Yearly archive for 1999

Muniz Sodré se explica

Olavo de Carvalho

14 de maio de 1999

Aviso aos navegantes

Em 4 de setembro de 1996, poucas semanas após a edição de O Imbecil Coletivo, o Jornal do Brasil reuniu em espalhafatosa primeira página do seu segundo caderno alguns intelectuais esquerdistas que, sem ter lido a obra, emitiam a seu respeito declarações furiosas e assombrosamente uniformes, como se obedecendo a uma mesma voz de comando. As entrevistas refletiam bem o estado de terror pânico que o livro havia semeado entre o alto sacerdócio comunista, revelando ao mesmo tempo a vacuidade intelectual e a índole mesquinhamente corporativa do domínio que esse clero do demônio exercia sobre as universidades e as instituições culturais em geral, seja para fins de mafiosa ajuda mútua, seja para utilizá-las como peças de uma estratégia de dominação comunista.

Um dos entrevistados — o mais veemente — foi o prof. Muniz Sodré de Araújo Cabral, ex-diretor do Instituto de Comunicações da Universidade Federal do Rio de Janeiro, teórico dos cultos afro-brasileiros e autor de vários livros, entre os quais A Verdade Seduzida (Rio, Francisco Alves, 1983) e Jogos Extremos do Espírito (São Paulo, Rocco, 1994), este último severamente criticado em O Imbecil Coletivo.

As declarações do prof. Sodré já não importam, mesmo porque ele as renegou. O que importa é que a justiça acabou por prevalecer no caso, desde que o declarante, convocado pelo meu advogado Dr. Jayme Mesquita a explicar-se perante o juiz da 28ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, apresentou a seguinte retratação formal:

Categórica e formalmente, nada sei, não sendo de meu conhecimento qualquer obra ou fato que desabone a honra e a dignidade do sr. Olavo de Carvalho, sobretudo no concernente ao livro O Imbecil Coletivo, cujo teor jamais me ofendeu ou agrediu pessoalmente. Apesar de eventuais divergências de opinião, nada sei que desabone o autor, intelectual sério. Finalmente, qualquer declaração contrária a isso, a mim atribuída, não deve ser considerada, mas relegada ao esquecimento.

MUNIZ SODRÉ DE ARAÚJO CABRAL

Assim terminou, melancolicamente, mais uma investida do bloco carnavalesco “Acadêmicos de Sierra Maestra” contra a reputação de um escritor brasileiro que ousou não acompanhar o ritmo da sua marchinha.

O episódio é altamente educativo. Mostra que sempre vale a pena recorrer aos tribunais contra ataques desse gênero, por insignificantes que sejam, pois é a repetição impune de pequeninas mentiras que acaba por produzir as grandes injustiças.

Nunca é sábio deixar que inimigos covardes, apostando na própria insignificância, nos dêem agulhadas confiando em que não haveremos de reagir a agressões tão mesquinhas.

Todos os boquirrotos que, fugindo de uma discussão honesta, preferirem ultrapassar as fronteiras da licitude na sua ânsia de usar contra mim o expediente vil e calhorda da difamação, e que não tiverem no devido tempo a prudência e o bom-senso do prof. Muniz Sodré, serão tratados com o rigor que merecem.

Rio de Janeiro, 14 de maio de 1999

OLAVO DE CARVALHO

Viver sem culpas

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 13 de maio de 1999

“É isso que eu procurei a vida inteira: alguém que me dissesse que é possível viver sem culpas.” (Marilena Chauí, Diálogo com Bento Prado Jr. , Folha de S. Paulo , 13 de março de 1999.)

“Viver sem culpas” é um objetivo que toda a cultura progressista oferece à humanidade. O sentimento de culpa é condenado como um resíduo de antigas tradições repressivas, que deve ser abandonado às portas de uma nova era de felicidade e realização pessoal. Esse é hoje um ponto de acordo entre adeptos das correntes mais opostas. Sacramentada pelo consenso, a condenação da culpa tem tantas legitimações diversas, que na verdade já não precisa de nenhuma delas e vive perfeitamente bem como uma auto-evidência que prescinde de argumentos.

Mas o que é, propriamente, viver sem culpas? Sobretudo, qual a nuança precisa que tem em vista aquele que nos propõe esse objetivo?

Só há três sentidos em que um ser humano pode ser dito isento de culpas. A primeira hipótese é a da inocência, a efetiva inocência de Adão no Paraíso, do Bom Selvagem ou da infância num filme da Disney. A Bíblia e Rousseau, com muita precaução, remeteram essa hipótese a um passado mítico. Santo Agostinho confessava-se perverso desde o berço, e o pouco que ainda pudesse restar de credibilidade na imagem da inocência infantil foi impiedosamente desmoralizado pelo dr. Freud.

O desejo de “viver sem culpas” não teria o menor atrativo para as almas se apelasse a uma idéia desacreditada. Não pode ser portanto a inocência primordial o que o moderno progressismo tem em mente quando nos convida a “viver sem culpas”. A inocência completa e absoluta é um mito, uma qualidade divina que ninguém pode realizar neste mundo.

Um segundo sentido em que se pode “viver sem culpas” é o da inocência relativa, trabalhosa e periclitante em que o homem consegue se manter quando se abstém conscientemente de fazer o mal e, se o faz, procura remediá-lo com devotada boa-fé. É uma norma de perfeição razoável ao alcance de muitos seres humanos.

Mas não pode ser esse o sentido de “viver sem culpas”, pois a possibilidade de um homem corrigir o mal que fez repousa inteiramente no sentimento de culpa que o acomete quando peca; e para refrear-se de fazer novos males ele tem de conceber em imaginação a culpa que sentiria se os fizesse.

Nesse sentido, a inocência relativa não é de maneira alguma viver sem culpas: é, precisamente, valorizar o sentimento de culpa como uma bússola que nos guia para longe do mal.

Mas “viver sem culpas” pode significar ainda uma terceira coisa: pode significar a abolição pura e simples da idéia de culpa. Neste caso, faça o indivíduo o que fizer, seus atos não serão examinados sob a categoria da culpa, do arrependimento, da pena e da reparação. Não importando a natureza desses atos nem as conseqüências que deles decorram para terceiros, serão sempre enfocados de modo a evitar o constrangimento de um acerto de contas moral. Poderão ser explicados sociologicamente, psicologicamente, pragmaticamente, ser avaliados em termos de vantagem e desvantagem, descritos em termos de desejo, gratificação e frustração. Só não poderão ser julgados.

Este último sentido é, com toda a evidência, o único em que é possível, na prática, “viver sem culpas”. É ele, evidentemente, que os ideólogos modernos têm em vista quando oferecem à humanidade esse ideal de futuro.

Mas, no presente, já há muitas pessoas que vivem sem culpas, que não se submetem ao exame da consciência moral, que não se sentem constrangidas quando suas ações produzem danos para terceiros. Chamam-se sociopatas. Não são doentes mentais, nem retardados. São indivíduos inteligentes, capazes, não raro dotados de certa genialidade e impressionante desenvoltura social, e apenas desprovidos de sensibilidade moral para sentir culpa pelos seus atos. Entre eles encontram-se assaltantes, traficantes, chefes de gangues – e todos os líderes de movimentos totalitários, sem exceção. Quem deseje ser como eles sente seu coração bater forte, cheio de esperança, quando ouve alguém anunciar que é possível viver sem culpas.

Nossa civilização começou quando Cristo ordenou ao apóstolo: “Toma tua cruz e segue-me.” Dois milênios depois, o ideal que se anuncia é jogar a cruz fora, pouco importando em cima de quem ela caia, e seguir correndo o carro da História, pouco importando quem ele venha a esmagar pelo caminho.

O pequeno difamador Ivan Cavalcânti Proença

Olavo de Carvalho

Rio de Janeiro, 11 de maio de 1999

Ao
Sindicato dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro
Jornal Tribuna do Escritor
Av. Heitor Beltrão, 353, Tijuca
Rio de Janeiro 20550-000 RJ

e-mail: seerj@vetor.com.br

Prezados Senhores,

Em carta à Tribuna do Escritor de março de 1999, o sr. Ivan Cavalcânti Proença informa ter lido, num artigo meu publicado em O Globo de 19 de janeiro, “entre outras indecências, que até que foram muito poucos os esquerdistas mortos pela Ditadura, levando em conta a população“. Decente como ele só, e escandalizado de que semelhante truculência fosse assinada por um indivíduo que aquele diário qualificava de “escritor”, o sr. Proença foi correndo delatar o fato ao Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, o qual por sua vez se apressou em comunicar ao distinto público que o indigitado apologista de morticínios, para alívio geral da classe, não pertencia ao seu quadro de associados.

O sr. Proença parece considerar-se escritor, e talvez até o seja, pois não há razões para duvidar da autenticidade da sua matrícula sindical que, na falta de maiores glórias curriculares, ele pode esfregar na cara de qualquer um como prova de algo que, pelo exame estilístico da sua cartinha, ninguém chegaria a imaginar. E como um escritor tem de ser necessariamente leitor habilitado, não posso admitir a hipótese de que o sr. Proença tenha compreendido tão mal ou porcamente aquilo que com a maior simplicidade jornalística escrevi em O Globo e com cujo sentido tantas empregadinhas domésticas e pilotos de carrinhos de sorvete atinaram sem qualquer dificuldade.

O que ali realmente se diz é que três centenas de esquerdistas mortos por um governo direitista num país de cem milhões de habitantes são uma dose bem modesta de crueldade política em comparação com os dezessete mil direitistas mortos por um governo esquerdista num país de população quinze vezes menor. Nada podendo contra esses números em que o cotejo estatístico de Brasil e Cuba tanto empana a imagem beatífica que os comunistas apreciam alardear de si mesmos, e em cuja autoridade postiça se escoram para impingir ao mundo a lenda do monopólio direitista da maldade, o sr. Proença optou por manipular cirurgicamente a minha frase, amputando dela toda menção ao caso cubano, de modo a dar a impressão de que não se tratava de uma comparação e sim de um horripilante apelo retroativo ao massacre de mais esquerdistas.

O dano injusto que o sr. Proença pretendeu fazer à minha reputação entre os escritores cariocas já está feito. A mágica besta da citação falseada já iludiu os leitores da Tribuna do Escritor. Este jornal tem agora o dever de impedir que a mentira se propague, e para tanto basta que publique este desmentido, sem cortes ou alterações. Mas, para não cair naquele tipo de imparcialidade cínica que se mantém a igual distância da verdade e da mentira, o Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro tem a obrigação de tirar o caso a limpo, examinando o meu artigo linha por linha para verificar que não tem, mesmo de longe, a nuance homicida que lhe atribui perversamente o sr. Proença. Anexo, para tanto, uma cópia do texto, e apresento a essa entidade, neste ato, não somente o pedido de retificação que me é facultado pelo direito de resposta, mas também uma comunicação formal da infração de ética profissional cometida pelo seu associado Ivan Cavalcânti Proença, um escritor que não se vexa de remanejar as palavras alheias segundo o molde de uma intenção difamatória baixa, vil e covarde.

Indivíduos como o sr. Proença apostam sempre na própria insignificância, contando com que suas vítimas, por compaixão ou preguiça, não se darão o trabalho de punir agressores tão miúdos. Fique ele avisado de que agora mexeu com alguém que não é suficientemente orgulhoso para se dispensar de esmagar um piolho que o incomoda. Contra o sr. Proença já estão sendo tomadas portanto as medidas judiciais cabíveis, sem prejuízo da solicitação que ora encaminho à entidade representativa dos escritores cariocas.

Não sou, é verdade, membro do Sindicato, mas tenho mais de uma dezena de livros publicados, objetos de enfático louvor de Jorge Amado, Josué Montello, Herberto Sales, Ariano Suassuna, Edson Nery da Fonseca e tantos outros escritores de primeiro plano, escrevo regularmente artigos de crítica literária para a revista Bravo! e, como se isso não bastasse, sou também membro da União Brasileira de Escritores, Seção de São Paulo, inscrito sob o número 2775.

Por fim, como não há mal que não traga em seu bojo algum bem, aproveito a ocasião para pedir a minha inscrição no Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, dado que agora resido nesta cidade e muito apreciaria ter um contato mais próximo com os colegas de ofício que essa entidade dignamente representa.

Atenciosamente,

Olavo de Carvalho

Muniz Sodré se explica

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