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“Os” intelectuais e seu modelo

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 26 de junho de 2008

O filósofo francês Jean-Yves Béziau dizia que o pensamento universitário no Brasil é a imitação subdesenvolvida de um modelo degenerado. Recentemente, o modelo e sua imitação voltaram a exibir-se nas páginas do noticiário, o único lugar onde podem experimentar, por momentos, uma deliciosa sensação de existência. Em Paris, informa-nos a Folha, “o encontro dos filósofos Alain Badiou e Slavoj Zizek, em 16 de maio passado, foi um show de inteligência e bom humor”. É um equívoco. Dois ídolos da esquerda que se reúnem para afirmar que “o fracasso do socialismo real não invalida o comunismo” constituem, mais propriamente, um espetáculo de mendacidade e humor negro.

Desde logo, a escolha das palavras é um eufemismo cínico. Fracasso é brochar na noite de núpcias. Matar cem milhões de civis é uma exibição de força e de capacidade organizativa como jamais se viu no mundo. O comunismo não fracassou: apenas mostrou a que veio. Marx, Engels e Lênin sempre afirmaram que o regime comunista se imporia pelo genocídio. Ninguém pode acusá-lo de ter falhado nisso.

Não satisfeitos com o truque idiota, Badiou e Zizek, ao proclamar que “é preciso reabilitar o comunismo”, deixaram claro, para alívio geral, que não se referiam àquela coisa medonha que foi o estalinismo. Mas, esperem aí, quem matou cem milhões não foi o estalinismo, a variante russa do comunismo. O estalinismo matou vinte milhões. Os outros oitenta foram assassinados pelo comunismo em geral, principalmente na sua versão maoísta, à qual o próprio Badiou ainda exibe alguma fidelidade residual. Clamar contra “o estalinismo” é a fraude metonímica com que os saudosistas do maoísmo tentam se limpar da cumplicidade com horrores que ultrapassaram a imaginação do próprio Stalin.

Zizek, por seu lado, repele o nivelamento moral de nazismo e comunismo, afirmando que o primeiro matava coletivamente, ao passo que o segundo tentava ao menos formalizar alguma acusação, como nos famosos Processos de Moscou. A comparação revela aquela mistura de ignorância e má-fé sem a qual ninguém pode se tornar um respeitado intelectual de esquerda. Os acusados dos Processos de Moscou eram líderes eminentes do Partido, julgados por traição. Altos funcionários do governo alemão sob acusação similar eram também julgados por tribunais militares ou civis. A massa dos assassinados pelo comunismo não teve o privilégio de nenhum processo judicial. Foram condenados em bloco, por pertencer a grupos sociais indesejáveis, exatamente como os judeus na Alemanha. Nos dois casos, o processo individualizado, que nas democracias é o mais elementar dos direitos humanos, torna-se uma prerrogativa da nomenklatura, enquanto o zé-povinho vai para o matadouro em filas anônimas, sem saber de que é acusado. A simetria é perfeita, mas, para Zizek, invisível.

Na mesma semana em que a Folha se deleita ante essas exibições de deformidade mental, um grupo de quarenta intelectuais esquerdistas, os mesmos de sempre – autodenominados “os” intelectuais, para dar a entender que fora do seu círculo não há vida inteligente (como se lá dentro houvesse alguma) –, reuniu-se com o presidente da República e, extasiado, recebeu dele duas garantias reconfortantes:

1º. Contrariando o que dissera à agência Reuters (“nunca fui esquerdista”), Lula afirmou que sempre foi de esquerda e é ainda.

2º. Desmentindo a fantasia bushista de um Lula pró-americano, o nosso presidente está cada vez mais afinado e convergente com Hugo Chávez.

Os senhores podem imaginar a satisfação quase erótica com que essas informações foram recebidas por “os intelectuais”. Pena que Zizek e Badiou não estivessem lá.

De passagem, observo: O que caracteriza o sr. Lula não é que ele tenha duas caras — é que elas permaneçam sempre higienicamente separadas, sem que ninguém, exceto eu, busque decifrar a unidade secreta por trás de um personagem que é homenageado simultaneamente em Davos pela sua conversão ao capitalismo e no Foro de São Paulo por sua fidelidade ao comunismo.

Difamação pura e simples

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 19 de junho de 2008

Qualquer fulano que escreva um livro contra a religião, armado tão-somente de algum prestígio acadêmico e de uma considerável ignorância do assunto, tem o aplauso garantido da grande mídia internacional. Uma vez assegurado o seu sucesso de livraria, os vexames escabrosos que o distinto venha a sofrer em debates com intelectuais crentes permanecem rigorosamente fora do noticiário, de modo que sua fama de iluminado demolidor do obscurantismo não é afetada no mais mínimo que seja pela comprovação da fraude que a gerou.

Não li o livro do matemático John Allen Paulos, Irreligion, mas a entrevista que o autor concedeu a Veja é uma tão persuasiva confissão de vigarice que já basta para tirar o ânimo de lê-lo. Professando impugnar “a religião como erro lógico”, Paulos comete no breve espaço de duas páginas erros lógicos monstruosos que nenhum lapso de transcrição pode explicar e que, vindo de tão sobranceira presunção de sabedoria, não têm como ser perdoados mediante alegação de inexperiência.

Desde logo, ele confessa atacar somente as crenças literalistas do fiel comum, ignorando metodicamente a tradição religiosa e as mais altas explicações dos teólogos e filósofos, mas desse ataque ele deduz a invalidade de toda a religião e não somente das ilusões populares que a cercam – um non-sequiturmonumental, tanto mais intolerável porque acompanhado da recomendação professoral de que as pessoas estudem matemática para aprender a conhecer a realidade. Quem sabe o que é matemática entende que a relação entre ela e a realidade é a coisa mais encrencada deste mundo e que uma rebuscada habilidade matemática é compatível com a total falta de senso de realidade – fenômeno que a própria entrevista ilustra.

Para piorar as coisas, quando o repórter lhe cobra uma explicação quanto aos grandes cientistas cristãos como Leibniz e Pascal, Paulos responde com duas mentiras e um sofisma clássico:

Primeiro, diz que o Deus de Leibniz e Pascal era peculiar e não seria reconhecido como Deus pelo crente comum. Isso é totalmente falso. O Deus desses filósofos era o da Bíblia, compreendido da maneira mais ortodoxa ao seu alcance, e apenas explicado num nível intelectual superior ao do crente vulgar, exatamente como acontece com o Deus de Santo Tomás de Aquino ou do papa Benedito XVI.

Segundo, afirma que a concepção de Deus desses filósofos consistia nas “leis impessoais do universo”, na “beleza do mundo natural”, o que, além de ser radicalmente contraditado pelos textos, resulta em atribuir a dois gênios da filosofia um chavão sentimentalóide de ateístas pequeno-burgueses. Leibniz e Pascal não eram Ernest Renan e Ludwig Büchner.

Terceiro, assegura que “o fato de um Leibniz ser religioso não prova nada a favor da religião”. É verdade, mas muito menos se prova algo contra a religião fugindo dos argumentos de Leibniz – ou, pior ainda, falsificando-os – e em seguida cantando vitória sobre Leibniz após uma discussão triunfante com caixeiros de loja e empregadinhas domésticas. E Paulos faz com Leibniz o que faz com toda a intelectualidade cristã superior: foge ao confronto com ela e vai brilhar ante uma platéia de ignorantes.

O repórter elogia-o por atacar a religião com bom humor em vez da fúria de Richard Dawkins e Christopher Hitchens. Mas o que caracteriza esses dois não é a violência, e sim o propensão de arrogar-se autoridade em campos dos quais têm conhecimentos menos que rudimentares, bem como de só discutir com uma caricatura de religião propositadamente construída para simular a vitória do ateísmo. No primeiro ponto, Paulos é idêntico a eles. No segundo, é ainda mais perverso, pois confessa abertamente o que eles deixam implícito. Se a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude, o cinismo é a afirmação ostensiva do vício como virtude.

Intelectualmente indefensável, o empreendimento dos três só faz sentido como obra de difamação deliberada, que deveria ser respondida não com debates acadêmicos, mas com processos judiciais.

Piada satânica

 

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 12 de junho de 2008

Outro dia um amigo meu me perguntou se eu não havia reparado que, no intervalo de uma geração, condutas descritas pela psiquiatria como neuróticas e até psicóticas passaram a ser aceitas como normais. Não apenas como normais – respondi –, mas como normativas, louváveis e obrigatórias. Os passos seguintes são: (a) marginalizar e criminalizar toda reação de repulsa; (b) tornar a repulsa psicologicamente impossível, expelindo-a do repertório das condutas admitidas na sociedade.

Só a paranóia indisfarçável permite, por exemplo, que, num país onde ocorrem 50 mil homicídios por ano, os assassinatos de 120 homossexuais, espalhados ao longo de um ano num território de oito milhões e meio de quilômetros quadrados, sejam descritos como uma onda genocida homofóbica. No entanto, basta alguém apelar à comparação estatística e instantaneamente ele mesmo, entre gritos de revolta e lágrimas de indignação da platéia, é acusado de homofóbico e apóstolo do genocídio. A hipótese de confrontar o número de gays assassinados com o de gays assassinos, indispensável cientificamente para distinguir entre um grupo ameaçado, um grupo ameaçador e um grupo que não é nem uma coisa nem a outra, acabou por se tornar tão ofensiva que a mera tentação de sugeri-la já basta para você ser processado por homofobia, antes mesmo de haver lei que a proíba.

Mutatis mutandis, o sr. Luiz Mott alega como prova do ódio generalizado anti-gay uns noventa e poucos casos de agressões a homossexuais ocorridos num prazo de quatro meses em São Paulo, mas quem ousará cotejar esse número com a quantidade de agressões cometidas pelos próprios militantes gayzistas num só dia da Parada Gay na mesma cidade? Raciocinando pelo critério estatístico do sr. Mott, diríamos que os gays são um perigo público. A conclusão é absurda, mas decerto menos absurda do que proclamar que eles estão em perigo.

Proibido o senso das proporções, o fingimento histérico e o hiperbolismo paranóico em favor de grupos de interesse tornam-se deveres cívicos indeclináveis. A loucura tornou-se obrigatória, e quem quer que recuse ser contaminado por ela é um criminoso, um réprobo, um doente mental incapacitado para a vida em sociedade.

O sr. presidente da República acaba de dar foros de exigência estatal a essa estupidez psicótica, ao declarar que toda e qualquer oposição ao homossexualismo é “a doença mais perversa que já entrou numa cabeça humana”.

S. Excia reforça suas palavras insistindo em aparecer em cerimônias oficiais ao lado do sr. Luiz Mott, aquele mesmo que discursa sobre arte pornô abraçado à estátua de um bebê pelado do sexo masculino, transmitindo de maneira nada sutil a idéia de que bebês são ou devem tornar-se objetos de desejo sexual como quaisquer outros (se não acreditam, confiram em http://www.youtube.com/watch?v=FlmfZdyk2YA). A propaganda da pedofilia é aí mais do que evidente, mas, ao condecorar o sr. Mott por “mérito cultural” (como se ele próprio tivesse mérito ou cultura), o sr. Lula joga todo o peso da sua autoridade presidencial no blefe cínico que nos força a negar o que vemos e a crer, em vez disso, na encenação oficial de altas intenções humanitárias e culturais. Não há prepotência maior do que exigir que um ser humano sacrifique sua consciência, sua inteligência a até sua capacidade de percepção sensível no altar do absurdo. “Afinal, você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?”, perguntava Groucho Marx. Quando a piada se transfigura em realidade, o humorismo se transmuta em palhaçada satânica.

Totalmente insensível ao grotesco da sua performance, o louco sobe à cátedra e dá lições de psiquiatria, catalogando como doentes os que achem que há algo de errado em erotizar a imagem de um bebê, e ainda propondo, como terapêutica, a prisão de todos eles.

E há quem acredite que é possível discutir racionalmente, polidamente, com pessoas como os srs. Lula e Mott…

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