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Os inventores do mundo futuro

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 1o de maio de 2006

Para aqueles que estão acostumados a desprezar como “teoria da conspiração” a hipótese de que o Council of Foreign Relations trama com o Grupo Bilderberg e outros círculos de milionários a implantação progressiva mas rápida de um governo mundial, o próprio CFR acaba de dar uma resposta definitiva, num documento oficial em que assume de vez o projeto e a parceria tão longamente descartados pelos onissapientes comentaristas da mídia. No relatório “Building a North American Community”, recentemente divulgado, o mais poderoso think tank globalista dos EUA propõe nada menos que a abolição das fronteiras entre Canadá, México e EUA e a transformação do continente numa “área onde o comércio, o capital e as pessoas circulem livremente”, a base para “o ingresso mais fácil no território americano”.

Num momento em que a população americana em peso clama por um controle mais rigoroso das fronteiras e os especialistas militares alertam para os perigos incalculáveis do fluxo contínuo de terroristas e narcotraficantes camuflados de imigrantes ilegais chicanos, a declaração mostra o total desprezo da elite globalista bilionária pela segurança nacional. Não resta a menor dúvida de que o CFR planeja sacrificar friamente a nação americana no altar da unificação administrativa do mundo, a ser atingida, segundo a idéia do velho Morgenthau, por meio de progressivas integrações regionais.

Porém o mais surpreendente no relatório é a admissão de que a fusão dos três países deve ser feita “segundo as linhas propostas pelas conferências de Bilderberg e Wehrkunde, organizadas para fomentar as relações transatlânticas”.

Até agora, esses nomes jamais tinham aparecido num documento oficial do CFR. Bilderberg e Wehrkunde são grupos altamente secretos de potentados da política e da economia que se reúnem periodicamente, sob precauções de segurança maiores que as de qualquer encontro de chefes de Estado, para planejar a implantação de um governo mundial e inaugurar uma nova civilização planetária, incluindo, segundo seus críticos, a fusão de todas as religiões num novo culto biônico inspirado no lixo teosófico de Madame Blavatsky e Alice Bailey. Na última reunião dos Bildergergers, em Sintra, Portugal, a cidade inteira foi bloqueada à entrada de repórteres, enquanto, fechados a sete chaves, longe de toda fiscalização crítica, tipos como os Rockefellers, Gorbachov, George Soros e, modéstia à parte, o nosso Fernando Henrique Cardoso, inventavam o mundo em que vão viver nossos netos.

Ao proclamar sua adesão aos objetivos das conferências Bilderberg e Wehrkunde, o CFR confirma ao menos uma parte do que foi denunciado em alguns clássicos da “teoria da conspiração”, como None Dare Call It Conspiracy, de Gary Allen e Larry Abraham (Sealbeach, California, Concord Press, 1972), e sobretudo o mais recente e informado The Brotherhood of Darkness, de Stanley Montieth (Oklahoma City, Hearthstone Publishing, 2000).

Essa confissão basta para explicar por que, arriscando atrair o ódio da base conservadora que o elegeu, o presidente George W. Bush, pertencente a uma família tradicionalmente ligada ao CFR, insiste em dar seu apoio ao projeto de anistia para doze milhões de imigrantes ilegais, elevando ao nível de uma ameaça apocalíptica os riscos de segurança que, por outro lado, ele anuncia querer controlar com mão de ferro. O projeto não só conta com a rejeição maciça do eleitorado americano, mas foi apresentado por dois políticos que Bush teria razões de sobra para considerar seus inimigos: Ted Kennedy, o mais devotado patrono de todas as causas esquerdistas, e John McCain, um republicano que mesmo examinado em microscópio não se distingue facilmente de um democrata.

Os interesses maiores do globalismo, evidentemente, transcendem as considerações eleitorais, o respeito pela vontade popular e a profunda inimizade política. Segundo o documento do CFR, George W. Bush, o presidente mexicano Vicente Fox e o primeiro-ministro canadense Paul Martin já se declararam “comprometidos” com a causa ali anunciada, quando do seu encontro no Texas em 23 de março de 2005.

No entanto, seria ingenuidade imaginar que o apoio da elite globalista ao estupro das fronteiras se limita a declarações de intenções. Ele inclui o planejamento e a sustentação financeira de ações políticas decisivas.

O relatório “Building a North American Community” foi publicado sob o patrocínio de um grupo de grandes empresas, entre as quais a Archer Daniels Midland Corp., ADM, o maior suporte financeiro do senador Sam Brownback. Logo após receber uma bolada de dinheiro da ADM, esse republicano do Kansas saiu alardeando apoio ao programa de anistia para os ilegais, anunciando que o fazia por piedade cristã.

A luta dos globalistas pela causa mais impopular que já se apresentou na arena política dos EUA também não se contenta com subsidiar manobras parlamentares. Inclui a arregimentação das massas e a ajuda a protestos violentamente antiamericanos. O Boletim G-2, publicado pelo assombroso repórter Joseph Farah como apêndice de seu jornal eletrônico WorldNetDaily, revela na sua última edição os principais suportes financeiros por trás dos movimentos que, para muito além da anistia aos ilegais, visam a entregar ao México os territórios do Texas e da Califórnia. Os mais poderosos entre esses movimentos são “La Raza”, “Lulac” (League of United Latin American Citizens) “Maldef” (Mexican American Legal Defense and Educational Fund) e “Mecha” (Movimiento Estudiantil Chicano de Aztlan). Os quatro são financiados por fundações e corporações milionárias associadas ao CFR, como Rockefeller e Ford, Bristol-Meyers Squibb, Chemical Bank, Chevron, Chrysler, General Motors, General Electric, Lockheed, Rockwell, Southwestern Bell, Quaker Oats, Verizon Foundation, AT&T Foundation e o Open Society Institute de George Soros. “ La Raza” foi praticamente criada pela Fundação Ford.

Esses quatro movimentos organizaram os recentes protestos que hastearam bandeiras mexicanas pelas ruas dos EUA e anunciaram, nas palavras de Mario Obeldo, líder histórico da Mecha, condecorado em 1998 por Bill Clinton, que “a Califórnia vai ser um Estado hispânico: quem não gostar vai ter de sair”.

A alta elite financeira e a militância vociferante, que os iluminados comentaristas da nossa mídia apresentam como os dois pólos de um conflito de vida e morte causado pela “desigualdade” e pela “injustiça social”, são exatamente uma só e mesma força. E o que move o conjunto não é nenhuma das “causas sociais” impessoais e anônimas que a pseudociência ensina serem os motores da história humana: é o planejamento vindo de cima, acompanhado dos meios financeiros, publicitários e políticos de realizá-lo.

Espero que o leitor mais desperto compreenda, à primeira vista, o quanto esses fatos tornam inviável e suicida o empenho de continuar pensando o mundo segundo as linhas usuais propostas pela tagarelice intelectual dominante. A identificação de globalismo e americanismo, por exemplo, que a totalidade das nossas classes falantes dá por pressuposta como elemento básico para a compreensão da política internacional, é uma besteira sem mais tamanho, e quem quer que insista nela depois do documento do CFR deve ser considerado um desinformante profissional ou um idiota incurável.

O aspecto mais deplorável em tudo isso não é somente que a humanidade seja arrastada por elites ferozmente ambiciosas em direção a objetivos que não lhe são sequer informados. É que as próprias ciências sociais, intoxicadas de conceitos explicativos que não explicam nada, estejam tão desarmadas para dar conta dos fatos de magnitude incomparável que estão, neste momento, determinando os destinos do mundo. Quando os agentes maiores do processo histórico têm planos que vão além da compreensão da intelectualidade média – para não falar da opinião pública em geral –, é inevitável que esses planos sejam postos em prática sem qualquer possibilidade de discussão crítica. Da noite para o dia, a humanidade atônita despertará num mundo novo, sem saber como foi parar ali nem quais são precisamente as regras do jogo. A ignorância geral terá se tornado um dos pilares do poder constituído. E o grupo dominante estará separado do povo por uma distância similar à que existe entre os deuses do Olimpo e uma multidão de cupins no subsolo.

Meus alunos são testemunhas do esforço que tenho feito para substituir noções pré-históricas de sociologia e ciência política por ferramentas descritivas mais adequadas à presente situação do mundo. Esforços similares vêm-se desenvolvendo em vários centros, mas sempre à margem da corrente acadêmica principal, congelada num verbalismo obsoleto e presunçoso que, se serve de alguma coisa, é de instrumento publicitário para a implantação de políticas que os próprios porta-vozes desse discurso não enxergam nem compreendem.

Não é preciso dizer que, baixando do plano internacional ao nacional, nada dos acontecimentos políticos locais pode ser explicado sem referência ao novo esquema de poder que está se formando no planeta. O apoio descarado das fundações globais bilionárias a movimentos revolucionários como o MST é o fato fundamental que vai determinar o destino nacional nos próximos anos, e os poucos que costumam mencioná-lo, como o sr. Lyndon LaRouche, só o fazem pelo viés de seus próprios planos, que não têm nada a ver com um desejo sincero de compreensão do processo.

Se a esquerda continua obscurecendo suas próprias ações com o discurso padronizado que camufla as verdadeiras relações de poder, nos círculos liberais e conservadores a discussão atém-se obsessivamente a proclamações doutrinais gerais que não ajudam em nada a esclarecer o que está se passando.

Para mim já se tornou evidente, por exemplo, que o sucesso no plano do Foro de São Paulo, a implantação da URSAL, União das Repúblicas Socialistas da América Latina, não somente não se opõe em nada aos objetivos do globalismo, mas contribui decisivamente para eles, fomentando uma integração regional que provocaria orgasmos em Hans Morgenthau e que, a longo prazo, só tornaria a América Latina ainda mais dependente dos bancos internacionais.

E não me venham com a ilusão risível de que o petróleo venezuelano é uma temível arma antiimperialista. Ninguém no CFR ou nos círculos governamentais americanos ignora que o Estado do Colorado tem reservas de petróleo jamais exploradas, equivalentes a vinte vezes o total das reservas da Arábia Saudita. No Brasil ninguém sabe disso, porque não saiu naquela porcaria do New York Times. Mas o pessoal que em Washington lê revistas especializadas sabe que, se existe um país imune a chantagens petrolíficas (e, de quebra totalmente desnecessitado do petróleo do Iraque, para não falar da Venezuela), são os EUA.

Isso não quer dizer, é claro, que os planejadores globalistas sejam mentes geniais capazes de acertar em tudo. O Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (North American Free Trade Agreement, Nafta), concebido pelo próprio CFR como um prefácio à integração total de EUA, Canadá e México, foi um fracasso sublime, e nem por isso os planejadores globalistas se deram por achados. Desde o Nafta, segundo dados da ONU, o número de lares mexicanos abaixo da linha de pobreza (menos de 60 dólares por mês) subiu de 60 para 76 por cento, enquanto o preço das tortillas, alimento básico da população, aumentou em 40 por cento. Os contribuintes americanos também não ganharam nada com isso, tendo hoje em dia de arcar com subsídios de 40 por cento para sua produção nacional de milho. E daí? Quando um sujeito acredita que tem na cabeça a solução para os males do mundo, nada detém sua volúpia de remexer os pilares do cosmos em nome de sua esplêndida utopia. Miséria e prejuízo são detalhes desprezíveis ante a grandiosidade épica dos planos globalistas.

***

Um artigo do sr. Arnaldo Jabor publicado no Caderno 2 do Estadão do dia 25 está, segundo me informam, obtendo grande repercussão em São Paulo. Nele o comentarista do Jornal Nacional queixa-se de que a superabundância de provas e documentos da criminalidade petista não é suficiente para tirar o judiciário da sua renitente indiferença. Todos “riem da verdade, viram-lhe as costas, passam-lhe a mão na bunda”. Tão profundo é o contraste entre os fatos conhecidos e o cinismo da sua negação oficial, que isso, diz o cronista, está resultando até numa “desmoralização do pensamento”: “A existência desses tipos de mentirosos está dissolvendo a nossa mídia. Esse neo-cinismo está a desmoralizar as palavras, os raciocínios. A língua portuguesa, os textos nos jornais, nos blogs, na TV, rádio, tudo fica ridículo diante da ditadura do lulo-petismo … as palavras estão sendo esvaziadas de sentido … o Lula reeleito será a prova de que os delitos compensaram. A mentira será verdade e a novilíngua estará consagrada.”

Lembro-me claramente de ter escrito tudo isso, quase nos mesmos termos, numa época em que o sr. Jabor estava ocupadíssimo embelezando a imagem de São Lulinha e ajudando a preparar o advento do estado de coisas que agora ele mesmo deplora.

A dissolução do idioma, por exemplo, não é um efeito da ditadura petista, mas uma condição prévia, criada propositadamente por uma vasta ação cultural sem a qual ela jamais teria vindo poder a implantar-se. Uma coisa é diagnosticar o processo desde os indícios sociais que denotam o seu curso em formação, outra completamente diferente é constatar o fato consumado que, se discutido abertamente em tempo, teria podido ser evitado. Na época em que escrevi textos como “Língua petista” (Zero Hora, 20 de outubro de 2002),  “Língua dupla e estratégia”, O Globo, 2 fev. 2002), “Reclamação inútil” (Zero Hora, 14 de dezembro de 2003) ou “A clareza do processo” (Zero Hora, 15 de junho de 2003), para não falar do meu livro de 1993 (sim, 1993), “A Nova Era e a Revolução Cultural” ,  a irresponsabilidade geral das classes falantes, incluindo o sr. Jabor, me respondeu com a mesma indiferença cínica que agora elas se queixam de encontrar no judiciário.

Se o sr. Jabor quisesse mesmo saber como chegamos ao descalabro que hoje o escandaliza, bastaria que prestasse atenção aos programas da mesma TV onde trabalha, que ao longo dos anos prepararam a Nação para cair na fraude da superioridade moral da esquerda e para embriagar-se no mito da pureza lulista. A Rede Globo de Televisão foi a grande responsável pela implantação da novilíngua no país. E, se hoje o sr. João Roberto Marinho dá um discreto apoio a organizações conservadoras, seu jornal e sua TV continuam a serviço do mais descarado esquerdismo. Compreendo que o sr. Jabor não possa denunciar seus próprios patrões. Eu mesmo não podia fazê-lo quando escrevia para O Globo, limitando-me então a diagnósticos gerais na esperança de que o leitor, com base nas descrições suficientemente claras que eu lhe fornecia, desse nome aos bois. Mas o sr. Jabor, ao denunciar com atraso aquilo que um seu colega sacrificou o emprego (aliás dois) para denunciar em tempo, poderia, sem citar o antecessor, o que seria mesmo demasiado doloroso para sua vaidade, ao menos reconhecer genericamente que está chegando tarde, que está falando na condição de cúmplice moral arrependido e não na de vítima inocente escandalizada. Lembro-me de que tanto falei das coisas que agora ele proclama, que, na época (quer dizer, no tempo e na revista “Época”), cheguei a ser acusado de obsessivo e redundante.

A capacidade do sr. Jabor como diagnosticador de males nacionais consiste apenas no seu timing oportunista de só dizer as coisas quando todo mundo já sabe delas e posar, então, de profeta do acontecido. O sr. Jabor não é solução: é parte do problema. A frouxidão cômoda da sua consciência moral, no entanto, não é característica individual dele (se fosse, eu nem tocaria no assunto nesta coluna, que não tem nada a ver com a vida pessoal de quem quer que seja): é um vício geral da classe jornalística, empenhada em exigir dos políticos uma correção ética superior à que ela própria é capaz de manter.

Detalhe esclarecedor

Eu mal tinha enviado este artigo ao Diário do Comércio, quando chegou um despacho da Associated Press com a informação de que o parlamento mexicano acabava de aprovar a liberação do porte e uso de cocaína, maconha, heroína, LSD, anfetaminas, ecstasy e até 2,2 libras (sim, quase um quilo!) de peiote, o cacto alucinógeno que a empulhação literária de Carlos Castañeda celebrizou nos anos 70 como uma fonte de conhecimentos espirituais, porca miséria. A lei precisa ainda do aval do presidente Fox, mas, acrescenta a agência, “isso não parece ser um obstáculo”. Um porta-voz de Fox já demonstrou a satisfação do presidente com a medida, anunciando, com cinismo exemplar, que ela facilitará o combate ao narcotráfico.

A nova lei aumentará incalculavelmente o afluxo de jovens americanos viciados ao território mexicano, e é vista com maus olhos pelas autoridades políciais dos EUA, mas não resta dúvida de que ela dá um passo enorme em direção à supressão das fronteiras nacionais, pretendida pelo CFR e pelos Bilderbergers. Nos círculos globalistas, o maior financiador das campanhas pela liberação das drogas no mundo é George Soros — não por coincidência, também um dos mais generosos doadores de dinheiro para os movimentos de mexicanização da Califórnia e do Texas. Por enquanto, a multidão ainda não atinou com a unidade estratégica por trás de mutações catastróficas de escala global que aparecem na mídia idiota como frutos espontâneos da metafísica do progresso. Aos poucos, a identidade dos agentes por trás do processo vai aparecendo — e, no fim, como anuncia a Bíblia, “sua loucura se tornará visível aos olhos de todos”.

Macaquice geral

Olavo de Carvalho


O Globo, 5 de junho de 2004

Há dez anos o jornalismo produzido por intelectuais de esquerda neste país tem um pauteiro secreto: eu. Basta eu dizer alguma coisa da qual desconheçam tudo, e no dia seguinte lá estão eles pontificando a respeito, omitindo – é claro — a citação da fonte e fazendo o diabo para dar a impressão de que são veteranos no assunto.

O problema é que esse pessoal não estuda nada, só lê jornal. E lêem jornal apenas para absorver de volta suas próprias opiniões, ali reproduzidas por seus correligionários sob uma encantadora multiplicidade de formas e pretextos que lhes dá até a sensação de estar lendo coisa nova. Mas, como cãezinhos que lambem o próprio vômito, acabam aprendendo o gosto e enjoando do cardápio. Entâo vêm à minha coluna e, após alguns momentos de indignada perplexidade, tratam de recobrar o “aplomb” e ensaiar aquela pose de quem já sabia de tudo. Isso até que é bem fácil, dada a bicentenária tradição de macaquice que permeia a cultura nacional.

A dificuldade não reside em macaquear, mas em macaquear negativamente, isto é, em dar a aparência de que a novidade indigerível lida na véspera é apenas alguma velha mentira já mil vezes impugnada. As habilidades teatrais requeridas para isso não são nada desprezíveis. Daí a compulsão irrefreável de substituir minhas afirmações por algum chavão bem bocó que com elas se pareça desde o ponto de vista da completa ignorância e, refutando facilmente este último, dar-se os ares triunfantes de quem tivesse esmagado aquelas.

O conceito de “estratégia revolucionária continental”, por exemplo, refere-se a um fenômeno bem preciso, documentado nas atas do Foro de S. Paulo e nos escritos de centenas de teóricos gramscianos. Refutar a existência objetiva do fenômeno é tarefa superior à força humana. A solução, num caso desesperado como esse, é trocar o mencionado conceito pelo de “teoria da conspiração” e, partindo da certeza a priori de que todas as teorias da conspiração são pura maluquice, dar o assunto por encerrado.

Outro exemplo: a existência de um governo mundial não declarado, manifestada na imposição de legislações sociais, culturais, econômicas, militares e criminais uniformes em todo o planeta e na conseqüente abolição das soberanias nacionais, é um dado empírico incontornável — com a condição de que você tenha estudado essas legislações e suas fontes, como eu, modestamente, venho fazendo há anos. Se você não quer fazer isso, não custa nada apelar ao “Project for a New American Century” e apresentá-lo como se fosse o plano mesmo da dominação mundial e não uma tardia reação defensiva do país mais visado pelas ambições globalistas, o qual ali opõe a estas últimas a proposta bem mais sóbria de uma simples “liderança global” que aliás já lhe pertence. Com um pouco de imaginação leviana, pode-se até equipará-lo ao “Mein Kampf” e instilar nos leitores mais umas gotas de paranóia anti-americana, fazendo deles instrumentos inconscientes do poder global em seu empenho de corroer o último baluarte de resistência, a soberania do país mais forte.

Entre a macaqueação e a parasitagem, pode-se também apelar ao expediente de diluir o sentido das palavras. “Desinformação”, por exemplo, aparece nos meus artigos em sentido técnico, tal como usada na bibliografia especializada. Nesse sentido, é óbvio que toda operação de desinformação subentende uma organizada rede de militantes e colaboradores espalhados na mídia, prontos a ecoar palavras-de-ordem. Só os movimentos anti-americanos possuem hoje em dia uma rede como essas, só eles têm os meios de praticar desinformação. Mas as palavras não resistem à deformação semântica. No Brasil, na Europa ou em toda a América Latina — e mesmo na grande mídia norte-americana — algo como uma “desinformação pró-Bush” é uma simples impossibilidade material, mas, desde que a massa de jornalistas ativistas aprendeu a chupar o termo nos meus artigos e regurgitá-lo com significado alterado, a crença geral na existência desse fenômeno impossível tornou-se um dogma da religião política nacional.

No limite da candura

Olavo de Carvalho


 Zero Hora, 10 de fevereiro de 2002

Espero que, antes de solidarizar-se com as efusões de revoltafingida da esquerda chique contra a ascensão da delinqüência, o leitor se lembre de que essa gente apregoou aos quatro ventos as virtudes revolucionárias do banditismo, ensinou técnicas de guerrilha e organização paramilitar aos detentos da Ilha Grande e por fim encabeçou o movimento internacional de solidariedade aos seqüestradores de Abílio Diniz, em 1989, dando a seus sucessores na carreira do crime a esperança, senão a certeza, do respaldo midiático e da impunidade.A candura sonsa, a incapacidade de enxergar a malícia alheia, tem limites: ultrapassado um certo ponto, torna-se cumplicidade ativa do otário com o vigarista, do sequestrado com o seqüestrador, da vítima com os advogados de seus agressores e assaltantes.

Se a opinião pública brasileira, malgrado os alertas que lhe chegam, ainda que parcos e escondidos nas entrelinhas de um noticiário fortemente policiado pelos gerentes da boa imagem esquerdista, se recusar por mais tempo a tomar consciência da índole essencialmente criminosa, golpista e manipuladora da política de esquerda neste país, mais cedo ou mais tarde terá de se submeter calada às exigências ditatoriais dessa política, que não serão diferentes aqui do que foram em Cuba ou no Camboja.

É verdade que à índole do brasileiro repugna ver na alma alheia qualquer dose de maldade superior àquela de que ele próprio se imagina capaz. Exposto diariamente à tentação vulgar de obter miúdas vantagens ilícitas aqui e ali, com a maior facilidade ele adivinhará intenções idênticas no coração do próximo. Mas a perfídia maior, o grande conluio da revolução continental da narcoguerrilha, é algo que ultrapassa a sua concepção do mal. Incapaz de conceber um criminoso maior que o juiz Lalau ou do que os delinqüentes avulsos que pululam no noticiário, ele tenderá, instintivamente, a rejeitar com horror a mera sugestão de que certas coisas possam estar acontecendo. De início, ele o fará com uma certa afetação de tranqüilidade superior, rindo do interlocutor e atirando-lhe na cara o estereótipo fácil da “teoria da conspiração”, do qual aliás só tomou conhecimento por um título de filme e cujo sentido desconhece por completo. Depois, aos poucos, sob o bombardeio dos fatos que se sucedem, ele sentirá vacilar a falsa segurança de sua certeza inicial e, diante de qualquer tentativa mínima de tirar desses fatos as conclusões que eles logicamente impõem, começará a reagir com quatro pedras na mão. Fará do interlocutor o emissário do mal, vingando-se das más notícias na pessoa do carteiro.

Mas nem mesmo um cego de nascença, vendado e preso num quarto escuro, pode se impedir de enxergar, com os olhos da inteligência, o sentido nítido e patente de certos fatos. Que há uma articulação política entre Hugo Chávez, Fidel Castro, as Farc e a esquerda brasileira, por exemplo, é algo que ninguém pode negar, pois essa parceria foi afirmada e reafirmada vezes sem conta pela própria esquerda, seja no Foro de São Paulo, discreta reencarnação do Comintern, seja, mais espetaculosamente, nos dois Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre. Mas a parceria vai além das declarações de intenção. Chávez, segundo se revelou num vídeo recentemente divulgado, é fornecedor de armas às Farc, enquanto estas, conforme o provaram os arquivos do “laptop” do delinqüente Fernandinho Beira-Mar, estão intimamente associadas à rede brasileira de tráfico, e Fidel Castro, por sua vez, é acusado por seu ex-assessor Ernesto Bettancourt de manter uma conta pessoal na Suíça para lavagem de dinheiro do comércio latino-americano de drogas. Os partidos esquerdistas legais, por seu lado, em vez de combater de frente a articulação revolucionária, como em Portugal o fez Mário Soares contra as tropas militantes de Álvaro Cunhal — e como seria de fato a única atitude digna de esquerdistas convertidos ao constitucionalismo democrático –, fazem o possível e o impossível para acobertar essa gigantesca manobra, para infundir no público a impressão de que ela não existe, para protegê-la enfim de todo risco de investigação e denúncia. Com isso, dão à revolução em marcha o tempo precioso que ela necessita para fortalecer-se à sombra, até estar pronta para dar sobre o continente o seu bote fatal. Fecha-se assim o círculo: é absolutamente inescapável a conclusão de que a liderança esquerdista deste país está de braços dados com a revolução continental armada, financiada pelo narcotráfico. Quem quer que se recuse a ver uma coisa tão óbvia, não estando ele próprio amarrado por algum compromisso com essa gente, é na melhor das hipóteses um ingênuo, um incurável ingênuo.

(PS O mesmo assunto, sob ângulo diverso e complementar, foi analisado no meu artigo de ontem, sábado, em “O Globo”, que se encontra hoje reproduzido na minha homepage, http://www.olavodecarvalho.org.

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