Posts Tagged terrorismo

Alquimia da islamização

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 21 de novembro de 2005

Um vício generalizado da nossa época é o abuso das figuras de linguagem. Abuso não quer dizer uso excessivo, mas uso errado. Figuras de linguagem existem para três finalidades: expressar de maneira compacta um aglomerado de significações, enfatizar no objeto um valor ou nuance que o seu simples conceito não enuncia, dar voz à primeira impressão de um objeto ainda mal apreendido, na esperança de que esse artifício provisório ajude a apreendê-lo melhor. O primeiro desses usos é poético, o segundo retórico, o terceiro dialético ou propriamente filosófico. Em cada um deles as relações entre o objeto apreendido e sua expressão verbal formam uma equação diferente. Em todos o emissor do discurso tem o domínio consciente da equação. A prova disto obtém-se pela análise que torna claro o que parecia obscuro: o aglomerado poético pode ser decomposto nas suas várias camadas de significado (se não pode, então não é poesia, é macumba); a qualidade retoricamente acentuada pode ser distinguida do objeto que a ostenta; a primeira impressão pode ser completada por impressões subseqüentes, expressas em outras tantas figuras de linguagem, até que da confluência das várias impressões e respectivas figuras surja, numa síntese intuitiva, a forma essencial do objeto visado.

A figura de linguagem é usada de maneira abusiva quando não serve para nenhuma dessas operações. As palavras não expressam então nem uma riqueza de significações simultâneas, nem uma ênfase valorativa consciente, nem um esforço de chegar à realidade através do véu do discurso. Expressam a paralisia do pensamento que, não sabendo resolver a equação, isto é, passar do discurso à percepção intuitiva por meio da análise, se detém na repetição hipnótica do discurso mesmo, fazendo dele um substitutivo da realidade.

Se tantos intelectuais europeus não tivessem se habituado a pensar assim — se é que isso ainda é pensar –, jamais teria surgido uma escola como o desconstrucionismo, que nega a realidade em nome do discurso. O desconstrucionismo não é uma análise filosófica: é a simples transposição metalingüistica da própria patologia verbal que o alimenta. Mais ou menos como aquelas especulações complexíssimas, intermináveis e desesperadoramente fúteis com que um esquizofrênico letrado, acreditando analisar seus sintomas, não faz senão produzir alguns novos – ou, pior ainda, um upgrade dos anteriores.

A doença, surgida na Europa, chegou até a América e, aqui, fez vítimas nos lugares mais inesperados. A metonímia – ou mais precisamente metalepse — “guerra contra o terrorismo”, que algum iluminado soprou para dentro da cabeça do presidente Bush, prova que conservadores americanos são capazes de pensar tão esplendidamente mal quanto qualquer maoísta do Quartier Latin. Guerra contra o terrorismo é guerra contra quem? Terrorismo não é o nome de um inimigo, mas de uma de suas formas de ação. Adotaram essa expressão desastrada por dois motivos. Primeiro, por covardia: não queriam dizer “islamismo” para não ser politicamente incorretos, nem “marxismo” para não parecer “nostálgicos da Guerra Fria”, nem muito menos “islamomarxismo” ou “marxo-islamismo” (nomes horríveis, mas tecnicamente apropriados, descrevendo com exatidão os elementos do composto) porque os exporia à rotulagem fácil de “teóricos da conspiração”. O segundo motivo, derivado do primeiro, é a pseudo-esperteza de usar um chavão publicitário em vez do nome da coisa. É fácil ser contra o “terrorismo” porque é um meio de ação hediondo, só aceitável naquele estado alterado de consciência que revela, precisamente, o “fanático”. Como ninguém quer ser carimbado de fanático, todo mundo adere, pelo menos da boca para fora, à “guerra contra o terrorismo”. E tão reconfortados se sentem ao ver que concordaram em lutar, que já nem ligam de continuar sem saber contra quem. Só que, sendo impossível combater por meios invariavelmente lícitos um inimigo tão protéico e evanescente, alguma violência com aparência de terrorismo todo mundo está sujeito a cometer a qualquer momento, e no instante seguinte estarão todos, em nome da concórdia, se acusando uns aos outros de terroristas. Toda a chamada “ordem internacional” baseia-se, hoje, nessa absurdidade completa. E desta nascem muitas outras.

Os franceses, por exemplo, ficaram contentíssimos com a fatwa – decreto inspirado – com que a autoridade religiosa islâmica amorteceu em cinco minutos a baderna ante a qual o governo tivera de se contentar com gesticulações impotentes adornadas de palavreado pomposo. Nem de longe percebem que refrear as manifestações é demonstração de força ainda mais eloqüente do que produzi-las. Se os jovens muçulmanos rebelados se mostraram capazes de criar em poucos dias mais confusão e terror do que os meninos enragés de 1968, um único mufti , com umas poucas linhas escritas, provou ter mais autoridade do que o governo, a polícia, a mídia e a opinião pública da França, todos somados. Criar o caos, qualquer bando de irresponsáveis pode, com um pouco de ousadia. Mas produzir o caos e em seguida transfigurá-lo em ordem é o máximo de controle que seres humanos podem ter sobre o fluxo dos acontecimentos. É a arte da transformação, como em alquimia: Solve et coagula . Primeiro a substância deve ser dissolvida e transformada numa pasta caótica pela ação corrosiva do “mercúrio” (entre aspas porque não corresponde ao mercúrio químico; designa a força dissolvente e desorganizante em geral). Quando está no ponto, joga-se nela o “enxofre”, que a cristaliza, produzindo o “sal” – a nova ordenação interna desejada. Há séculos – documentadamente, pelo menos desde Ibn Khaldun (1332 – 1406) — os muçulmanos sabem que esses símbolos alquímicos podem designar também forças histórico-culturais, cujo manejo sutil está então ao alcance de uma ciência política infinitamente mais fina do que aquilo que leva esse nome nas universidades ocidentais. A dialética de Hegel e Marx é uma caricatura de alquimia política em linguagem pedante. A superioridade intelectual dos muçulmanos, nesse ponto, é arrasadora (leiam Henry Corbin e Seyyed Hossein Nasr), e é nela – não na pura brutalidade do terrorismo, ou na força passiva da multiplicação genética — que reside o segredo da expansão islâmica. Por isso é que, por trás de sua aparência de imigrantes bárbaros, os muçulmanos têm manipulado os Estados ocidentais com a facilidade de quem tapeia crianças. Querem um exemplo?

Com o apoio da British Advertisings Standards Authority, desde janeiro de 2005 os muçulmanos ingleses lançaram uma campanha para proibir outdoors que, pela exibição ou insinuação de nudez, fira os seus sentimentos religiosos. O Canadá foi um pouco além: está discutindo seriamente, por sugestão de um ex-procurador geral, a hipótese de adotar a shari’a (conjunto de mandamentos corânicos) como lei reguladora para os residentes muçulmanos, que assim teriam direitos e deveres diferentes daqueles que pesam sobre o restante da população (com a conseqüência inevitável de que, com o crescimento demográfico desproporcional, logo a shari’a dominará todo o Canadá). Nos EUA, inúmeras escolas oficiais – notem bem: oficiais – punem qualquer crítica ao Islam submetendo o faltoso a um estágio obrigatório de “reeducação da sensibilidade”, que inclui horas e mais horas de recitações do Corão e audição de pregações islâmicas.

Ou seja: uma comunidade carente, que chegou anteontem trazendo nada mais que sua miséria e seu ódio ao país hospedeiro, em pouco tempo conquista direitos especiais e uma posição privilegiada na sociedade, e sua religião é tratada com a deferência devida a uma prima-dona autoritária e ranheta.

Enquanto isso, o que se passa com a religião local, cujos santos e mártires, mediante sofrimentos e trabalhos indescritíveis, criaram a civilização e a cultura desses Estados e lhes ensinaram os primeiros princípios da moralidade que fundamentam suas leis?

Em várias cidades da Europa e dos EUA, a exibição pública de um crucifixo é banida por lei como atentatória aos direitos dos ateus; o professor ou aluno que entre numa escola oficial portando uma Bíblia corre o risco de ser suspenso ou expulso; a prece em voz alta é vetada em certos edifícios estatais, os festejos de Natal são proibidos nas praças públicas, e inscrições com os Dez Mandamentos são arrancadas por iniciativa da autoridade ciosa de não ferir os sentimentos politicamente corretos.

Não vou me prolongar na descrição do estado de coisas. Digo apenas que é aviltante e criminoso. Quem quiser saber mais – e tiver estômago para isso – que leia “Persecution”, de David Limbaugh (Harper Collins), “The Criminalization of Christianity”, de Janet L. Folger (Multnomah Publishers), “The ACLU Versus America”, de Alan Sears e Craig Osten (Broadman & Holman) ou simplesmente acompanhe as notícias diárias sobre anticristianismo militante no site www.wnd.com .

A religião declaradamente inimiga do Ocidente (v. “The West’s Last Chance. Will We Win The Clash of Civilizations?”, de Tony Blankley, Regnery, 2005) é tratada nos países ocidentais como se fosse senhora do espaço inteiro, enquanto as religiões-mães da nossa civilização, judaísmo e cristianismo, são escorraçadas como cães sarnentos, por iniciativa das próprias autoridades governamentais que, por outro lado, se dizem em “guerra contra o terrorismo islâmico”.

Cada vez mais a posição da religião cristã e judaica no Ocidente, principalmente na Europa e nos Estados americanos governados pela esquerda, se torna a mesma que têm nas ditaduras islâmicas — como por exemplo o Irã, onde todo culto não-muçulmano só pode ser praticado em recinto fechado, sendo proibida toda pregação pública, distribuição de livros, etc. – ao mesmo tempo que o Islam se coroa dos direitos e privilégios de uma religião hegemônica.

Mas, partindo daquela premissa inicial incongruente, muitas análises da situação, correntes na mídia e nos meios universitários, conseguem inverter os termos do problema, seja por maquiavelismo cínico, seja por ignorância:

“A batalha subjacente (à luta contra o terrorismo) será entre a civilização moderna e os fanáticos antimodernistas; entre aqueles que acreditam no primado dos indivíduos e os que acreditam que os seres humanos devem obediência cega a uma autoridade mais alta; entre os que dão prioridade à vida neste mundo e aqueles que acreditam que a vida humana não é senão a preparação para uma existência além da vida…”

Quem escreveu isso foi o ex-secretário do Trabalho do governo Bill Clinton, que se gaba de ser um grande “analista simbólico” das mudanças civilizacionais. Movido por seu ódio à “direita religiosa” americana, ele descreve um campo mundial dividido entre “fundamentalistas” ou “transcendentalistas”, como George W. Bush e Bin Laden, e “modernistas” ou “laicistas” como ele próprio, e conclui: “O terrorismo rompe e destrói vidas. Mas o terrorismo não é o único perigo que enfrentamos.”

Não é. O “perigo que enfrentamos” são inscrições dos Dez Mandamentos, são crianças cristãs cantando canções de Natal, são padres, pastores e rabinos recitando Salmos, são famílias religiosas que não aceitam o casamento gay e o abortismo em massa, é, enfim, tudo aquilo que se opõe à ética materialista, atéia e politicamente correta.

Só há um problema: essa ética é que, em nome do “multiculturalismo”, concede direitos especiais à minoria muçulmana enquanto sufoca tradições ocidentais milenares. Como poderia então ser ela a grande inimiga do radicalismo islâmico? Ela é o instrumento mesmo de que este se serve para debilitar a cultura da Europa e da América e subjugá-la ao seu ímpeto revolucionário e destruidor.

E não há nisso nenhuma estranha coincidência. A origem dessas modas culturais é bem conhecida: remonta, através de uma cadeia de intermediários fiéis, à Escola de Frankfurt e ao filósofo húngaro George Lukacs. Elas são o chamado “marxismo cultural” em estado puro – a arma mortífera concebida dentro do próprio Ocidente para destruir sua civilização.

Impressionados com o fracasso da revolução socialista na Europa Ocidental no começo do século XX, e especialmente com a defecção geral dos proletários que foi a sua causa imediata, os frankfurtianos e Lukacs começaram a especular se, além da resistência político-militar da “burguesia”, não haveria outro fator, como direi, astravancându us pogréssio do çossializmu. Chegaram à conclusão de que havia: eram milênios de herança judaico-cristã, o universo simbólico inteiro da civilização Ocidental. “Quem nos livrará da civilização Ocidental?”, perguntava Lukacs.

A resposta não demorou a vir de Moscou. Stalin, transferindo para as nações a teoria da luta de classes, dividiu o mundo em Estados proletários e Estados burgueses. Os primeiros estavam, evidentemente, no chamado “Terceiro Mundo”. A ideologia do terceiromundismo começou a nascer aí, entre as duas guerras, com o intuito de levantar contra o Ocidente burguês todas as forças políticas, culturais, psicológicas e psicopáticas da Ásia, da África e da América Latina. Os “condenados da Terra” libertariam da civilização Ocidental o pobre Lukacs por meio do intenso trabalho dos partidos comunistas para arregimentar, treinar e armar a grande “nação islâmica” para a guerra mortal contra o Ocidente. A história é longa para contar em detalhes, mas a leitura do segundo volume de “The Sword and the Shield. The Mitrokhin Archive”, de Christopher Andrew e Vassili Mithrokin, recém publicado sob o título “The World Was Going Our Way. The KGB and the Battle for the Third World” (Basic Books, 2005), é um bom começo para compreendê-la.

A invasão física e cultural do Ocidente por hordas de imigrantes ao menos implicitamente solidários com o terrorismo é a bomba de efeito retardado plantada pela estratégia global estalinista. É claro que, nisso, o Islam não teve o papel passivo de massa de manobra. Elites islâmicas versadas tanto nas tradições muçulmanas quanto nas doutrinas ocidentais, especialmente o marxismo, o positivismo (no sentido amplo da palavra), o existencialismo e o estruturalismo-desconstrucionis mo, tinham suas próprias ambições e um plano de longo prazo.

Nos anos 50, um suíço islamizado, Frithjof Schuon, voltou da Argélia, transfigurado por uma longa imersão nas ciências espirituais islâmicas, àquela altura praticamente desconhecidas no Ocidente fora de um reduzido círculo de interessados. Sua promessa ao chegar foi: “Vou islamizar a Europa.” Disse e fez. Sem comícios nem bombas. Tornou-se o guia espiritual de eminentes intelectuais, milionários e homens de governo europeus. Almas de elite, que haviam perdido a conexão íntima com o cristianismo, recuperaram um sentido de ordem islamicamente moldado. Não se “converteram” ao Islam, pelo menos exteriormente. Apenas, suas almas foram dissolvidas e recristalizadas no forno da alquimia espiritual islâmica. Discípulo do principal discípulo de Schuon — o lituano naturalizado britânico Martin Lings – é, por exemplo, o futuro rei da Inglaterra, o príncipe Charles. Só por essa amostra vocês imaginam o poder da coisa. O rombo por onde o Islam invadiu o Ocidente não está em baixo, entre o povão revoltado e estudantes furiosos. Está acima do que o comentário político usual enxerga.

Pode parecer absurdo que altas doutrinas espirituais convirjam com o marxismo, mas a identidade do alvo – a destruição do Ocidente – é patente demais para que a diversidade de inspirações originárias constitua problema. Ademais, inúmeros teóricos marxistas e muçulmanos vêm fazendo há décadas um profundo trabalho de harmonização das duas grandes utopias: o socialismo planetário e o califado global. A orientação mais geral é tomar o islamismo como um coroamento espiritual do socialismo meramente “terrestre”.

A visão monstruosamente invertida que Robert Reich apresenta da invasão islâmica – visão hoje compartilhada por quase todos os defensores “modernistas” do Ocidente, é, como a expressão mesma “guerra contra o terrorismo”, produto de um pensamento auto-impugnante que toma figuras de linguagem como objetos reais. “Fundamentalismo” é figura de linguagem. “Modernidade” é figura de linguagem. “Fanáticos” é figura de linguagem. “Choque de civilizações” é figura de linguagem. Nenhuma delas usada como utensílio provisório para a investigação da verdade, mas todas como fetiches verbais com que a confusão mental se camufla a si própria, fazendo-se passar por discurso de conhecimento.

O espírito do falecido

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 12 de dezembro de 2004

Todos sabemos que, se os comunistas mataram cem milhões de pessoas, fizeram isso por elevado sentimento moral e amor à espécie humana, e que, se cinqüenta por cento dos americanos contribuem regularmente para campanhas de caridade, é por astúcia maquiavélica e egoísmo calculista.

Todos sabemos que, se o operário chinês ganha trinta dólares por mês e o americano três mil, é porque o primeiro está sob a proteção de um governo benevolente e o segundo é abandonado aos horrores da previdência social capitalista.

Todos sabemos que, se a China ocupa o Tibete há décadas e já matou um milhão de tibetanos, é com base em sólidas razões de direito internacional, ao passo que a ocupação americana do Iraque, fazendo vinte vezes menos vítimas do que o extinto regime de Saddam Hussein fez em tempo de paz, é uma intolerável e cruenta violação da ordem mundial.

Todos sabemos que, se os americanos jogam fora a oportunidade de ter lucros comerciais em Cuba e em vez disso preferem enviar doações em dinheiro aos habitantes da ilha, fazem isso por maldade, sêde de dólares, voracidade capitalista e desejo insano de ver todos os cubanos mortos.

Todos sabemos que, se os comunistas proíbem eleições nos países que invadem, é para impedir que sejam eleitos tiranos pró-imperialistas, ao passo que, se os americanos as promovem nos países que ocupam, é para melhor escravizá-los através do engodo da democracia.

Todos sabemos que, se as companhias americanas de petróleo reclamaram que a guerra do Iraque só lhes traria prejuízo, foi só para enganar os trouxas, porque é público e notório que George W. Bush promoveu a invasão para ganhar dinheiro com petróleo. Também sabemos que, se a elite da ONU, a Alemanha e a França lucraram durante duas décadas com o petróleo de Saddam Hussein, foi com a melhor das intenções paternais, tanto que se esforçaram para impedir que os EUA roubassem do povo iraquiano essa sua preciosa riqueza nacional.

Todos sabemos que, se Al Gore disse “Os brasileiros pensam que a Amazônia é deles, mas nós sabemos que é nossa”, isso mostra que seu partido é o defensor do Brasil contra a voracidade imperialista dos malditos republicanos. Inversa e complementarmente, todos sabemos que, se o governo Bush vê com bons olhos o ingresso do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, é porque quer nos manter na condição humilhante de país de segunda classe.

Todos sabemos que, se a extrema-direita israelense vive tramando atentados contra Ariel Sharon, isso prova que ele é um extremista de direita.

Todos sabemos que, se os movimentos nazistas e neonazistas na sua totalidade estão aliados ao terrorismo muçulmano na sua luta contra George W. Bush, isso é a prova definitiva de que o nazista é George W. Bush.

Todos sabemos que, se a indústria do livro esquerdista atingiu durante o regime militar os seus mais altos índices de produção e lucratividade, foi porque esses livros eram proibidos e ninguém podia comprá-los.

Todos sabemos que Fidel Castro matar cem mil pessoas é infinitamente menos revoltante do que o nosso governo matar algumas dezenas delas, sendo essa a razão supremamente ética pela qual os nossos bravos guerrilheiros se aliaram ao primeiro contra o segundo.

Todas essas lições – ou a infinidade das suas equivalentes – são diariamente transmitidas aos brasileiros em instituições de ensino, filmes, livros, programas de TV e notícias de jornal. Impregnaram-se tão profundamente na mentalidade nacional que mesmo aqueles que desconfiam da sanidade delas têm medo de contestá-las em público, preferindo fugir do assunto sob a desculpa de que o comunismo não constitui problema nenhum, pois morreu na década de 80.

Deve ter morrido mesmo, já que seu espírito desmaterializado, invisível e inominável, se espalhou pelo ar e se apoderou de tantos milhões de almas.

É proibido comparar

Olavo de Carvalho

O Globo, 23 de outubro de 2004

Desta vez a farsa durou pouco. Mas terá o leitor reparado na pressa obscena com que a quase totalidade da grande mídia nacional, de posse de umas fotos bem duvidosas, saiu alardeando mais uma de suas rotineiras vitórias morais sobre uma direita militar já praticamente extinta? Terá notado que o enredo do espetáculo corresponde ponto por ponto a um script repetível, periodicamente reencenado ante todos os holofotes, para a glória dos mártires esquerdistas e a desonra dos homens de farda?

Há sempre um ex-cabo, ex-soldado, ex-agente que aparece do nada, com revelações estapafúrdias e contraditórias, vendidas ao público como verdades auto-evidentes e aterradoras. Passadas umas semanas, nada se prova, é claro, mas a reputação das Forças Armadas sai um pouco mais suja.

Nos dois casos imediatamente anteriores, um morto despertava para frear um carro, escapando ao constrangimento de morrer duas vezes, e um agente especial, em fuga das investigações de tortura, não dispondo de cinco minutos para obedecer à ordem de queimar documentos comprometedores, passava horas cavando um buraco para escondê-los…

O grotesco da invencionice não tem limites. Mas quem ousará duvidar da autoridade moral dos campeões de tantas belas campanhas pela ética, pela paz, pelo desarmamento? Contra a inteligência do público, o jornalismo blefa — e ganha. O bom senso popular, retraído, cede lugar à credulidade servil que se rende ante a voz unânime dos bem-pensantes.

Desta vez a farsa durou pouco. Mas quando serão tiradas a limpo as anteriores? Resposta: quando a verdade dos fatos se tornar mais importante que a celebração ritual da santidade esquerdista.

O vexame desta semana apressará a mudança? Não creio.

“Dar voz aos dois lados” é o mandamento mais banal da profissão, mas ele não pode ser cumprido quando o objetivo é enaltecer um deles e humilhar o outro. Esse objetivo tornou-se cláusula pétrea do jornalismo nacional. Rompê-la é atrair o ódio de uma classe cuja solidariedade interna se identifica consubstancialmente à unidade histórica do ethos esquerdista.

Nos combates da era militar, o placar das mortes foi bem equitativo. Os esquerdistas mataram duzentos e perderam trezentos. Se, respeitando as proporções, a memória jornalística publicasse duas fotos dos primeiros para cada três dos segundos, duas declarações dos familiares daqueles para cada três dos descendentes destes, a imagem pública dos acontecimentos seria bem diversa do que é. Mas, se os trezentos são pranteados a cada momento como heróis e mártires, os duzentos não merecem senão o silêncio cheio de desprezo que se consagra a um detalhe irrisório. É injusto, inumano e surpremamente cínico.

Se para cada três imagens de esquerdistas mortos saísse nos jornais ao menos uma do tenente Mendes Júnior, assassinado a coronhadas, amarrado, pelo valente Carlos Lamarca, ou de Márcio Toledo, militante “justiçado” sob acusação de deslealdade à causa, ninguém acreditaria na lenda de que a luta foi de bravos e leais idealistas contra torturadores covardes e cruéis.

Pior. Se as vítimas da repressão fossem comparadas às do terrorismo, logo se tornaria visível uma diferença: as primeiras foram, todas, gente envolvida no conflito. Entre as segundas houve um número considerável de civis inocentes, configurando a prática fria e persistente de um crime hediondo nem um pouco mais perdoável que o de tortura.

Aí já não seria possível à nossa mídia — ou governo — continuar condenando da boca para fora os atos de terrorismo em Nova York ou Madri ao mesmo tempo que os louva quando voltados contra brasileiros.

Se as ligações políticas dos terroristas fossem descritas com veracidade, todo mundo saberia que eles combatiam uma ditadura culpada de trezentas mortes, mas o faziam como cúmplices de outra ditadura, culpada de mais de cem mil.

Por isso as comparações têm de ser evitadas. A função do jornalismo neste país é bem clara, e, com as honrosas exceções de sempre, ele a cumpre com notável diligência. Não se trata de retratar a realidade do mundo, mas de transformá-la. E é preciso começar pela transformação do passado.

Veja todos os arquivos por ano