I mean that kind of questioning that, admitting ex hypothesi the inexistence of its object — as for example it was done many times with the existence of God, of innate ideas, or of the exterior world — leads to a conclusion that may be favorable to the inexistence or to the existence of its object.

The radical questioner of God, of innate ideas, or of the exterior world may question them because he positions himself, from the outset, outside of the divine, innate or worldly ground, i.e., he reasons as if God, or innate ideas, or the exterior world did not exist. As his investigation unfolds, he will either come to the conclusion that his premise is absurd — admitting therefore the existence of that whose inexistence he had postulated —, or inversely he will come to the conclusion that the premise holds perfectly well and that what was supposed to be inexistent indeed does not exist.

The most classical example of this method is Descartes’. He presupposes the inexistence of the exterior world, of what is acquired by the senses, of his own body, etc. And he continues reasoning along this line until he finds a limit — the cogito ergo sum — that forces him to retreat and to admit the existence of all he had initially denied.

Radical questioning is the hardest test to which philosophy can submit any idea or being that might exist.

What we should then ask, right after obtaining a formal definition of truth, is whether the truth so defined may be the object of radical questioning. As surprising as it may be to many, the answer is a flat no. The truth cannot be the object of radical questioning.

No investigation about the truth, as radical as it may be, can take as a premise the inexistence of any permanent and universal cognitive foundation of the validity of judgements and then continue to reason in a manner consistent with this premise until reaching some positive or negative result. And it cannot do so for a very simple reason: the affirmation of the absolute inexistence of any permanent and universal cognitive foundation of the validity of judgements would constitute, itself, the permanent and universal cognitive foundation of subsequent judgements made along the same line of investigation. The investigation would be paralyzed as soon as formulated.

Let us briefly examine some of the classic strategies for the denial of truth to which the questioner could resort in order to escape from this cul-de-sac.

We may try for example the pragmatistic strategy. It states that the validity of judgements rests on its practical utility, consequently assuming that the foundation of such validity is not of a cognitive nature. If we said that the inexistence of a permanent and universal cognitive foundation of the validity of judgements is not itself a permanent and universal cognitive foundation, but only a practical foundation, either this practical foundation would have to be permanent and universal, or it would only be partial and provisional.

In the first hypothesis, we would have two problems: on the one hand we would stumble upon the paradox of a universal utility, that is, of something that might usefully serve all practical ends, even the most contradictory. It would be the universal means for all ends or, more precisely, the universal panacea. On the other, we should ask whether the belief in this panacea would have, in turn, a cognitive foundation or whether it would only be a practical utility, and so on infinitely.

In the second hypothesis — i.e., if the questioner admits that the affirmation of the inexistence of truth is only a partial and provisional foundation for the validity of subsequent judgements — there would always remain the unshakable possibility that other permanent and universal cognitive foundations might subsist outside the ground so delimited, capable of validating an infinity of other judgements. The investigation could thus proceed indefinitely, jumping from one provisional foundation to another, without ever being able to found itself on its own premise, that is, on the radical inexistence of truth.

Let us then try a second strategy, subjective relativism. It proclaims, as did Protagoras, that “man is the measure of all things”, what is currently interpreted as meaning “to each his own”. In other words, what is true is true only from the point of view of the one who thinks it is true, and it may be false from the point of view of everyone else. Can this statement provide the basis for a radical questioning of truth, in such a way that the denial of the existence of a permanent and universal cognitive foundation of the validity of judgements does not become itself the permanent and universal cognitive foundation that supports the validity of subsequent judgements in the same line of investigation? Saying it in a simpler way: can relativism deny the existence of judgements that are valid for all men without this very denial becoming a valid judgement for all men? To do it, relativism would have to deny the universality of this denial, what would amount to admitting the existence of one, or some, or an infinity of judgements that are valid for all men. So relativism itself would turn out to be relative. By stating that some judgements are not valid for all men — which implies that others may be —relativism would end up becoming a platitude without any philosophical meaning. Subjective relativism cannot achieve a radical questioning of truth, as pragmatism also could not.

Could historicism then do it? Historicism declares that all truth is but the expression of a temporal, limited world view. Men think this or that not because this or that imposes itself as a universal and permanent obligatory truth, but only because it imposes itself in a specific place and for a limited period of time. But can historicism avoid that the statement of these limits becomes itself the permanent and universal cognitive foundation of the validity of judgements? In order to avoid that, it would be necessary to admit that there may be some foundation that denies the very statement of those limits. But if that foundation exists; then there is a truth whose validity is unlimited by space and time, a truth whose validity escapes from historic conditioning. And therefore historicism would be reduced to the miserable realization that some foundations of validity are historically conditioned while others are not, not even being able to apply this distinction to concrete cases without thereby affirming the invalidity of the historical principle taken as a universal rule.

I will spare the reader the enumeration of all the possible subterfuges and their detailed refutation. He can do that himself as an exercise if he so wishes, and I even encourage him to do so. In any case, as many times as he tries them, he will always return to the same point: it is not possible to deny the existence of a universal and permanent cognitive foundation of the validity of judgements, under any pretext, without this denial and its respective pretext becoming themselves a universal and permanent cognitive foundation of the validity of judgements. And thus it voids the next denial through which it would proceed the investigation, if it only could. In short, truth, as we defined it, cannot be the object of radical questioning. Neither can the possibility of knowing it. Once we deny that it is possible to know a permanent and universal cognitive foundation of the validity of judgements, either this very impossibility becomes such a foundation, thereby admitting its own lack of any foundation; or else, in order to avoid this embarrassing situation we should limit ourselves to stating that some judgements do not have any foundation while others probably do, a statement that lies within the means of any school kid.

Not being capable of hitting its target, the enemy of the truth is therefore eternally doomed to biting the edges, without ever reaching the vital center of what he wishes to destroy. He will now deny one truth, then another, now with one pretext, then with another, varying his strategies and the directions of his attack. But he will never be able to free himself from his fate: each denial of a truth will be the affirmation of another; and that denial as well as this affirmation will always result in the affirmation of truth as such, i.e., of the effective existence of some permanent and universal cognitive foundation of the validity of judgements.

This also explains the continuous, unlimited and irrepressible proliferation of the denials of truth and their total incapacity of suppressing from the face of the Earth the belief in the existence of truth, the belief in the possibility of knowing the truth, the belief in the actual and full possession of a truth capable of providing a permanent and universal cognitive foundation for the validity of judgements.

That is why the number and variety of the attacks to the truth, from Pyrrho to Richard Rorty, greatly exceed the number and the variety of the defenses that formally present themselves as such. That is because these very attacks, however their authors deplore it, always end up turning themselves into defenses and praise for the truth. Thereby, they do not only reduce the workload of the apologist of truth, but also enliven what they wished to lay to rest and honor what they wished to humiliate.

This is also the reason why the beginner, impressed by the variety and continuity of charges against the truth that are observed in the history of philosophy — nowadays in a notably increasing speed — swiftly adheres to skepticism, so that he will not feel as belonging to an isolated and weakened minority. But as he proceeds with his studies, he overcomes that first impression based only in apparent quantity. He is then no longer able to maintain that position as he realizes that the strength does not rest in the number of those who deny the truth, as impressive as they may seem, but rather in the quality of the happy few who serenely affirm it.

II. The truth is not a property of judgements

§ 1. Truth and truthfulness

The impossibility of radical questioning that we verified in the preceding chapter leads us to the conclusion that the truth may only be attacked by parts, and that each denial of a part reaffirms the validity of the whole. Said in another manner, what may be questioned are truths. “The” truth cannot be questioned and indeed never was, except in words, that is, by the pretending of a denial that ends up being an affirmation of truth.

But this takes us a step ahead in the investigation. A venerable tradition, initiated by Aristotle, affirms that truth is in the judgements, that it is a property of judgements. Some judgements “possess” the truth while others do not. The first ones are called true judgements, the second ones, false judgements. Therefore the set of true judgements is a subset of the set of possible judgements. Possible judgements, in turn, constitute a subset of the set of the human cognitive acts; these are a subset of the set of the mental acts, which are a subset of the set of human acts, and so forth. Therefore, the territory of truth is a small detached area inside a vast world of thoughts, acts and beings.

Is this really possible? How could truth be the foundation of the validity of all judgements and at the same time a property of some of them in particular? Isn’t that a blatant contradiction or at least a problem?

To come to terms with it and solve the problem, it is necessary that we agree in a distinction between truth and truthfulness. Truth is the permanent and universal cognitive foundation of the validity of judgements. Truthfulness is a quality observed in some judgements, according to which their validity has a permanent and universal cognitive foundation.

Once we understand that, it becomes evident that the truth is a founding condition for truthfulness, not the opposite. If there was no permanent and universal cognitive foundation of the validity of judgements, no judgement could have a permanent and universal cognitive foundation. However, if one particular judgement possesses this foundation, nothing in the world can establish that it is the only one to possess it, i.e., that the existence of the foundation depends of the existence of this particular judgement. Yet this particular judgement could not exist and be true if there existed no truth. The truth is thus logically prior to truthfulness and constitutes its foundation.

Still, being the foundation of truthfulness, truth is also the foundation of untruthfulness, because false judgements are only false insofar as they may be truthfully disproved, be it through their simple denial — itself truthful — be it through the affirmation of a contrary truthful judgement.

Being the foundation not only of the truthfulness of true judgements, but also of the untruthfulness of false judgements, truth must be present in both, while truthfulness is only present in the true judgements and cannot be present in false ones. Thus, the territory of truth is not identical to the set of possible true judgements, but encompasses it together with the set of the possible false ones.

§ 2. Is the foundation of all judgements a judgement?

Must the truth, foundation of all judgements, necessarily be a judgement? Can only a judgement be the foundation of another judgement? The answer is yes and no. Yes, if by foundation we mean, restrictively and conventionally, the premise upon which the proof of a judgement is founded. But a premise states something about something, and what it states is not a judgement but rather its object. Let me say, for example, that turtles have shells. I found this judgement upon the definitions of turtle and shell, which are judgements. But I found these definitions upon the observation — which is not a judgement — of turtles and shells, which are not judgements either. Should not that observation also be true, by apprehending traces which are truly present in true objects? Or should I resort to the subterfuge according to which the observation must only be exact, the concept of “true” not being applicable to it ? But then what is the meaning of “exact” in this case, if not that which informs me nothing more nor less of what I truly observed in what an object truly showed? Moreover, is it an authentic exactitude or just its simulacrum? There is no way out: either there is truth in the observation itself or it cannot be exact, correct, adequate, sufficient, nor have any other quality that recommends it except if this quality be true.

So the foundation of the truthfulness of a judgement rests not only in the truthfulness of the judgements that work as its premises but — in the case of judgements concerning objects of experience — also in the truth of the data wherefrom I extracted such premises and in the truth of what I know about such data from experience.

Furthermore, if the foundation of judgements had to be always itself a judgement, the primary foundation of all judgements would be a judgement destitute of any foundation. Taken to this cul-de-sac, Aristotle affirmed that the knowledge of the first principles is immediate and intuitive. But he meant only that these principles had no proof, not that they were devoid of any foundation. The principle of identity, for example, thus expressed in the judgement A = A, does not have behind it any judgement that may work as a premise to its demonstration. But it has an objective foundation in the ontological identity of each being to itself, which is not a judgement. What can be known intuitively is this ontological identity and not the judgement A = A, that only manifests it. So the intuition of the first logic principle does not take the form of a judgement, but rather that of an immediate evidence which, in itself, is not a judgement. There cannot be a judgement unless this immediate evidence is transformed by signs into a verbum mentis. That is, into a conscious agreement which – not yet being a proposition, an affirmation in words – is not anymore just the pure and simple intuition, but rather its mental reflex and therefore a derivative and secondary cognitive act, not a primary one.

So if the territory of logic premises begins with judgements that affirm the first principles, that territory is very far from encompassing all the field of cognitive foundations that extends itself into the realm of intuitive perception, be it of the objects of experience, be it of the first principles.

The falsity of the image of truth as a small detached zone in the vast territory of possible judgements becomes thus evident. Rather, it is all judgements, true and false, that are but a modest spot in the immense territory of truth.

III. Where is the truth?

§ 1. Truth as a realm

So we have come to understand that truth, being the criterion for the validity of judgements, cannot be an immanent property of these very judgements. Neither can it be something totally external to the judgements which would evaluate them from the outside, because this evaluation would in turn be a judgement. If I say “the chicken has laid an egg”, where can the truth of this judgement be? In the judgement itself, independently from the chicken, or in the chicken, independently from the judgement? The absurdity of the first hypothesis led Spinoza to proclaim the inanity of the judgements that arise from experience, which are never valid or invalid in themselves and always depend on something external. For him, a true judgement would have to be true in itself, independently from everything else. As, for example, A = A does not depend on what is A or on any other external verification. But the identity of A to A lies not only in the judgement that affirms it, but also in the consistency of A, whatever A may be. There is no purely logic judgement that can be true or false in itself without reference to the object of the judgement. Even a judgement that refers only to itself unfolds into a judgement that affirms something and into a judgement about which something is affirmed, and one is certainly not the other. Affirming that a judgement is true in itself cannot mean a total alienation of the “world” that is supposed by the very possibility of enunciating a judgement. Fleeing to the realm of formal identity does not solve the problem at all. Should we then say, along with an old tradition, that truth is in the relation between judgement and object? Now, this relationship is stated through a judgement that in turn must have a relation with its object – the original relation between judgement and object – and so on infinitely.

The other hypothesis, that the truth of the judgement “the chicken has laid an egg” is to be found in the chicken, independently from the judgement, would take us to equally insurmountable difficulties. It would amount to saying that the truth of the judgement does not depend on the judgement being made. That is, that once the chicken has laid an egg, the judgement that affirms it is true even though it does not exist as a judgement. Edmund Husserl would subscribe to this view without winking: the truth of a judgement is a question of pure logic that has nothing to do with the merely empiric question of a specific judgement being made by someone one day. The confusion between the sphere of the truth of judgements and the sphere of their psychological production did indeed a lot of harm to philosophy, and Husserl has definitely clarified that confusion. But if the chicken laid an egg and nobody said anything about it, truth in this case is not in the judgement, but rather in the fact. The judgement that has not yet been made cannot be true or false, it can only have the possibility to be true or false. Being true that the chicken laid an egg, the judgement that affirms it will be true if formulated, while the truth of the fact is already given by the appearance of the egg.

But if the truth of the judgement “the chicken laid an egg” is neither in the judgement independently from the chicken, nor in the chicken independently from the judgement, not even in the relation between chicken and judgement, where after all can it be?

We have just seen that, independently from the judgements that affirm them, or from any judgements that might be made about them, the objects they refer to may also be true or false. “The chicken laid an egg” is opposed to “the chicken did not lay an egg”, independently from somebody saying so or not. There is identity and contradiction in the real world, independently from the judgement which affirms or denies anything about it, and even before this judgement is made. In other words that lead to the same result: truth exists in reality and not only in judgements, or it could not exist in judgements at all. There is truth in the fact that the chicken laid an egg, there is truth in the judgement that affirms it, and there is also truth in the relation between the judgement and the fact, as well as in the judgement that affirms this relationshipt: the truth thus cannot be “in” the fact, nor “in” the judgement, nor “in” the relation, but it has to be in all three of them.

Furthermore, if it is in the three of them, it must also be somewhere else, unless we admit that a single fact and the judgement that affirms it, and the relation that connects both of them, may be true even if everything else is false. But this “everything else” that is not contained neither in the fact, nor in the judgement, nor in the relationship, necessarily includes the very existence of facts, as well as of logic principles implied in the judgement and in the relationship. If there are no facts and logic principles, a chicken will uselessly lay eggs in the realm of the non-fact, and a relation between fact and judgement will uselessly be sought in the realm of illogicality. Hence, the truth of a single fact, of a single judgement, and of their relationship, imply the existence of truth as a realm that at once encompasses and transcends facts, judgements and relationships.

Searching for truth in the fact, or in the judgement, or in the relations between them, is like searching for space in bodies, in their measurements, and in the distance from one body to another. As space is not in the bodies, nor in their measurements, nor in their distances – but rather bodies, measurements and distances are in the space – likewise, truth is not in facts, nor in judgements, nor in their relations, but they are all in the truth, or they are not anywhere. And even this “not being anywhere”, if it means anything and is not only a flatus vocis, must be in the truth.

Truth is not a property of facts, judgements, or relationships. It is the realm within which facts, judgements and relations occur.

§ 2. Is the truth an a priori form of knowledge?

At this point, the kantian temptation is practically unavoidable. As a condition for the possibility of facts, judgements and relationships, the truth is effectively an a priori condition. But is it an a priori condition for the existence of these three things or only for the “knowledge” we can have of them?

This problem is solved in a simple and brutal way: if we say that the truth is an a priori form of knowledge and intend this statement to be true, then knowledge must be in the truth and not truth in the knowledge, because what is a priori cannot be immanent to something which it itself determines. To be an a priori condition of knowledge, truth must necessarily be an a priori condition of something else that is not knowledge, but rather its object. Knowledge, like facts, judgements and relationships, is within the realm of truth and that is so independently of knowledge being considered exclusively in its eidetic content or as a fact. The truth of what is known, the truth of the knower, and the truth of knowing are all aspects of truth, and truth is not an aspect of any of them.

After all there is no kantian way out. Either knowledge is in the truth or it is not anywhere at all.

O problema da verdade e a verdade do problema

Olavo de Carvalho

Seminário de Filosofia, 20 de maio de 1999

 

  1. O QUESTIONAMENTO RADICAL
  • 1. DA FRIVOLIDADE SATISFEITA

Quid est veritas? Esta é a mais séria e a mais frívola das questões. Depende, evidentemente, da intenção de quem pergunta. Uns admitem que o sentido e o valor da vida humana dependem da existência de alguma verdade eminentemente certa e confiável, que possa servir de medida de aferição da validade de nossos pensamentos. Outros acham que a vida pode perfeitamente ir em frente sem verdade nenhuma e sem fundamento nenhum. Entre estes estava, decerto, o velho Pilatos. Ao exclamar — “Que é a verdade?” —, ele não estava fazendo propriamente uma pergunta, mas expressando, com um dar de ombros, sua pouca disposição de fazer a sério essa pergunta. A perspectiva de não existir nenhuma verdade, que levaria ao desespero aqueles que julgam que a vida precisa dela para se justificar, era para Pilatos um alívio e um consolo — a garantia de poder continuar vivendo sem preocupações. Alguns apostam na existência da verdade e cherchent en gémissant. Outros voltam-lhe as costas e lavam as mãos1. A fórmula verbal com que se exprimem é a mesma: Quid est veritas? Mas na diferença de suas nuanças reside toda a distância do trágico ao cômico.

A escola frívola, ou cômica, é amplamente dominante hoje em dia, seja nas universidades, seja na cultura em geral. Mesmo aqueles que procuram crer numa verdade efetiva cercam-na de toda sorte de limites e obstáculos, por exemplo reduzindo-a ao tipo de verdade parcial e provisória que nos é dado por algumas ciências experimentais. Outros apegam-se à fé, dizendo que a verdade existe, mas está acima de nossa compreensão.

Em qualquer debate sobre o problema da verdade, em nossos dias, o programa consiste quase que invariavelmente em desfiar de novo e de novo as observações que os filósofos, de Pirro a Richard Rorty, fizeram sobre os limites do conhecimento humano. Esses limites, vistos em conjunto, armam uma formidável montanha de obstáculos a qualquer pretensão de conhecer a verdade. E essa montanha é crescente, com um pico que se afasta mais e mais à medida que a escalamos. Por exemplo, desde as objeções simplórias da escola pirrônica contra a validade do conhecimento pelos sentidos até as construções enormemente complexas com que a psicanálise nega a prioridade da consciência ou Gramsci reduz toda verdade à expressão das ideologias que se sucedem através da História, muito evoluiu a máquina de injetar desânimo no buscador da verdade. Não é de espantar que muitos dos construtores dessa máquina, quando lhe acrescentam uma nova peça, em vez de lamentar o acréscimo da impotência humana tragam nos lábios um sorriso semelhante ao de Pilatos. A inexistência da verdade, ou a impossibilidade de conhecê-la, é para eles um reconforto. Veremos adiante quais são as razões mais profundas dessa estranha satisfação.

  • 2. DEFINIÇÃO PROVISÓRIA DA VERDADE

Por enquanto, vamos deixar essas criaturas de lado e colocar, por nossa conta, a questão da verdade. Como não sabemos ainda se a verdade existe nem o que ela afirma, temos de apelar a uma definição formal provisória, que possibilite dar início à investigação sem nada prejulgar quanto ao seu desenlace. Essa definição provisória, para atender a esse requisito, tem de expressar o mero significado intencional do termo, tal como aparece mesmo na boca daqueles que negam a existência de qualquer verdade, de vez que para negar a existência de algo é preciso compreender o significado do termo que o designa.

Digo, pois, que a verdade, aquela verdade que ainda não sabemos se existe ou não, aquela verdade cuja existência e consistência serão o objeto da nossa investigação como o foram de tantas investigações que nos precederam, é o fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos. Se dizemos, por exemplo, que o único fundamento da validade dos nossos juízos é sua utilidade, negamos a existência de um fundamento cognitivo, ou seja, negamos a existência da verdade mediante a negação de um dos elementos que compõem a sua definição. O mesmo acontece de dizemos que todos os juízos válidos têm fundamento na fé. Se afirmamos, porém, que não há juízos válidos de espécie alguma, então negamos a existência de qualquer fundamento, cognitivo ou não. Se afirmamos que os juízos só são válidos para determinado tempo e lugar, negamos que o fundamento seja permanente. Se afirmamos que os juízos só são válidos subjetivamente para aquele que os profere, negamos que o fundamento seja universal. Se dizemos que o fundamento da validade dos juízos é apenas lógico-formal, sem qualquer alcance sobre os objetos reais mencionados no juízo, negamos que esse fundamento tenha significado cognitivo. Todas essas negações da verdade pressupõem a definição da verdade como fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos. Do mesmo modo, se dissermos que existe a verdade, que ela é conhecível, que com base nela podemos construir um conjunto de conhecimentos válidos, nada teremos acrescentado ou retirado dessa definição, mas teremos apenas afirmado que o objeto nela definido existe. Nossa definição provisória, sendo portanto compatível com as duas correntes de opinião maximamente opostas que disputam em torno da questão, é um terreno superior e neutro desde o qual a investigação pode ser iniciada sem preconceitos e com toda a honestidade e rigor.

 

  • 3. É POSSÍVEL O QUESTIONAMENTO RADICAL DA VERDADE?

Partimos, assim, de um consenso. O passo seguinte da investigação consiste em perguntar se a verdade, assim definida, pode ou não ser objeto de questionamento radical. Com a expressão questionamento radical quero dizer aquele tipo de questionamento que, admitindo ex hypothesi a inexistência do seu objeto, — como por exemplo tantas vezes se fez com a existência de Deus, das idéias inatas ou do mundo exterior — termina por concluir, seja em favor dessa mesma inexistência, seja da existência.

O questionador radical de Deus, das idéias inatas ou do mundo exterior pode questioná-los porque se coloca, desde o início, fora do terreno divino, inatista ou mundano, ou seja, ele raciocina como se Deus ou as idéias inatas ou o mundo não existissem. Conforme o desenrolar de sua investigação, ele chegará ou à conclusão de que sua premissa é absurda, o que o levará portanto a admitir a existência daquilo cuja inexistência havia postulado, ou, inversamente, à conclusão de que a premissa se sustenta perfeitamente bem e de que aquilo que foi suposto inexistente realmente inexiste.

O mais clássico exemplo de emprego desse método é o de Descartes. Ele pressupõe a inexistência do mundo exterior, dos dados dos sentidos, do seu próprio corpo, etc., etc., e continua raciocinando nessa linha até encontrar um limite — o cogito ergo sum — que o obriga a recuar e a admitir a existência de tudo quando havia inicialmente negado.

O questionamento radical é o mais duro teste a que a filosofia pode submeter qualquer idéia ou ente que se pretenda existente.

O que devemos perguntar, portanto, logo após termos obtido a definição formal da verdade, é se a verdade assim definida pode ser objeto de questionamento radical. A resposta, que a muitos talvez pareça surpreendente, é um taxativo nãoA verdade não pode ser objeto de questionamento radical.

Nenhuma investigação sobre a verdade, por mais radical que se pretenda, pode dar por pressuposta a inexistência de qualquer fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos e continuar a raciocinar de maneira consistente com essa premissa até chegar a algum resultado, positivo ou negativo. E não pode por uma razão muito simples: a afirmação da inexistência absoluta de qualquer fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos constituiria, ela própria, o fundamento cognitivo permanente e universal dos juízos subseqüentes feitos na mesma linha de investigação. A investigação estaria paralisada tão logo formulada.

Examinemos brevemente algumas das estratégias clássicas de negação da verdade a que o questionador pudesse recorrer para escapar desse cul-de-sac.

Tentemos, por exemplo, a estratégia pragmatista. Ela afirma que a validade dos juízos repousa na sua utilidade prática, que portanto o fundamento dessa validade não é cognitivo. Se disséssemos que a inexistência de um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos não é ela própria um fundamento cognitivo universal e permanente, mas apenas um fundamento prático, das duas uma: ou esse fundamento prático teria de ser por sua vez universal e permanente, ou seria apenas parcial e provisório.

Na primeira hipótese, teríamos dois problemas: de um lado, cairíamos no paradoxo de uma utilidade universal, ou seja, de algo que poderia utilmente servir a todos os fins práticos, mesmo os mais contraditórios. Seria o meio universal de todos os fins ou, mais claramente ainda, a panacéia universal. De outro lado, teríamos de perguntar se a crença nesta panacéia teria por sua vez um fundamento cognitivo ou se ela seria apenas uma utilidade prática, e assim por diante infinitamente.

Na segunda hipótese — isto é, na hipótese de o questionador admitir que a afirmação da inexistência da verdade é apenas um fundamento parcial e provisório para a validade dos juízos subseqüentes —, então, evidentemente, restaria sempre, inabalável, a possibilidade de que fora do terreno assim delimitado pudessem subsistir outros fundamentos cognitivos universais e permanentes para validar uma infinidade de outros juízos, e a investigação poderia prosseguir indefinidamente, saltando de fundamento provisório a fundamento provisório, sem jamais poder chegar a fundamentar-se no seu próprio pressuposto, isto é, na radical inexistência da verdade.

Tentemos uma segunda estratégia, a do relativismo subjetivista. Este proclama, com Protágoras, que “o homem é a medida de todas as coisas”, o que se interpreta correntemente no sentido de que “cada cabeça, uma sentença”, ou seja, de que o que é verdade é verdade apenas desde o ponto de vista daquele que a pensa, podendo ser falsidade desde o ponto de vista de todos os demais. Pode essa afirmação constituir a base de um questionamento radical da verdade, de tal modo que a negação da existência de qualquer fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos não se torne ela mesma o fundamento cognitivo universal e permanente em que se apóia a validade dos juízos subseqüentes na mesma linha de investigação? Dito de outro modo, e mais simples: pode o relativismo negar a existência de juízos válidos para todos os homens sem que essa negação se torne ela mesma um juízo válido para todos os homens? Para fazê-lo, ele teria de negar a universalidade dessa negação, o que resultaria em admitir a existência de algum ou de alguns ou de uma infinidade de juízos válidos para todos os homens. Assim o relativismo estaria ele próprio relativizado e acabaria se resumindo numa platitude sem qualquer significado filosófico, isto é, na afirmação de que alguns juízos não são válidos para todos os homens, o que implica a possibilidade de que outros juízos talvez o sejam. Não, o relativismo subjetivista não pode realizar um questionamento radical da verdade, tanto quanto não o podia o pragmatismo.

Poderá fazê-lo, então, o historicismo? Este declara que toda verdade é apenas a expressão de uma cosmovisão temporalmente localizada e limitada. Os homens pensam isto ou aquilo não porque aquilo ou isto se imponha como verdade universalmente e permanentemente obrigatória, mas apenas porque se impõe num lugar e por um período limitados. Ao proclamar esses limites, pode o historicismo impedir que a afirmação desses limites se torne ela própria o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos? Para tanto, seria necessário admitir que pode haver algum fundamento que negue essa afirmação; mas, se esse fundamento existe, então existe alguma verdade cuja validade é ilimitada no tempo e no espaço, alguma verdade cuja validade escapa ao condicionamento histórico — e o historicismo estaria reduzido à miserável constatação de que alguns fundamentos de validade são condicionados historicamente, outros não, sem poder sequer aplicar esta distinção aos casos concretos sem afirmar no mesmo ato a invalidade do princípio historicista tomado como regra universal2.

Pouparei ao leitor a enumeração de todos os subterfúgios possíveis e sua detalhada impugnação. Ele mesmo pode realizá-los, a título de exercício, se assim o desejar. Sugiro mesmo que o faça. E tantas vezes quantas venha a fazê-lo terminará sempre voltando ao mesmo ponto: não é possível negar a existência de um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, sob qualquer pretexto que seja, sem que essa negação, junto com o seu respectivo pretexto, tenha de se afirmar ela própria como o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, paralisando assim a negação seguinte pela qual deveria prosseguir, se pudesse, a investigação. A verdade tal como a definimos não pode, em suma, ser objeto de questionamento radical. Nem o pode a possibilidade de conhecê-la. Negado que seja possível conhecer qualquer fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, ou esta impossibilidade mesma se tornaria tal fundamento, afirmando no mesmo ato sua própria falta de qualquer fundamento, ou então, para não assumir esse papel vexaminoso, teria de se limitar a afirmar que alguns juízos não têm fundamento e outros provavelmente têm, afirmação que está ao alcance de qualquer garoto de escola.

Não podendo atingir o alvo colimado, o inimigo da verdade está portanto condenado a roê-la pelas beiradas, eternamente, sem jamais chegar ao centro vital daquilo que desejaria destruir. Ele ora negará uma verdade, ora outra, ora sob um pretexto, ora sob outro, variando as estratégias e as direções do ataque, mas não poderá nunca se livrar do seu destino: cada negação de uma verdade será a afirmação de outra, e tanto aquela negação quanto esta afirmação resultarão sempre na afirmação da verdade como tal, isto é, da existência efetiva de algum fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos.

Isso explica, ao mesmo tempo, a proliferação contínua, ilimitada e irrefreável das negações da verdade, e a sua completa impossibilidade de varrer da face da Terra a crença na existência da verdade, a crença na possibilidade de conhecer a verdade, a crença na posse atual e plena de alguma verdade capaz de dar fundamento universal e permanente à validade dos juízos.

Por isso o número e a variedade dos ataques à verdade, de Pirro a Richard Rorty, superam amplamente o número e variedade das defesas que se apresentam formalmente como tais: é que eles próprios, ainda que a contragosto de seus autores, acabam sempre constituindo defesas e louvores da verdade, não só poupando trabalho ao apologista, mas vivificando eles próprios aquilo que desejariam sepultar e honrando aquilo que desejariam humilhar.

Essa é também a razão por que o principiante, impressionado pela variedade e contínua retomada dos ataques à verdade que se observa na história da filosofia — em velocidade notavelmente crescente nos dias de hoje —, adere logo ao ceticismo para não se sentir membro de uma minoria isolada e enfraquecida, mas, prosseguindo seus estudos e superando a primeira impressão fundada apenas na quantidade aparente, não consegue manter essa posição e acaba percebendo que a força não reside no número dos que negam, por mais impressionante que pareça, e sim na qualidade dos happy few que serenamente afirmam a verdade.

 

  1. A VERDADE NÃO É UMA PROPRIEDADE DOS JUÍZOS
  • 1. VERDADE E VERIDICIDADE

A impossibilidade do questionamento radical, que constatamos no capítulo anterior, leva à conclusão de que a verdade só pode ser atacada em partes, mas que cada negação da parte reafirma a validade do todo. Dito de outro modo: o que se pode questionar são verdades. “A” verdade não pode ser questionada e de fato nunca o foi, exceto em palavras, isto é, mediante um fingimento de negação que resulta em última instância ser uma afirmação.

Mas isso leva-nos um passo adiante na investigação. Uma tradição venerável, iniciada por Aristóteles, afirma que a verdade está nos juízos, que ela é uma propriedade dos juízos. Alguns juízos “possuem” a verdade, outros não. Chamamos, aos primeiros, juízos verdadeiros, aos segundos, juízos falsos. O conjunto dos juízos verdadeiros é portanto um subconjunto do conjunto dos juízos possíveis. Os juízos possíveis, por sua vez, são um subconjunto do conjunto dos atos cognitivos humanos, estes são um subconjunto do conjunto dos atos mentais, estes um subconjunto do conjunto dos atos humanos, e assim por diante. O território da verdade é, assim, uma pequena área recortada dentro do vasto mundo de pensamentos, atos e seres.

Será isso realmente possível? Como poderia a verdade ser ao mesmo tempo o fundamento da validade de todos os juízos e uma propriedade de alguns deles em particular? Não há nisto uma gritante contradição ou, ao menos, um problema?

Para equacioná-lo e resolvê-lo é preciso convencionar aqui uma distinção entre verdade e veridicidade. Verdade é o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos. Veridicidade é uma qualidade que se observa em alguns juízos, segundo a qual sua validade tem um fundamento cognitivo universal e permanente.

Uma vez compreendido isto, salta aos olhos que a verdade é uma condição fundante da veridicidade, e não ao contrário. Se não existisse um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, nenhum juízo poderia ter um fundamento cognitivo universal e permanente. Se, porém, um juízo em particular possui esse fundamento, nada no mundo pode determinar que somente ele o possua, isto é, que a existência do fundamento dependa da existência desse juízo em particular. Já esse juízo em particular não poderia existir e ser verídico se não existisse verdade alguma. A verdade é, pois, anterior, logicamente, à veridicidade e constitui o seu fundamento.

Mas, sendo fundamento da veridicidade, a verdade é também fundamento da inveridicidade, porque os juízos falsos só são falsos na medida em que possam ser impugnados veridicamente, seja pela sua simples negação — verídica ela própria —, seja pela afirmação do juízo verídico contrário.

Sendo o fundamento não só da veridicidade dos juízos verdadeiros, mas também da inveridicidade dos juízos falsos, se a veridicidade só está presente nos juízos verdadeiros, e não pode estar presente nos juízos falsos, a verdade, por sua vez, tem de estar presente em ambos, como fundamento da veracidade dos primeiros e da inveridicidade dos segundos. O território da verdade, pois, não é idêntico ao conjunto dos juízos verdadeiros possíveis, mas abrange este e o dos possíveis juízos falsos.

  • 2. O FUNDAMENTO DE TODOS OS JUÍZOS É UM JUÍZO?

A verdade, fundamento de todos os juízos, tem de ser necessariamente um juízo? Somente um juízo pode ser fundamento de um juízo? A resposta é sim e não. Sim, se por fundamento entendemos, restritiva e convencionalmente, a premissa em que se funda a prova do juízo. Mas a premissa afirma algo a respeito de algo, e este algo, por sua vez, não é juízo e sim objeto dele. Digo, por exemplo, que as tartarugas têm cascas. Fundamento esse juízo nas definições de tartaruga e de casca, que são juízos, mas fundamento estas definições na observação — que não é juízo — de tartarugas e cascas, que também não são juízos. Não deve esta observação ser também verdadeira, captando traços verdadeiramente presentes em objetos verdadeiros? Ou apelarei ao subterfúgio de que a observação tem de ser somente exata, não se aplicando a ela o conceito de “verdadeiro”? Mas quê quer dizer “exato”, no caso, senão aquilo que nada me informa além ou aquém do que foi verdadeiramente observado naquilo que um objeto verdadeiramente mostrava? E, ademais, trata-se de uma exatidão autêntica ou apenas de um simulacro dela? Não há escapatória: ou há verdade na observação mesma, ou ela não pode ser exata, nem correta, nem adequada, nem suficiente, nem ter qualquer outra qualidade que a recomende exceto se essa qualidade for, por seu lado, verdadeira.

Assim, o fundamento da veridicidade de um juízo não está somente na veridicidade dos juízos que lhe servem de premissas, mas também — no caso dos juízos concernentes a objetos de experiência — na verdade dos dados de onde extraí essas premissas e na verdade do que deles sei por experiência.

Ademais, se o fundamento dos juízos tivesse de ser ele próprio sempre um juízo, o fundamento primeiro de todos os juízos seria ele próprio um juízo destituído de qualquer fundamento. Aristóteles, levado a este beco sem saída, afirmou que o conhecimento dos primeiros princípios é imediato e intuitivo. Mas com isto quis dizer apenas que esses princípios não tinham prova, não que fossem desprovidos de fundamentos. O princípio de identidade, por exemplo, assim expresso no juízo A = A, não tem atrás de si nenhum juízo que possa servir de premissa à sua demonstração, mas tem um fundamento objetivo na identidade ontológica de cada ser consigo próprio, a qual não é juízo. Ora, o que pode ser conhecido intuitivamente é esta identidade ontológica, e não o juízo A = A que apenas o manifesta. A intuição do primeiro princípio lógico não se dá sob a forma de um juízo, mas de uma evidência imediata que, por si, não é juízo. Não pode haver juízo sem signos que transformem essa evidência imediata num verbum mentis, num assentimento consciente, que, sem ser ainda uma proposição, uma afirmação em palavras, já não é mais a pura e simples intuição e sim um reflexo mental dela e, portanto, um ato cognitivo derivado e segundo, não primeiro.

Desse modo, se o território das premissas lógicas tem início nos juízos que afirmam os primeiros princípios, esse território nem de longe abrange todo o campo dos fundamentos cognitivos, que se estende, ao contrário, para dentro do domínio da percepção intuitiva, seja dos objetos de experiência, seja dos primeiros princípios.

Com isso, fica evidente a falsidade da imagem na qual a verdade é uma pequena zona recortada na vastidão do território dos juízos possíveis. Os juízos todos, verdadeiros e falsos, é que são um modesto recorte no imenso território da verdade.

III. ONDE ESTÁ A VERDADE?

  • 1. A VERDADE COMO DOMÍNIO

Com isso, somos levados a compreender que a verdade, sendo o critério de validade dos juízos, não pode nem ser uma propriedade imanente dos próprios juízos, nem ser algo de totalmente externo aos juízos que, de fora, os julgasse; pois este julgamento seria por sua vez juízo. Se digo que a galinha botou um ovo, onde pode estar a verdade deste juízo? No próprio juízo, independentemente da galinha, ou na galinha, independentemente do juízo? A absurdidade da primeira hipótese levou Spinoza a proclamar a inanidade dos juízos de experiência, que nunca são válidos ou inválidos em si mesmos e sempre dependem de algo externo: um juízo verdadeiro, para ele, teria de ser verdadeiro em si, independentemente do que quer que fosse, como por exemplo a = a independe do que seja a e de qualquer outra verificação externa. Mas a identidade de a com a também não está só no juízo que a afirma, e sim na consistência de a, seja ele o que for. Não há juízo puramente lógico, que possa ser verdadeiro ou falso em si e sem referência a algo que é aquilo do qual o juízo fala. Mesmo um juízo que falasse apenas de si mesmo desdobra-se no juízo que afirma e no juízo do qual algo se afirma, e este certamente não é aquele. Dizer que um juízo é verdadeiro em si mesmo não pode significar total alheamento do mundo, que está suposto na possibilidade mesma de se enunciar um juízo. A fuga para o domínio da identidade formal não resolve absolutamente o problema. Diremos então, com uma velha tradição, que a verdade está na relação entre juízo e coisa? Ora, esta relação é por sua vez afirmada num juízo, que por sua vez deve ter uma relação com seu objeto (a relação afirmada), e assim por diante infinitamente.

A outra hipótese, de que a verdade do juízo a galinha botou um ovo está na galinha independentemente do juízo, nos levaria a dificuldades igualmente intransponíveis. Resultaria em dizer que a verdade do juízo independe de que esse juízo seja emitido, ou seja, que uma vez que a galinha tenha botado um ovo o juízo que o afirma é verdadeiro ainda que, como juízo, não exista. Edmund Husserl subscreveria isso sem pestanejar: a verdade do juízo é uma questão de lógica pura, que nada tem a ver com a questão meramente empírica de um determinado juízo ser afirmado um dia por alguém. A confusão entre a esfera da verdade dos juízos e a esfera da produção psicológica deles fez de fato muito mal à filosofia, e Husserl desfez essa confusão definitivamente. Mas se a galinha botou um ovo e ninguém afirmou nada a respeito, a verdade no caso não está no juízo e sim no fato. O juízo que não foi emitido ainda não pode ser verdadeiro ou falso, pode apenas ter as condições para sê-lo; se é verdade que a galinha botou um ovo, o juízo que o afirma será verdadeiro se formulado, ao passo que a verdade do fato já está dada com o aparecimento do ovo.

Mas, se a verdade do juízo a galinha botou um ovo não está nem no juízo independentemente da galinha, nem na galinha independentemente do juízo, nem na relação entre galinha e juízo, onde raios pode ela estar?

Ora, acabamos de ver que, independentemente dos juízos que os afirmam, os objetos intencionados nos juízos também podem ser verdadeiros ou falsos, independentemente dos juízos que venham a ser emitidos a respeito. A galinha botou um ovo opõe-se a a galinha não botou um ovo, independentemente de que alguém o diga ou não diga. Existe contradição e identidade no real, independentemente e antes de que um juízo afirme ou negue o que quer que seja a respeito dele. Ou, o que dá na mesma: a verdade existe na realidade e não só nos juízos, ou então não poderia existir nos juízos de maneira alguma. Há verdade no fato de que a galinha botou um ovo, há verdade no juízo que o afirma e há verdade, ainda, na relação entre juízo e fato bem como no juízo que afirma a relação entre juízo e fato: a verdade não pode então estar no fato, nem no juízo nem na relação, mas tem de estar nos três.

Mais ainda, se está nos três, tem de estar também em algo mais, a não ser que admitamos que um único fato, o juízo que o afirma e a relação que os une possam, juntos, ser verdadeiros na hipótese de tudo o mais ser falso. Mas este “tudo o mais”, que não está contido nem no fato nem no juízo nem na relação, inclui necessariamente a própria existência de fatos, bem como os princípios lógicos subentendidos no juízo e na relação. Se não há fatos nem princípios lógicos, inutilmente as galinhas botarão ovos no domínio do não-fato e inutilmente se buscará uma relação entre fato e juízo no domínio do ilogismo. Logo, a verdade de um só fato, de um só juízo e de sua relação subentende a existência da verdade como domínio que transcende e abrange a um tempo fatos, juízos e relações.

Procurar a verdade no fato, no juízo ou na relação é como procurar o espaço nos corpos, nas suas medidas e na distância de um a outro; assim como o espaço não está nos corpos, nem nas medidas nem nas distâncias, mas corpos, medidas e distâncias estão no espaço, assim também a verdade não está no fato, nem no juízo, nem na relação, mas todos estão na verdade ou não estão em parte alguma, e mesmo este “não estar”, se algo significa e não é apenas um flatus vocis, tem de estar na verdade.

A verdade não é uma propriedade dos fatos, dos juízos ou das relações: ela é o domínio dentro do qual se dão fatos, juízos e relações.

  • 2. A VERDADE É UMA FORMA “A PRIORI” DO CONHECIMENTO?

A tentação kantiana é aqui praticamente incontornável. Condição de possibilidade de fatos, juízos e relações, a verdade é efetivamente uma condição a priori. Mas condição a priori da existência dessas três coisas ou apenas do seu conhecimento?

Resolve-se este problema de maneira simples e brutal: se dizemos que a verdade é uma forma a priori do conhecimento e pretendemos que isto seja verdadeiro, então o conhecimento tem de estar na verdade e não a verdade no conhecimento, pois o a priori não poderia ser imanente àquilo que ele próprio determina. Para ser condição a priori do conhecimento, a verdade tem de ser necessariamente condição a priori de algo mais, que por sua vez não é conhecimento e sim objeto dele. O conhecimento, como os fatos, juízos e relações, está dentro do domínio da verdade, e isto independentemente de considerarmos o conhecimento tão-somente no seu conteúdo eidético ou como fato: a verdade do conhecido, a verdade do cognoscente e a verdade do conhecer são aspectos da verdade, e não a verdade aspecto de um deles. Não há enfim escapatória kantiana. Ou o conhecimento está na verdade ou não está em parte alguma.

 

NOTAS

  1. Há também aqueles que crêem na existência da verdade e estão seguros de possui-la sem qualquer esforço investigativo. Mas estes estão fora do debate filosófico e não nos interessam.
  2. Ainda sobre o historicismo: “[…] A nossa civilização é a primeira que tem acesso a documentos da história de todas as outras civilizações e todos os outros tempos. Desde que começa a se constituir a ciência histórica, a partir do século XVIII, e a moderna filologia que já vinha desde o Renascimento, vamos conseguindo reunir uma documentação cada vez melhor, cada vez mais extensa, cada vez mais depurada a respeito de todas as épocas, lugares e civilizações. A partir do começo deste progresso da ciência histórica é grande a tentação de forjar imaginativamente uma espécie de esquema da unidade do desenvolvimento da história humana, com base nesta documentação reunida. À medida que começa a progredir a ciência histórica, também começa a progredir a filosofia da história (séculos XVIII e XIX), que propõe uma visão global do desenvolvimento humano, no sentido, por exemplo, de um progresso em uma determinada direção. É aí que o progresso da ciência histórica é compensado também por um progresso do erro. Porque as primeiras grandes generalizações que a história da filosofia faz são evidentemente erradas, já que sua documentação é insuficiente e não há métodos ou critérios maduros. E à medida que a documentação nos séculos seguintes (XIX e XX) progride, tendemos a receber esses documentos já com uma perspectiva viciada pelas primeiras filosofias da história que surgiram. De modo que, por exemplo, a idéia de um progresso linear do conhecimento está tão arraigada na nossa mente hoje, que dificilmente conseguimos ver uma filosofia antiga, exceto como algo que estásituado no seu tempo e que já não nos diz nada exceto como documento histórico; como se Aristóteles ou Platão tivessem falado apenas para os gregos, na situação grega, e não para nós. Esta perspectiva é denominada historicista, situa cada idéia no seu contexto histórico, cultural, social, e fazendo isto, ao mesmo tempo ela nos ajuda a compreender essas idéias em função dos seus motivos, mas por outro lado, ela distancia de nós estes textos, na medida em que os refere às preocupações imediatas das quais brotaram, e distingue radicalmente estas preocupações das nossas: os antigos ficam presos no seu tempo e nós no nosso tempo, como se os seccionamentos do tempo, na verdade invenções artificiais dos historiadores, fossem distinções reais e como se não houvesse, por trás da irreversibilidade do calendário, sutis intercâmbios de afinidade entre tempos distantes entre si.
    “A perspectiva historicista, que surge no século XVIII e vai-se afirmando ao longo de todo o século XIX e que está profundamente embutida na nossa mente – como uma espécie de dogma no qual acreditamos sem exame – acredita que situar as coisas na sua devida perspectiva temporal é a melhor ou única maneira de compreendê-las. Ora, na medida em que situamos os fatos e as idéias num tempo histórico, também os relativizamos, os tornamos relativos a esse tempo, e atenuamos ou diminuimos a importância, a significação, o valor e a eficácia que possam ter para nós hoje. A compreensão historicista torna-se, por isto, uma verdadeira descompreensão, um afastamento artificial do sentido das mensagens. Ao invés de reviver os valores do passado, ela os enterra no “seu tempo”, deixando-nos fechados na atualidade do presente como numa redoma de sombras.
    “Este é um problema de método da maior importância […]. Façamos, por exemplo, um modelo em miniatura e imaginemos que todas as idéias e sentimentos que tivemos ao longo de nossa vida, nos referíssemos exclusivamente e absolutamente à etapa da nossa vida onde essas idéias e sentimentos surgiram, negando-lhes qualquer eficácia ou importância na nossa vida presente. Por exemplo, se certas crenças ou sentimentos que surgem na infância, nós os referíssemos inteiramente à situação de infância, e os explicássemos exclusivamente em função daquele momento, como se a criança que fomos estivesse morta e enterrada. Isto quer dizer que cada idéia que temos só seria válida para aquele momento, não conservaria nenhuma importância para os momentos seguintes. Por exemplo, na infância ou na adolescência, todos temos certas idéias e valores. A infância cultiva mitos, lendas, heróis, amores. Na adolescência temos grandes ambições e planos. Se depois, aos cinqüenta anos, digamos, fazendo nossa autobiografia, estudando-a cientificamente, referimos estas idéias exclusivamente às etapas em que surgiram, tiramos a validade atual que elas possam ter, julgamos a nossa infância com olhos do homem maduro, considerando-o um juiz absoluto de uma infância que já não não pode falar, e que será condenada sem ter sido ouvida, assim como mais tarde olharemos a idéia do homem maduro com a perspectiva do velho que seremos, e esse homem maduro, já não tendo nada o que dizer ao velho, será condenado por este num tribunal onde o réu está sempre ausente. Se, das épocas que vão passando, nada conserva a validade sempre atual de uma primavera que não passa, nossa vida não passa de uma coleção de cadáveres – ou, pior ainda, de uma sucessão de traições e abandonos. Isto significa que situar as idéias na sua perspectiva histórica, por um lado, é compreendê-las em função do momento, mas por outro lado é chutá-las para aquele momento, e tirar delas a vitalidade que possam ter neste momento. O historicismo, por um lado, nos dá a compreensão da história, mas se ele eleva a história, isto é, o desenvolvimento temporal, a supremo ou único critério do entendimento, ele situa cada idéia no seu tempo e cada idéia só é válida no seu tempo. Ora, se as idéias só fossem válidas no seu tempo, na realidade não seriam válidas para tempo nenhum, porque representariam apenas imagens que passaram pela mente humana e que somente expressam aquele momento, cuja duração pode ser de um século como pode ser de um dia. Ora, se fosse assim, se as idéias expressassem exclusivamente aquele momento, sem nenhuma validade para os momentos seguintes, não poderíamos nem sequer compreendê-las. De modo que o historicismo que cria este afunilamento e refere as idéias aos momentos e situações históricas tem de ser compensado por uma operação inversa, uma espécie de desistoricismo, que julgue estas idéias não pelo momento onde surgiram, mas pelo que elas exigem e cobram de nós hoje. Isto é válido para a história do mundo como para a nossa história pessoal. Lembro-me de uma sentença de Alfred de Vigny, grande poeta do Romantismo francês, segundo a qual ‘uma grande vida é um sonho de infância realizado na idade madura’. Sim, se o homem maduro já não recorda os seus sonhos de infância, ou se, recordando-os, já não sente o apelo da sua mensagem, então como ele irá julgar e compreender a trajetória da sua vida, exceto como uma sucessão de imagens que, não tendo sentido umas para as outras, não formam, juntas, sentido nenhum? Um outro grande escritor, Georges Bernanos, quando lhe perguntaram para quem escrevia, respondeu: ‘Para o menino que fui’. O menino é o juiz do homem, porque aquilo que vem depois é a realização, ou o fracasso, das expectativas e sonhos de antes.
    “Ora, se julgarmos a nossa personalidade de hoje à luz das nossas aspirações de infância ou de juventude, freqüentemente o resultado deste julgamento será negativo. Neste sentido, o historicismo é uma espécie de analgésico da consciência, porque ele nos dispensa de prestar satisfações às nossas idéias e projetos antigos, ele secciona a vida de tal modo que ela perde a unidade. Ora, o sentido dos meus atos e da minha vida agora só existe se eu os confrontar com os meus sonhos e projetos do passado. Porque você só pode entender aonde chegou se comparar com aonde queria ir.
    “Na sua maneira de compreender o pensamento antigo, a maior parte das pessoas ainda está hoje sob o domínio do historicismo. Ou seja, hoje compreendemos muitíssimo bem as idéias de Aristóteles ou de Platão, em função de seu momento e lugar de origem. Mas ainda não realizamos a operação desistoricista, que nos levaria a compreendê-los em função daquilo que eles têm a dizer, não para os gregos, mas para todos os homens, inclusive nós. Conseguimos julgar as suas idéias em função do ponto onde viemos parar, mas ainda não fizemos a operação contrária que é a de julgar a nós mesmos em função de Platão e Aristóteles, ou da antiguidade em geral. Fazemos do nosso tempo o juiz da Antiguidade e jamais convocamos a Antiguidade a depor sobre o nosso tempo. Julgamos, como dizia Karl Kraus, para não sermos julgados. Para corrigir isso, devemos desligar-nos da perspectiva unilateramente temporal e evolutiva, e, invertendo o historicismo, julgar o presente com os critérios do passado.
    “Esta operação de vai-e-volta foi realizada, por exemplo, em outro sentido – não temporal, mas espacial -, na ciência da antropologia. A antropologia começa a surgir no século passado com os viajantes, sobretudo ingleses. Inglês tem esta mania de viajar e se instalar em todos os lugares exóticos do mundo; e eles vão desenvolvendo a antropologia na medida em que mandam para a Sociedade Científica de Londres informações sobre os hábitos, costumes, valores de todas as sociedades do mundo. Graças a este imenso acúmulo de informações sobre as outras sociedades foi possível de surgir no campo da antropologia o relativismo antropológico. Isto significa que não devemos olhar as outras culturas somente com os olhos da nossa, mas tentar fazer o contrário: olhar-nos também com os olhos da outra cultura. Se o antropólogo inglês está entre os pigmeus da Nova Guiné, não interessa só o que o inglês pensa sobre eles, mas o que eles pensam do inglês. Isto se chamou relativismo antropológico. Também não deve ser absolutizado, transformado num dogma da equivalência de todos os valores, mas é um método útil, porque ajuda a compreender os outros povos nos seus próprios termos.
    “O nosso historicismo precisa ser compensado por uma espécie de relativismo, não no sentido geográfico, como fizeram os antropólogos, mas no sentido temporal, de olhar o nosso tempo com os olhos de outros tempos. Se existe um relativismo cultural, tem de existir um relativismo histórico também. O próprio historicismo realiza uma relativização, mas no sentido de encaixar cada idéia no seu tempo e fazer uma coleção de idéias-tempo, cada qual no seu vidrinho cronológico, bem fechadinha e sem contaminação de outros tempos, isto é, todas igualmente neutralizadas e relativizadas. Mas, como este tipo de relativismo neutralizante é próprio do nosso tempo e resulta de uma ideologia cientificista que é bem da modernidade, praticá-lo é impor uma perspectiva moderna aos outros tempos, fingindo respeitá-los nas suas respectivas especificidades estanques. Não é isto o que proponho. Proponho julgar o nosso tempo com os olhos de outras épocas, não a título de diletantismo relativista, mas como um meio de autoconhecimento e uma exigência prévia do método científico em história. Neste sentido, a antropologia, que muitas vezes, com base em valores de outras culturas, fez críticas profundas à nossa cultura presente, tem sido mais sensata do que a História, ou pelo menos do que a História do pensamento, onde os valores do presente continuam a medida de todas as coisas. […]”. (Ibidem, p. 22-23).

 

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