Olavo de Carvalho
O Globo, 4 de maio de 2002
Não conheço detalhes da ideologia do sr. Le Pen, mas, do que tenho lido, concluo que ele é menos anti-semita do que a média da esquerda mundial que tanto o demoniza. Dizer que o Holocausto foi “apenas um detalhe na História” é uma brutalidade, mas será tão insultuoso quanto dizer que foi igualzinho ao que os judeus estão fazendo na Palestina?
A primeira dessas afirmações custou ao seu autor a perda de um mandato e a exposição ao vilipêndio internacional. A segunda é repetida ad nauseam por celebridades cuja reputação não sai nem um pouco arranhada por isso.
Dez mil Le Pens, com suas tiradas de oratória infame seguidas de desculpas esfarrapadas, não fariam aos judeus um mal comparável ao que a mídia “iluminada” fez nas últimas semanas. Ele disse grosserias, mas nunca chamou os judeus de nazistas. Nunca aplaudiu, incentivou ou glamourizou meninas-bombas palestinas que explodem supermercados em Tel-Aviv. Nunca disse que os judeus têm uma religião satânica inventada para legitimar crimes e pecados.
A mídia bem pensante que agora adverte contra ele fez tudo isso -— e este é o seu único título de autoridade para condenar quem fez muito menos.
Significativamente, o vocabulário usado contra o chefe do Front National é o mesmo que, poucos dias antes, se despejava como óleo fervente sobre as costas do primeiro-ministro Sharon. Le Pen é um “extremista de direita”? Sharon também. Le Pen é “xenófobo”? Sharon também. Le Pen é “nazista”? Sharon também. Le Pen é “genocida”? Sharon também.
É preciso ser um idiota profissional para explicar toda essa uniformidade pela mera coincidência. Mas palavras não são tudo. Le Pen disse coisas que agradam aos inimigos de Israel, mas nunca lhes deu 70 milhões de dólares para comprar armas, como a União Européia, segundo documentos recém-divulgados pelo governo israelense, deu a Yasser Arafat.
Por que os judeus haveriam de confiar numa entidade que os adverte contra um inimigo desarmado ao mesmo tempo que ajuda o inimigo armado? Por que a esquerda mundial estaria tão ansiosa para protegê-los contra um perigo futuro e hipotético na França, quando se esforça com igual denodo para entregá-los às garras de um perigo real e imediato na sua própria terra?
A dura realidade é esta: os que procuram alarmar os judeus quanto à ascensão de um político anti-semita na França são os mesmos, os mesmíssimos que convocam o mundo a uma guerra santa contra o Estado de Israel.
Mutatis mutandis, e como que para compensar, os que agora se fazem de advogados da causa muçulmana são os mesmos, os mesmíssimos que ainda há pouco instigavam gays, feministas e progressistas em geral ao ódio antiislâmico, fomentando-o por meio de invencionices prodigiosas e preconceitos imbecilizantes.
Mas, como vimos na semana passada, os que posam de guardiães da inocência infantil supostamente ameaçada pelo clero católico são também os mesmos, os mesmíssimos que durante décadas se empenharam galhardamente em destruir todos os impedimentos morais à prática da pedofilia.
A esquerda, como se vê, não discrimina ninguém: ela mente por igual contra judeus, cristãos e muçulmanos. Daí sua facilidade de jogá-los uns contra os outros — e até contra si mesmos — pelo simples expediente de alternar, conforme as demandas do momento, os objetos de bajulação e de calúnia.
Para quem conhece História, nada disso é novidade. Mudar de discurso com a desenvoltura de quem troca de meias é o traço mais constante e inconfundível do feitio mental esquerdista, em tudo e por tudo idêntico à inocência perversa de sociopatas juvenis.
Não é nova, em especial, a duplicidade cínica no modo de tratar os judeus. Lenin já condenava da boca para fora o anti-semitismo, ao mesmo tempo que movia contra os judeus uma guerra econômica e cultural e enviava à cadeia seus líderes religiosos. Mas, ao longo dos tempos, essa duplicidade foi-se ampliando até a completa malevolência de um jogo diabólico que, sem nenhum problema de consciência, combina a mais açucarada lisonja com a prática do homicídio em massa. No pós-guerra, enquanto o beautiful people esquerdista de Nova York carimbava como “anti-semita” quem quer que pretendesse averiguar os fatos sobre a espionagem nuclear pró-soviética praticada pelo casal Rosenberg, do outro lado do mundo, na Romênia, protegidos de críticas ocidentais pelo véu de filojudaísmo tecido pela mídia, os comunistas davam início a uma campanha de perseguição antijudaica que, segundo relata Richard Wurmbrand, veio a ultrapassar em violência e crueldade tudo o que os judeus daquele país tinham passado sob a ocupação nazista.
Hoje, aqueles mesmos que se empenham em conjeturar sinais de anti-semitismo nas leituras juvenis de Pio XII fazem o diabo para esconder que Fidel Castro, no início de sua militância anti-Batista, andava com um exemplar de “Mein Kampf” debaixo do braço e babava de admiração pelo seu autor. A significação desse dado pode ter sido minimizada por intelectuais levianos, mas não pelos 23 mil judeus que, de um total de 30 mil que moravam em Cuba, preferiram fugir para Miami quando o governo revolucionário tomou suas propriedades — um filme a que muitos deles já tinham assistido na Europa.
Por ironia, em alguns países do Leste da Europa o folclore político acusa os judeus de responsáveis pelo advento do regime comunista. Contestando essa alegação, os comunistas, no entanto, sempre tentaram aproveitá-la como arma de chantagem para envolver o povo judeu nos interesses da causa comunista, não importando quantos dos seus ela matasse. Essa prática disseminou no mundo ocidental uma crença folclórica análoga e complementar à de romenos e húngaros: a lenda da afinidade natural entre os intelectuais judeus e o esquerdismo. Autenticada por uma bela relação de nomes — Lukács, Horkheimer, Benjamin, Marcuse e tutti quanti — a lenda se impôs com tal força que acabou por tornar invisível a lista imensamente maior de judeus célebres anticomunistas, de Arthur Koestler a Irving Kristol, de Walter Krivitsky a Joseph Gabel, de Raymond Aron a David Horowitz, de Menachem Begin a Daniel Bell e mais não sei quantos. Eu mesmo só compreendi isso quando, lendo “Not Without Honor — The History of American Anticommunism”, de Richard G. Powers, descobri que o movimento anticomunista americano tinha sido, no essencial, uma iniciativa de judeus. Desde minha juventude, esse fato de importância medular para a compreensão da História do século XX tinha me escapado por completo. Para todos os que o ignoram, a associação corrente entre anticomunismo e anti-semitismo, reforçada diariamente pela mídia, ainda soa como a coisa mais natural do mundo.
Mas esse fenômeno, por sua vez, é que é natural: não existe um único argumento esquerdista cuja credibilidade não se fundamente, por inteiro, na ignorância fabricada e na exploração do esquecimento.