Posts Tagged USP

O escândalo do ‘Código 12’

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 15 de fevereiro de 2001

A revelação de pretensas descobertas históricas, que envolveriam dois ex-presidentes da República numa trama sinistra para o assassinato de inimigos políticos, sugere, uma vez mais, que a USP não é propriamente uma universidade e sim uma gigantesca central de adestramento de propagandistas revolucionários, adornada, aqui e ali, de algumas escolas técnicas e científicas regularmente eficientes, destinadas a dar ao conjunto o mínimo indispensável de respeitabilidade acadêmica que justifique o consumo voraz de verbas estatais.

Segundo foi noticiado na TV, pesquisadores da USP teriam localizado, entre os papéis do antigo Dops, uma mensagem na qual o general João Batista de Figueiredo, então chefe do SNI, transmitia ao nosso embaixador em Portugal a ordem, emanada do presidente da República, General Ernesto Geisel, de aplicar um tal “Código 12” em cima de dois exilados, um deles o almirante Cândido Aragão. “Código 12”, segundo os criptógrafos uspianos, significa matar o sujeito e fingir causa acidental.

Não examinei os papéis, mas, qualquer que seja o seu teor, as conclusões factuais que se pretende tirar deles não resistem, por si, ao mínimo exame crítico.

Em primeiro lugar, o próprio nome cifrado da operação já é duvidoso. O que aparece nos documentos não é “Código 12”: é “Oyykl”. Para acompanhar o raciocínio uspiano, temos de aceitar que “Oyykl”, com o perdão da palavra, significa Código 12, e que Código 12 significa a porcaria acima mencionada. A sutileza criptográfica da mensagem já brada aos céus que nenhuma conclusão a respeito pode ser aceita “prima facie”, sem verificação por técnicos de fora de uma instituição que assumiu, como seu dever pedagógico primordial, sujar a reputação do regime militar e de tudo quanto a ele esteja associado mesmo remotamente.

Uma corporação acadêmica que não se inibe de discriminar seu próprio reitor, vetando o estudo de livros dele como fez com Miguel Reale, e que chega ao cúmulo de dificultar, durante décadas, o acesso de seus alunos de ciências sociais às idéias do único dos nossos sociólogos que tem envergadura universal — Gilberto Freyre –, não deve ser chamada de preconceituosa, porque o termo é doce demais. Ela é simplesmente sectária. Que os arquivos do Dops, em vez de ser colocados sob a guarda de uma comissão mista supra-ideológica, sejam entregues a essa suspeitíssima instituição, para que os utilize como matéria-prima de shows publicitários a pretexto de ciência histórica, já é algo, para o meu gosto, demasiado chocante.

Mas ainda há, nas conclusões uspianas, muitas aberrações a ser explicadas, se explicação tiverem. Por exemplo: nada, no mundo, pode justificar que o chefe de um serviço secreto, ao efetivar a secreta execução de uma secretíssima operação ilegal, o faça… por vias diplomáticas! Por que raios um oficial militar, que tem sob suas ordens diretas profissionais habilitados para missões de guerrilha, sabotagem e quantas mais truculências o adestramento de combate inclua, no momento de passar à ação transmite a ordem, não a eles, mas a um funcionário civil? Seria o embaixador um agente mais qualificado do que os militares para convocar e acionar os executores da ordem homicida? A coisa é tão estúpida que raia o impensável.

Menos ainda haverá explicação razoável para o fato de que, ao enviar à embaixada de Lisboa o memorando assassino em vez de remetê-lo a destinatário mais apropriado, o chefe da conspiração urdida em altos círculos federais ainda fizesse tirar cópias do sigiloso documento para uma repartição estadual paulista…

Porém o mais inverossímil da trama é a vítima. Por que, em pleno processo de abertura democrática, o governo se comprometeria numa arriscada operação para mandar matar, no exterior, um inimigo esquecido, aposentado, política e militarmente inócuo? Já em 1964 a agressividade do almirante Aragão contra o novo regime revelara ser apenas um blefe, quando sua ameaça de invadir o Palácio das Laranjeiras com um batalhão de fuzileiros navais se desfez como por mágica ante a simples reação verbal enérgica do governador Carlos Lacerda. Se, à frente de tropas armadas, tudo o que ele conseguiu fazer foi sair da história para entrar no esquecimento, que milagre poderia tornar tão temível, onze anos depois, esse velho balão furado?

Não, um plano governamental para transmutar um almirante de opereta em mártir da causa esquerdista seria insensato demais, contraproducente demais, suicida demais para que pudéssemos acreditar nele à primeira vista, confiados na pura autoridade de meninos uspianos, ansiosos para acrescentar a contribuição da sua criatividade pessoal ao filme de Bela Lugosi em que a máquina esquerdista de desinformação vem transformando a história – digamos que o seja – do período militar.

Por fim, resta o fato de que as vítimas, após a data fatídica, continuaram passando bem e ignorando por completo a sua morte anunciada…

Tudo isso prova, no mínimo, que a acusação é duvidosa e sua divulgação afoita. Se nem mesmo uma simples denúncia jornalística se exime do dever de ser inspecionada “pelos dois lados” antes de estampar-se em manchete, por que uma revelação histórica que se arroga foros de seriedade acadêmica deveria ser alardeada pela TV antes de submeter-se à inspeção de historiadores profissionais alheios ou antagônicos à fé ideológica de seus autores?

A previsão e a franga

Olavo de Carvalho


O Globo, 9 de dezembro de 2000

O petismo do governo gaúcho tem sido apontado como uma imagem do Brasil futuro. Mas que Brasil será esse? Quem está fora do Rio Grande não tem a menor idéia do que se passa por lá. Como saber se a previsão é promessa ou ameaça?

Algumas informações recentes talvez ajudem. O diretor do jornal “Zero Hora”, Nelson Sirotsky, falando para uma platéia de duzentas pessoas na Associação da Classe Média de Porto Alegre, confirmou que o governo Olívio Dutra vem usando das verbas de publicidade oficial para limitar o exercício da liberdade de expressão no seu Estado. Ele citou o exemplo dos pequenos jornais que, por debilidade financeira, se rendem ao PT para não perder anúncios. Poderia também ter mencionado os jornalistas Políbio Braga, Hélio Gama, Gilberto Simões Pires e outros, que informam ter sido removidos de suas tribunas por pressão do governo. Simões Pires, um dos comentaristas mais populares da TV local, além de perder o emprego está sendo processado porque, exibindo uma foto na qual o governador e sua secretária da Educação, entre bandeiras vermelhas, posavam ao lado de escolares que faziam a tradicional saudação do punho cerrado, disse que se tratava de uso de crianças para propaganda de uma ideologia violenta — conclusão irrefutável, mas, ao que parece, proibida.

Quem conheça o estilo da retórica esquerdista, um caldeirão fervente onde termos como “canalha”, “ladrão” e “vendido” borbulham em profusão, pode se espantar de que pessoas tão grosseiras no falar tenham ouvidos tão sensíveis e berrem de dor ante a simples conclusão de um silogismo. Mas comunistas são mesmo assim: eles podem imputar a você os piores crimes, mas se você os chama simplesmente de atrasados, de ignorantes — ou de comunistas, o que dá na mesma –, eles entram em estado de choque. Recentemente um professor da USP, célebre pelas acusações cabeludas que faz ao presidente da República, ouvindo dizer que este chamara a esquerda de “burra” saiu exclamando que se tratava de… temível investida contra a liberdade de expressão. É o que os americanos chamam “overreact” — a marca inconfundível do fingimento histeriforme, sinal de iminente ruptura esquizofrênica da consciência.

Para dar uma idéia de até que ponto esse mal afeta a nossa esquerda, basta mais um episódio, que não tem nada a ver com o caso do Rio Grande, mas que ajuda a compreendê-lo. Na semana passada escrevi aqui que a liberação dos vícios era um item essencial da ideologia esquerdista (como na verdade já o era no tempo do “Flower Power” que, desde os campos de Woodstock, tanto ajudou os comunistas a dominar o Vietnã e a transformá-lo no gueto de terror e miséria que ele é hoje). Pois bem: um professor da UFRJ, em resposta, me enviou um e-mail enfurecido, ameaçando me processar porque eu “dissera que todos os jovens socialistas usam maconha e cocaína” e porque ele e seu filho, ambos socialistas, agora acreditavam enxergar, nos olhares de seus colegas, insinuações pérfidas que os acusavam de maconheiros e cocainômanos. O raciocínio do cidadão consistia em partir de uma premissa mentirosa e deduzir dela, por saltos lógicos assombrosos, uma autorização para fantasiar intenções nas pessoas em torno, um motivo para se sentir vítima e um pretexto para voltar todo o seu ressentimento insano contra um agressor imaginário que, para cúmulo, não conhecia nem a ele nem àquelas pessoas. Joseph Gabel, no clássico “La Fausse Conscience”, usou exemplos como esse para demonstrar que o raciocínio das ideologias totalitárias é idêntico ao de um delírio esquizofrênico. Esse modelo de raciocínio está subentendido tanto no temor que os próceres gaúchos têm dos jornalistas que os observam, quanto, em dose ainda mais expressiva, na mensagem do desvairado professor uférjico. Em ambos os casos, trata-se de instrutores de loucura: o Estado paga-lhes para que transmitam a eleitores e alunos o seu padrão patológico de percepção, para que os incapacitem para a vida adulta, fazendo deles eternos meninos ressentidos que terão de se apegar sempre à muleta de algum discurso de inculpação projetiva.

Mas, voltando aos gaúchos, não é só na imprensa que a liberdade deles sofre restrições que, se impostas por um governante direitista, suscitariam uma onda nacional de protestos. Um começo de passeata, promovido por uma organização de mulheres anti-PT, foi cercado por olheiros que, mais que depressa, acionaram as autoridades para que proibissem qualquer nova manifestação do grupo, o qual não teve remédio senão voltar às ruas com mordaças pretas para informar à população, sem dizer nada, que algo de indizivelmente esquisito estava acontecendo.

Na mesma linha de esquisitice mal conscientizada, um diretor da estatal gaúcha Emater, em discreta circular à “companheirada” (sic), admite que ali o critério de seleção é puramente ideológico, “como se alinhamento ou ficha no partido fosse garantia de competência”. E ele reclama disso não porque a coisa lhe pareça intrinsecamente imoral, mas porque não deu os resultados esperados: “Não conseguimos a hegemonia”, lamenta-se. E sugere, como remédio, “ler um pouco mais de Gramsci”.

Para um governo que nem tem apoio da maioria na assembléia, o do Rio Grande tem mostrado uma precipitação incomum em revelar antes da hora a índole ditatorial da ideologia socialista, violando os ensinamentos do mestre da camuflagem, Antonio Gramsci, o Senhor da Moita. Igual afoiteza, porém, inflamou as meninges do candidato virtual Luiz Inácio Lula da Silva durante sua viagem à Belfort Roxo do Caribe, levando-o a rejeitar em público a cor rosa que a moda analgésica atribui ao seu partido e a assumir, num rompante, que o negócio dele é mesmo o bom e velho comunismo.  Tudo enfim leva a crer que, prematuramente solta, sem medo de ser feliz, a franga vermelha abre as asas sobre nós.

Inteligência uspiana

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 16 de março de 2000

Cinco anos atrás, pus em discussão, para escândalo geral, o tema da cumplicidade dos intelectuais de esquerda com o banditismo.

A classe acusada reagiu como de praxe: primeiro, rosnar e latir para afastar o intruso; falhado esse expediente, fazer-se de morta até que o perigo passe; por fim, apossar-se do tema, reciclá-lo e reapresentá-lo como grande novidade.

Na imprensa dita cultural não falta quem anseie por servir de motoboy para esse gênero de mensagens. Destaca-se nisso o suplemento Mais!, que escolheu por nome um advérbio de quantidade para deixar ao leitor a escolha da qualidade subentendida: “mais irrelevante”, “mais bobo”, etc.

Assim, decorridos cinco anos, esse apêndice de papel deu-nos, em breve entrevista com Sérgio Miceli sobre o caso João Moreira Salles, uma amostra do que a classe pensante, pensando e pensando e pondo nisto uma força danada, pôde fazer nesse ínterim com o supramencionado tema.

Perguntado sobre as razões do fascínio que a intelectualidade sente pelos marginais, o acadêmico respondeu: “Discordo dos termos em que a pergunta está formulada.” Dito isto, imergiu em búdico silêncio, deixando ao público o encargo de adivinhar as profundidades do seu pensamento, e ao repórter a humilhação de não saber jamais onde foi que errou. Ensinar por meio do silêncio é a suprema glória do pedagogo. Com essa resposta o professor Miceli provou que está no lugar certo como titular de Sociologia da USP. Ninguém sabe calar com a elegância, a classe, o aplomb de um sociólogo da USP. Não me venham reduzir mesquinhamente o caso a uma aplicação da regra de Wittgenstein: “Onde não se pode falar, deve-se calar.” Wittgenstein jamais atinou com a arte sutil de transformar o silêncio em pito. Eu diria que é autêntica criação uspiana, se não houvesse o precedente daquele pai de família do conto de Arthur de Azevedo, que, indagado pelo filho sobre o que é “plebiscito”, mete o atrevido de castigo no banheiro enquanto vai consultar discretamente o dicionário.

A pergunta seguinte – se “a solidariedade é uma fantasia ou uma nova ação política” – deve ter parecido ao professor Miceli muito bem formulada, pois aí ele não apenas consentiu em falar como ainda o fez no mais puro estilo embromation: “João Moreira Salles procedeu como papel-carbono escolástico, desejoso de recuperar a experiência pelas lentes simbólicas do vivente e receoso de impor seus esquemas de apreensão.” Traduzido em português, quer dizer que João Moreira Salles preferiu deixar que Marcinho VP falasse por si. Mas, dito assim, não tem graça, além de também não constituir resposta nenhuma.

Por fim, indagado sobre “o que difere o malandro do narcotraficante” – pergunta formulada e respondida na gramática peculiar do Mais!, onde “diferir” vale como “diferenciar” –, o professor Miceli, aí sim, mostrou a que veio. “Narcotraficante – protestou – é uma designação de embocadura policial, enquadrando uma pessoa atuante numa esfera de atividade que está longe de permitir tamanha simplificação.” Nada como o rigor uspiano para impugnar os simplismos da linguagem comum. De fato, pode haver coisa mais simplista, mais boba, mais antiintelectual do que chamar um sujeito de narcotraficante só porque ele vende drogas? Chega a ser insultuoso, não é mesmo? Marcinho VP mereceria um termo à altura do vocabulário micélico, que infelizmente o entrevistado não nos forneceu ainda desta vez, tão fundo é o seu desprezo pelos apedeutas para os quais pau é pau e pedra é pedra. O professor Miceli jamais cairia na vulgaridade de ser explícito: para prová-lo, ele também deixou no ar o enigma de saber como um grande espírito tão cioso da precisão de linguagem pode, à imitação do inculto repórter, usar o verbo “diferir” como transitivo direto.

Já me perguntei mil vezes o que é preciso a gente fazer para ficar assim. Já investiguei de tudo: traumas de infância, privação de leituras, ressentimento edípico, alimentação deficiente, doutrinação marxista, uso errôneo das camisinhas. Tudo em vão. A cabeça uspiana é causa sui e não tem explicação no mundo exterior. Tudo o que nela se passa vem dela e nela termina. A “autonomia universitária” foi ali levada às últimas conseqüências: a USP é independente da realidade. Assim, não é de espantar que o tema das relações entre intelectuais e bandidos tenha ficado tão diferente do que era no original, transformando-se de um assunto explosivo numa desconversa evanescente, pedante e supremamente sonsa. Vargas Llosa dizia que a mídia é uma máquina onde entra um homem e sai um hambúrguer. A diferença da USP é que ali o hambúrguer não sai.

Veja todos os arquivos por ano