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No limite da candura

Olavo de Carvalho


 Zero Hora, 10 de fevereiro de 2002

Espero que, antes de solidarizar-se com as efusões de revoltafingida da esquerda chique contra a ascensão da delinqüência, o leitor se lembre de que essa gente apregoou aos quatro ventos as virtudes revolucionárias do banditismo, ensinou técnicas de guerrilha e organização paramilitar aos detentos da Ilha Grande e por fim encabeçou o movimento internacional de solidariedade aos seqüestradores de Abílio Diniz, em 1989, dando a seus sucessores na carreira do crime a esperança, senão a certeza, do respaldo midiático e da impunidade.A candura sonsa, a incapacidade de enxergar a malícia alheia, tem limites: ultrapassado um certo ponto, torna-se cumplicidade ativa do otário com o vigarista, do sequestrado com o seqüestrador, da vítima com os advogados de seus agressores e assaltantes.

Se a opinião pública brasileira, malgrado os alertas que lhe chegam, ainda que parcos e escondidos nas entrelinhas de um noticiário fortemente policiado pelos gerentes da boa imagem esquerdista, se recusar por mais tempo a tomar consciência da índole essencialmente criminosa, golpista e manipuladora da política de esquerda neste país, mais cedo ou mais tarde terá de se submeter calada às exigências ditatoriais dessa política, que não serão diferentes aqui do que foram em Cuba ou no Camboja.

É verdade que à índole do brasileiro repugna ver na alma alheia qualquer dose de maldade superior àquela de que ele próprio se imagina capaz. Exposto diariamente à tentação vulgar de obter miúdas vantagens ilícitas aqui e ali, com a maior facilidade ele adivinhará intenções idênticas no coração do próximo. Mas a perfídia maior, o grande conluio da revolução continental da narcoguerrilha, é algo que ultrapassa a sua concepção do mal. Incapaz de conceber um criminoso maior que o juiz Lalau ou do que os delinqüentes avulsos que pululam no noticiário, ele tenderá, instintivamente, a rejeitar com horror a mera sugestão de que certas coisas possam estar acontecendo. De início, ele o fará com uma certa afetação de tranqüilidade superior, rindo do interlocutor e atirando-lhe na cara o estereótipo fácil da “teoria da conspiração”, do qual aliás só tomou conhecimento por um título de filme e cujo sentido desconhece por completo. Depois, aos poucos, sob o bombardeio dos fatos que se sucedem, ele sentirá vacilar a falsa segurança de sua certeza inicial e, diante de qualquer tentativa mínima de tirar desses fatos as conclusões que eles logicamente impõem, começará a reagir com quatro pedras na mão. Fará do interlocutor o emissário do mal, vingando-se das más notícias na pessoa do carteiro.

Mas nem mesmo um cego de nascença, vendado e preso num quarto escuro, pode se impedir de enxergar, com os olhos da inteligência, o sentido nítido e patente de certos fatos. Que há uma articulação política entre Hugo Chávez, Fidel Castro, as Farc e a esquerda brasileira, por exemplo, é algo que ninguém pode negar, pois essa parceria foi afirmada e reafirmada vezes sem conta pela própria esquerda, seja no Foro de São Paulo, discreta reencarnação do Comintern, seja, mais espetaculosamente, nos dois Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre. Mas a parceria vai além das declarações de intenção. Chávez, segundo se revelou num vídeo recentemente divulgado, é fornecedor de armas às Farc, enquanto estas, conforme o provaram os arquivos do “laptop” do delinqüente Fernandinho Beira-Mar, estão intimamente associadas à rede brasileira de tráfico, e Fidel Castro, por sua vez, é acusado por seu ex-assessor Ernesto Bettancourt de manter uma conta pessoal na Suíça para lavagem de dinheiro do comércio latino-americano de drogas. Os partidos esquerdistas legais, por seu lado, em vez de combater de frente a articulação revolucionária, como em Portugal o fez Mário Soares contra as tropas militantes de Álvaro Cunhal — e como seria de fato a única atitude digna de esquerdistas convertidos ao constitucionalismo democrático –, fazem o possível e o impossível para acobertar essa gigantesca manobra, para infundir no público a impressão de que ela não existe, para protegê-la enfim de todo risco de investigação e denúncia. Com isso, dão à revolução em marcha o tempo precioso que ela necessita para fortalecer-se à sombra, até estar pronta para dar sobre o continente o seu bote fatal. Fecha-se assim o círculo: é absolutamente inescapável a conclusão de que a liderança esquerdista deste país está de braços dados com a revolução continental armada, financiada pelo narcotráfico. Quem quer que se recuse a ver uma coisa tão óbvia, não estando ele próprio amarrado por algum compromisso com essa gente, é na melhor das hipóteses um ingênuo, um incurável ingênuo.

(PS O mesmo assunto, sob ângulo diverso e complementar, foi analisado no meu artigo de ontem, sábado, em “O Globo”, que se encontra hoje reproduzido na minha homepage, http://www.olavodecarvalho.org.

Ódio político

Olavo de Carvalho


 Zero Hora , 13 de janeiro de 2002

Um dos traços mais inquietantes que podemos observar na mentalidade de nossos contemporâneos é que, neles, a intensidade da revolta político-social está quase sempre na proporção inversa das injustiças e privações que sofreram. Rarissimamente encontramos, entre os pobres e oprimidos, aquela dose quase psicopática de ódio radical que com tanta facilidade aflora nos discursos de intelectuais, de funcionários públicos, de gente da classe média e alta.

Uma primeira explicação — ou desculpa — com que se pode atenuar a estranheza do fenômeno é que a indignação dessas criaturas não brota de uma reação a danos pessoais que tenham sofrido, mas da contemplação, cruciante para suas almas sensíveis, de males infligidos a terceiros.

Essa explicação surge quase por automatismo à simples formulação da pergunta, e ela parece até superlativamente satisfatória, na medida em que não somente explica, mas justifica. Não sendo a expressão de mágoas pessoais, mas de um zelo impessoal pela defesa de direitos alheios, a indignação político-social já não é um simples sentimento, um fenômeno psíquico qualquer que pudesse necessitar de explicação, mas a expressão de um juízo moral obrigatório.

A questão parece, pois, resolvida, o estranhamento dissipado in limine.

Tudo estaria bem se não observássemos a facilidade com que o cumprimento desse suposto dever moral impessoal assume a forma de um ódio pessoal, visceral, profundo e avassalador a certos indivíduos, que aos olhos do indignado personificam ou representam as causas da injustiça, mesmo quando estas causas, no mesmo instante, são explicadas por forças históricas e sociológicas tão impessoais quanto as razões morais alegadas para legitimar a indignação.

Hannah Arendt diante de Eichmann meditava sobre a “banalidade do mal”, subentendendo a inexistência de ódio pessoal na máquina burocrática de extermínio comandada pelo célebre genocida. Mas, enquanto a filósofa se perdia nessas considerações, o psiquiatra Leopold Szondi, em exaustivos testes de personalidade (depois publicados em “Caim e o Cainismo na História Universal”), demonstrava acima de qualquer dúvida razoável a quantidade excepcional de ódio que latejava na alma do carrasco. Sem esse ódio, ele não poderia comandar pessoalmente a máquina impessoal. A lógica do homicídio desenvolvia-se aí em dois planos. No plano da legitimação ideológica, o “judeu” que cabia a Eichmann exterminar era uma entidade coletiva abstrata, um fator sociológico que o partido lhe dissera ser a causa dos males da Alemanha. No plano da ação diária, porém, esse fator sociológico a ser exterminado tomava a forma de seres humanos de carne e osso, que eram mandados para o matadouro em pessoa. O que era exterminado neles não eram os caracteres familiares, religiosos ou culturais que faziam deles “judeus”: era simplesmente o seu corpo. A passagem da sentença coletiva para a execução individual era tão problemática, do ponto de vista do senso comum, que não se podia operar sem o concurso de uma poderosa força psíquica: o ódio político. O ódio político, impessoal nos seus motivos, pessoal no seu objeto, consiste precisamente nessa incongruência viva: odiar um homem por algo que, admitidamente, não é ele, ou que ao menos não é propriamente ele.

O ódio político não pode, pois, em última análise, surgir nem desenvolver-se sem uma concomitante cisão esquizóide da consciência, indispensável a que um ser humano adulto aceite devotar-se seriamente à operação mágica de tentar suprimir universais abstratos por meio da destruição de um certo número de seus exemplares individuais — matar cavalos na esperança de suprimir a cavalidade.

Não há dúvida de que esterilidade intrínseca dessa operação é uma das causas da proliferação epidêmica de atos de violência ritual que, quanto mais se afastam do resultado esperado, tanto mais se reproduzem por absoluta incapacidade de gerar qualquer outra coisa senão sua própria repetição compulsiva.

Também não há dúvida de que o próprio ódio pode, em ricochete, apagar de tal modo no agressor sua consciência da humanidade de suas vítimas, que a motivação do crime se transmute como que numa impessoalidade de segundo grau: nas palavras de Che Guevara, o guerrilheiro que “no pierde la ternura jamás” é o mesmo que aspira a se transformar numa “eficiente e fria máquina de matar” (palavras textuais). Como ninguém pode ao mesmo tempo estar imbuído de ternura e de frieza assassina para com um mesmo objeto, a ternura e a frieza têm, logicamente, objetos distintos: o guerrilheiro é terno diante de uns, friamente assassino diante de outros. O que separa essas duas classes de objetos é um critério ideológico impessoal, mas o resultado disto é que o guerrilheiro, ao matar impessoalmente pessoas de carne e osso, tem de lhes recusar a condição de pessoas, que as habilitaria a ser objetos de ternura: a vítima deixa de ser pessoa no instante mesmo em que, sob a alegação de motivos impessoais, é pessoalmente assassinada. “Endurecer sín perder la ternura” é a fórmula de uma cisão esquizofrênica voluntária, que busca reafirmar a humanidade do assassino no instante mesmo em que a nega na vítima por meio de um artifício lógico já antecipadamente admitido como falso.

Gerado no ventre de um erro lógico, alimentado por um auto-engano existencial, o ódio político, com todas as suas pretensões de alta moralidade, é um dos mais desprezíveis sentimentos humanos. E hoje permitimos que, a pretexto de “educação”, esse sentimento seja instilado no nossos filhos desde a mais tenra infância.

A História, essa criminosa

Olavo de Carvalho


 Zero Hora , 30 de dezembro de 2001

Há anos umas dezenas de esquerdistas espalham na internet fofocas escabrosas a meu respeito, remetem falsas mensagens em meu nome a fóruns de debates e me enviam, com regularidade, insultos seguidos de ameaças de morte, que invariavelmente respondo com os palavrões mais cabeludos que me ocorrem no momento.

Mas a esquerda não suporta provar, nem mesmo em diluição homeopática, o veneno que em doses cavalares ela serve a seus adversários. Tendo recebido exatamente um e não mais de um e-mail com ameaça de morte — uma fração insignificante da quota a mim concedida nos últimos tempos –, o deputado Aluizio Mercacante armou um forrobodó dos diabos, alertando a Polícia Federal e a imprensa. Instantaneamente, veio em seu socorro a fiel milícia jornalística, desencadeando uma onda de vociferações pejorativas contra a “extrema direita”, numa gama que ia do alarmismo apocalíptico até a ostentação de desprezo soberano, de modo que, no conjunto, se anulavam umas às outras.

O fato de que esses comentários incluíssem na militância de “extrema direita” o grupo carioca Ternuma, que não tem nenhuma atividade política e se dedica exclusivamente à reconstituição histórica do período militar segundo a ótica — como direi? — “do outro lado”, mostra que, para seus autores, a simples tentativa de questionar sua visão do passado já é, virtualmente, crime. Ninguém tem o direito de insinuar que os fatos não se passaram como a esquerda diz que se passaram.

É crime, por exemplo, dizer que a guerrilha comunista, tendo começado em 1961, não pode ser apresentada retroativamente como uma resposta desesperada ao golpe de 1964.

É crime dizer que João Goulart, tendo ocultado e repassado secretamente a Fidel Castro as provas da intervenção armada de Cuba no território nacional em 1961, se tornou culpado de alta traição e portanto, ao ser derrubado, já não era um presidente no legítimo exercício de suas prerrogativas constitucionais.

É crime dizer que o AI-5 não foi uma reação tirânica contra uma oposição pacífica e democrática e sim uma medida de emergência contra agressores armados que, àquela altura, já haviam realizado 84 atentados a bomba, ferindo e matando militares e civis.

É crime dizer que, num país que tinha então 90 milhões de habitantes, não mais de 2 mil deles foram atingidos pela repressão ao longo de vinte anos — decerto a mais branda reação que um governo de direita já opôs a uma revolução comunista armada — e que em vista disso é um grotesco exagero descrever o período militar como uma época de terror generalizado.

É crime dizer — mesmo fazendo coro a tantos esquerdistas que o confessam hoje abertamente — que nossos guerrilheiros e terroristas não lutavam pela democracia e sim pelo comunismo, modelo cubano.

É crime dizer que, ao aceitar postos nas Forças Armadas e no Serviço Secreto de Cuba, eles se tornaram funcionários e cúmplices de um regime genocida, assassino de 17 mil cidadãos cubanos.

É crime dizer que o Brigadeiro Burnier, acusado pela imprensa esquerdista de conspirar para explodir o Gasômetro do Rio de Janeiro, nunca fez nem pensou em fazer isso, quando mais não fosse porque morava ao lado do Gasômetro, e que o próprio capitão Sérgio “Macaco”, que inventou a calúnia absurda e ganhou o estatuto de herói das esquerdas por isso, terminou por desmenti-la num inquérito oficial que ninguém neste país quer divulgar.

É crime dizer que as mais altas figuras da inteligência brasileira — um Manuel Bandeira, um Gilberto Freyre, um Miguel Reale, um Augusto Frederico Schmidt, uma Raquel de Queirós, um Júlio de Mesquita Filho e até mesmo um Otto Maria Carpeaux, que depois se voltaria contra o novo regime — aplaudiram a queda do governo Goulart.

É crime desmentir, com isso, a lenda idiota que, prevalecendo-se do estereótipo fácil da pena contra a espada, apresenta o conflito de esquerda e direita, na época, como um confronto da inteligência com a força, de poetas e filósofos contra sargentões incultos.

É crime lembrar que a direita civil armada, pronta e ansiosa para matar comunistas desde 1963, foi pêga de surpresa pelo golpe militar e inteiramente desmantelada pelo novo governo, de modo que, se algum comunista chegou vivo ao fim do ano de 1964, ele deveu isso exclusivamente às Forças Armadas que agora amaldiçoa.

É crime dizer que um golpe apoiado na maior manifestação popular de toda a nossa história, não igualada nem pelas posteriores e tão celebradas passeatas em prol das “Diretas Já”, não pode, sem grave erro histórico, ser catalogado como uma conspiração da elite contra as massas populares.

É crime dizer qualquer dessas coisas, embora cada uma delas possa ser provada com testemunhos e documentos em profusão e embora não contenham nenhuma proposta política para o futuro e sim apenas descrições do passado.

É crime dizer qualquer dessas coisas, embora os esquerdistas não sejam capazes de refutá-las e se limitem a difamar e caluniar quem as diga.

É crime, em suma, tentar conhecer a História por um lado que não seja o da versão oficial. Recomendo, pois, aos leitores, que se abstenham do vício nefando da curiosidade histórica, que não façam perguntas e, sobretudo, que no decorrer do Ano Novo não visitem jamais o site http://www.ternuma.com.br. Assim não correrão o risco de chegar ao fim de 2002 com um rótulo de “extrema direita” na testa.

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