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Tristeza pura

 Olavo de Carvalho


Zero Hora, 26 de junho de 2005

WASHINGTON – Lendo as opiniões que me chegam pela internet, noto uma radical discordância entre os esquerdistas: uns dizem que o PT virou um bando de ladrões porque se deixou impregnar de direitismo; outros asseguram que o partido é honesto e que a tempestade de denúncias contra ele é uma conspiração da direita.

Entre os antipetistas, a divisão é ainda mais profunda, pois não opõe duas alas distintas e sim duas opiniões antagônicas que se alternam e se engalfinham dentro das mesmas cabeças: cada um jura que o PT está liquidado e cada um já treme de pavor ante a perspectiva de que o cadáver se erga do túmulo nos braços dos “movimentos populares” e instaure o reino triunfante do Leviatã.

A simples existência dessa dupla polaridade de opiniões basta para sugerir que as quatro concepções são falsas. Mas isso não interessa, porque já faz tempo que as categorias do verdadeiro e do falso desapareceram do horizonte mental brasileiro. Sobraram apenas o conveniente e o inconveniente, isto é, aquilo que lisonjeia ou deprime os sonhos políticos do freguês. Na verdade (com o perdão da palavra), isso é o resultado de dois processos concomitantes, que se abateram sobre este país há pelo menos uma década e meia.

O primeiro foi a expansão avassaladora do modo “politicamente correto” de pensar, que inverte o funcionamento do senso moral, dissolvendo na poção ácida do relativismo os critérios fundados na experiência milenar ou na natureza das coisas e consolidando em monumentos de absolutismo pétreo os juízos de aprovação e desaprovação baseados em objetivos políticos ocasionais ou interesses de grupos de pressão. Assim, por exemplo, o genocídio ou o tráfico de drogas podem ser aceitos como procedimentos lícitos, tendo em vista as circunstâncias culturais, mas a rejeição do aborto ou do homossexualismo é invariavelmente um pecado escandaloso, imperdoável. A facilidade com que, sem o mínimo desconforto intelectual, a mente assim formada transita do indiferentismo cético ao mais intolerante dogmatismo é, sem dúvida, uma deformidade espiritual monstruosa. Sua propagação epidêmica é universal, mas, se em toda parte ela encontra resistências firmes e corajosas, no Brasil ela ocupou o espaço cultural inteiro sem ter de enfrentar senão piadinhas de ocasião que só testemunhavam a incapacidade geral de admitir a gravidade do fenômeno.

O segundo fator foi a célebre “campanha pela ética na política”, que, como previ mais de dez anos atrás, não teve outro resultado senão dar eficácia social prática à perversão politicamente correta, corrompendo a capacidade de julgamento moral da população ao ponto de que tornou impossível pensar o bem e o mal exceto como sinônimos respectivos dos “ideais sociais” esquerdistas e dos obstáculos que a eles se opunham, obstáculos que, a despeito da inexistência de qualquer direita organizada no Brasil, infalivelmente eram demonizados como frutos da obstinação reacionária contra a maré montante da bondade petista.

Trabalhada por esses dois fatores, a mente nacional terminou incapaz de avaliar moralmente até mesmo as situações mais simples, e se afoga num lamaçal de conjeturações postiças cuja obscuridade infernal simula as operações de uma inteligência profunda.

Daí as reações desencontradas, irracionais, ao escândalo do Mensalão. De um lado, forçando a realidade até o último limite do absurdo, trata-se de inculpar a direita per fas et per nefas : ou ela cometeu os crimes do PT, ou não há crime nenhum e foi ela quem inventou tudo, numa trama diabólica financiada, é claro, pelos gringos. De outro lado, uma direita esfrangalhada, constituída da mistura impossível de intelectuais inermes com empresários oportunistas e políticos ideologicamente inócuos, se dilacera ainda mais saltando nervosamente do triunfalismo fingido ao terror do apocalipse imaginário.

Ver tudo isso, de longe, é ainda mais triste do que ver de perto. Aí, a confusão e o medo ambientes ainda contaminavam minha visão das coisas. À distância, conheço a tristeza em estado puro.

Debate assimétrico

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 12 de junho de 2005

O debate político americano opõe duas correntes bem diferenciadas sob o ponto de vista político, econômico, moral, cultural e religioso. De um lado, os “liberals”, ou esquerdistas, com seu programa de intervencionismo estatal, assistencialismo, secularismo, feminismo, multiculturalismo, abortismo etc. De outro, os “conservadores”, com sua defesa da liberdade econômica, do federalismo, da independência individual e da moral judaico-cristã. São duas cosmovisões completas que se enfrentam em todos os domínios de pensamento e de ação, com meios de expressão distribuídos de maneira mais ou menos eqüitativa, com alguma vantagem para a esquerda na grande mídia e no establishment cultural, para a direita na internet e no rádio (só o comentarista Rush Limbaugh, com seus 38 milhões de ouvintes diários, supera a soma das tiragens de todos os jornais esquerdistas chiques de Nova York). A essas correntes de idéias correspondem duas orientações geopolíticas — a esquerda é globalista, a direita nacionalista – e dois esquemas de poder claramente difenciados: o projeto de governo mundial da ONU e o “novo século americano” de George W, Bush (esclarecerei isso melhor num próximo artigo). Por fim, esses dois esquemas têm fontes de sustentação econômica nitidamente distintas: de um lado, George Soros e as mega-fundações tipo Rockefeller e Ford, de outro a indústria petrolífera e o “dinheiro novo”, como o chamava Ronald Reagan, de milhares de pequenos capitalistas em ascensão.

Embora a fronteira entre os dois campos não coincida plenamente com a linha divisória entre democratas e republicanos, o público americano reconhece facilmente os porta-vozes de um e de outro e compreende a natureza do que está em jogo na sua disputa. O que está em jogo não é só o destino dos EUA, mas da humanidade: a luta política americana expressa o resumo perfeito das alternativas com que a espécie humana como um todo se defronta neste começo de século.

Já o debate político brasileiro se caracteriza pela flagrante assimetria. A esquerda dominante, como sua similar americana, combate em todos os fronts – da política econômica ao casamento gay –, com uma persistência e uma agressividade inesgotáveis, enquanto seus adversários, quando não se contentam com a defesa quase envergonhada de interesses grupais ofendidos ou com críticas pontuais de ordem jurídico-administrativa sem nenhum alcance ideológico, chegam, na mais ousada das hipóteses, a argumentar em favor da economia de mercado. Em todos os demais pontos da linha de combate, omitem-se por completo ou aderem logo às teses do secularismo esquerdista, fazendo de conta que as questões educacionais, morais, culturais, filosóficas, religiosas ou civilizacionais não têm a mínima importância num confronto que, em essência, consiste em economia e nada mais.

O primeiro resultado que obtêm com isso é que soam ridículos quando acusam o marxismo de economicista.

O segundo resultado é que convencem a população de que os adeptos do capitalismo só pensam em dinheiro, enquanto seus adversários socialistas estão preocupados com elevadas questões de interesse filosófico e humanitário.

O terceiro resultado é que, descompassado com o debate americano, o bate-boca nacional só serve para cavar mais fundo o abismo entre o Brasil e o universo historicamente significativo, ajudando o establishment esquerdista a fechar o país cada vez mais no círculo compressivo da auto-sugestão.

O quarto resultado é um pouco mais sutil, mas não menos desastroso. Como a estratégia socialista já desistiu faz tempo da estatização total da economia, admitindo a necessidade de reservar pelo menos algum espaço para as empresas privadas, a defesa da economia de mercado é facilmente absorvida e instrumentalizada pelo establishment esquerdista, que pode repetir “ipsis litteris” cada palavra do ideário econômico liberal sem com isso fazer nenhum mal a si mesmo. Desprovido de sua substância cultural, moral ou religiosa, o discurso liberal pode tornar-se nada mais que uma forma inconsciente de colaboracionismo.

A salvação deste país depende de que os adeptos da economia capitalista percam sua inibição de defender, junto com ela, os valores morais, culturais e religiosos que tornaram possível o florescimento dela nos EUA e na Europa.

Tirando a dúvida

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 29 de maio de 2005

Quando um chavão pejorativo reaparece com insistência nas bocas dos vários porta-vozes de uma causa, fixando hipnoticamente a atenção do público num determinado traço odioso da figura adversária, o mínimo de prudência recomenda suspeitar que não se trata de uma polêmica normal, mas de uma campanha de propaganda enganosa.

Suspeita não é, evidentemente, certeza. Pode ser tudo uma infeliz coincidência estilística.

O método para tirar a dúvida é simples. Verifique se o rótulo tem alguma correspondência com a realidade. Se o insultado tem de fato a má qualidade apontada e se ela é tão proeminente que olhando para ele dificilmente se repare em outra coisa, a repetição do insulto talvez traduza apenas a uniformidade de uma impressão geral correta. Milhares de brasileiros repetem que o presidente Lula é campeão internacional de gafes, e não há nisso nenhuma campanha contra ele, apenas a constatação repetida de fatos notórios.

Mas, se o defeito indicado não é saliente a esse ponto, se, ao contrário, ele não é evidente de maneira alguma e, pior ainda, se sua presença no personagem acusado não pode ser comprovada por nenhum meio legítimo, então é claro que a insistência grupal em apontá-lo revela um intuito uniforme e organizado de conquistar o público para uma opinião difamatória, utilizando um cacoete de linguagem para criar um cacoete de pensamento.

A expressão “poderoso lobby da indústria de armas”, que quase infalivelmente reaparece nos discursos dos desarmamentistas para carimbar os adversários da sua campanha como paus-mandados a serviços de interesses milionários, entra nitidamente nessa categoria. Isso pode ser averiguado facilmente pelo método acima apontado.

Desde logo, os usuários desse chavão empregam-no sempre de maneira vaga e genérica, sem jamais esclarecer a quais indústrias de armas se referem nem muito menos qual a ligação delas com as entidades que reagem ao desarmamento.

O motivo é muito simples: não há nenhuma indústria de armas financiando a luta contra o desarmamento. O Brasil tem uma única empresa fabricante de armas, cujo maior e quase único cliente no território nacional é o governo, isto é, o chefe mesmo da campanha desarmamentista.

Quanto a empresas estrangeiras, não existe o mínimo indício de que alguma delas tenha contribuído para as escassas e pobres organizações pró-armas, nem muito menos de que tenha feito algum esforço sério para conquistar o mercado brasileiro.

Em compensação, os financiadores da campanha desarmamentista em todo o mundo são bem conhecidos: ONU, Comunidade Européia, Fundação Ford, Fundação Rockefeller e entidades similares, além do sr. George Soros, é claro.

Quem, então, é o “poderoso lobby”?

Outro dia, no Rio, as colunas sociais noticiaram uma reunião festiva de desarmamentistas chiques. A chamada “nata da sociedade” compareceu ao evento para dar seu apoio à bela causa personificada pelo Dr. Rubem César Fernandes, aquele mesmo que alardeava que o desarmamento iria diminuir a criminalidade e, uma vez obtida a persuasão geral, declarou candidamente que se tratava de um geral auto-engano.

A festa transcorreu sem o menor incidente, mesmo porque o prédio onde se realizava ficou cercado de seguranças armados, zelosos na sua tarefa de proteger as vidas e os bens dos convidados.

Como a lei do desarmamento só proíbe armas pessoais, não seguranças armados, ela terá por efeito imediato e incontornável a divisão dos cidadãos brasileiros em duas classes: a maioria desarmada, que o governo confessa não ter condições de proteger, e a minoria armada até os dentes, que não precisará de proteção oficial porque tem meios de se proteger a si mesma.

É ou não é para o beautiful people comemorar desde já?

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