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Auto-explicação

Olavo de Carvalho

Época, 14 de julho de 2001

O articulista faz uma confissão pessoal

Como há um só articulista que escreve habitualmente contra o socialismo na imprensa de circulação nacional, e como o peculiar conceito socialista de democracia exige que não haja nenhum, todos os artifícios – da difamação às ameaças, da chacota à afetação de silêncio superior – já foram tentados para persuadir esse um a mudar de assunto. A última moda é adulá-lo, elogiar-lhe o estilo, lamber-lhe o ego até o total amolecimento de seu juízo crítico e então, quando ele está indefeso e derretido num mar de lisonja, lançar-lhe à queima-roupa a insinuação fatal: “Desista”.

Sugestão análoga às vezes vem de pessoas boas, sem nenhuma intenção perversa. É no olhar e no tom que se discerne, nas outras, o intuito de calar o articulista.

Infelizmente esse articulista sou eu. Digo “infelizmente” porque, com outro, o ardil talvez funcionasse. Já comigo ele não tem a menor chance, sendo eu uma alma impérvia e coriácea, sem outra ambição na vida senão a de fazer exatamente o que tem feito.

Os senhores – falo de meus aduladores interesseiros, e não dos demais leitores, é claro – não têm a menor idéia de como é bom, para um sujeito que ajudou a construir uma mentira na juventude, poder desmontá-la na maturidade, tijolo a tijolo, com a meticulosidade sádica do demolidor que não se contenta em derrubar paredes, mas quer ir até o último fundamento, arrancar a última pedrinha do alicerce e deixar o terreno limpo e nu como antes do início da construção.

Poder fazer isso é uma libertação, um alívio, uma antecipação terrena da paz eterna. Nada do que os senhores possam me oferecer vale isso. Nada. Muito menos a lisonja, que é a mais instável e inflacionada das moedas.

Mas não pensem que, quando falo em libertação, me refiro ao arrependimento, no sentido moral do termo. A libertação de que falo não é só moral, é existencial, é ontológica. É descobrir e provar, diariamente, que a vida humana não tem de ser um teatrinho de papelão, que ela pode ser integralmente real, que um homem pode passar do auto-engano e da farsa interior a uma existência de verdade, como Pinóquio deixou de ser um boneco para se tornar menino de carne e osso.

Nessas circunstâncias – repito Oscar Wilde –, dizer a verdade é mais que um dever: é um prazer. Mais que um prazer, é uma autêntica exaltação da alma, que ao descer da ilusão aos fatos descobre, pela primeira vez, a dimensão da altura e da profundidade, a estatura real do espírito. É uma descida que é ascensão, se me entendem.

Mas não entendem, não. Pessoas como os senhores não concebem o abandono das ilusões senão – mui estereotipicamente – como a troca dos belos ideais de juventude pelo realismo cru e egoísta da maturidade. Não vendo o que nesses ideais há de pura vaidade e soberba, de pura volúpia de poder camuflada em belas palavras, não podem compreender o que há de legítimo idealismo no sacrifício maduro da mentira juvenil. Aqueles que, abandonando o socialismo, caíram na amargura cética ou no oportunismo cínico não o abandonaram verdadeiramente. São seus escravos e hão de sê-lo eternamente. Cultuam-no em imagem invertida: vendo ainda nele o bem e lamentando apenas que seja um bem impossível, aderem à realidade como quem, após longa resistência, cede a uma tentação aviltante. Deixam o socialismo como quem trai um deus sem cessar de amá-lo.

Esses não entenderam nada. O socialismo nunca foi um deus ou um ideal. Foi uma mentira demoníaca e uma exploração da fatuidade das multidões. Abandoná-lo não é perder um ideal: é reconquistar a vida, a alma, o sentido do dever e a dignidade da missão humana.

É para mostrar esse bem aos que ainda o desconhecem que escrevo contra o socialismo. Os senhores, que não sabem nada disso, podem me atribuir projetivamente os motivos mais estapafúrdios: ódio, inveja, ressentimento, fanatismo, o diabo. Pouco me importa. Eu sei o que estou fazendo, e os senhores não sabem o que dizem.

“Como é bom, para quem ajudou a construir uma mentira na juventude, poder desmontá-la na maturidade”

Dica para os esquerdistas

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 13 de abril de 2001

Se vocês querem “superar o capitalismo”, a primeira coisa que têm a fazer é tirar da cabeça a idéia de socialismo. O socialismo não apenas é incapaz de superar o capitalismo, como na verdade é apenas uma sombra dele, sem vida própria.

O capitalismo só será superado quando a economia, que ele transformou em centro da existência, já não for mais aceita como princípio causal da História, isto é, quando o último marxista foi enforcado nas tripas do último “homo oeconomicus”.

A superação do capitalismo não pode consistir na destruição da economia de mercado, pela simples razão de que o mercado não é uma ideologia, um regime, uma lei que um governante baixou e outro possa revogar, mas é uma dimensão da existência humana. Algum tipo de economia de mercado sempre existiu e, mesmo no mais burocratizado dos socialismos, continuou a existir. Suprimir a economia de mercado é tão inviável quanto proibir as relações sexuais. O que distinguiu o capitalismo moderno, surgido nos Países Baixos na época da Reforma, foi um conjunto de condições culturais, morais e políticas que, na ausência de forças políticas reguladoras da vida social, permitiram que o próprio mercado assumisse o papel de regulador. Mas não de regulador autocrático. Os principais fatores daquele conjunto eram a homogeneidade dos valores morais vigentes (cristãos e judaicos) e a inexistência de um poder central coercitivo: o acordo interior, na ausência de coerção externa. Tais foram as bases éticas que, como bem viu Adam Smith, fundamentavam a economia de mercado sem que esta, por si, pudesse criá-las. Foi a presença dessas condições que favoreceu o desenvolvimento do capitalismo nos países protestantes e o inibiu nos países católicos, de forte autoridade central.

Por isso é absurdo considerar o capitalismo uma “ideologia”, uma racionalização de anseios políticos. O capitalismo surgiu como realidade operante muito antes de que alguém o formulasse como ideologia. As posteriores “ideologias” capitalistas jamais conseguiram dar conta da rica complexidade do capitalismo e nem mesmo explicar suficientemente sua eficácia.

Mas nessa origem aparecia já uma contradição fundamental. É que não só a fórmula econômica surgida espontaneamente daquela combinação de fatores culturais subsistiu longamente após a dissolução dela, mas também seu sucesso fez com que fosse exportada para regiões onde combinação similar nunca existiu. Pois bem, onde o capitalismo se instalou sem essa base ética, ele teve de improvisar uma – e, aí, a pura “ideologia” capitalista, racionalização esquemática, fez às vezes do fundamento ético faltante. Isto não podia dar certo. Daí o sentido de coisa imposta, revolucionária e autoritária, que a modernização capitalista adquiriu em tantos países, inclusive o Brasil, onde essa contradição se radicalizou ao máximo no regime militar, tão liberal nos seus pretextos ideológicos quanto estatista, centralizador e prepotente nas suas ações.

Ora, o ponto em comum entre “ideologia liberal-capitalista” e marxismo é o viés economicista. O primeiro parte de um recorte fenomênico abstrato – a conduta econômica racional – e o adota, arbitrariamente, como modelo explicativo e norma corretiva de toda a vida social. O segundo não faz senão “colocar de cabeça para baixo” esse modelo, atribuindo a conduta econômica racional já não ao “homo oeconomicus” individual e sim ao Estado socialista, que é ainda mais abstrato, hipotético e artificial do que ele.

Daí a simbiose doentia de ideologia liberal e de socialismo onde quer que as autênticas bases culturais do capitalismo falhem. Mas estas bases falham cada vez mais num mundo onde a religião recua e o poder político se expande.

Por isto o capitalismo se descaracteriza a olhos vistos, ficando cada vez mais parecido com o socialismo, ao mesmo tempo que o socialismo, fracassado enquanto fórmula econômica, ganha uma sobrevida postiça na forma de mitologia cultural do capitalismo e Ersatz de ética religiosa. Por isso, também, será impossível irmos “além do capitalismo”, mesmo em sonhos, enquanto nossa imaginação estiver presa a essa mitologia.

“Superar o capitalismo” é retirar a economia do topo da vida social, submetendo-a a valores supra-econômicos. Mas isso é, no mesmo ato, abdicar do socialismo. O pós-capitalismo ainda não existe nem em teoria. Mas, quando existir, será menos parecido com o socialismo do que com o capitalismo originário, onde a lei de Deus era mais importante do que o progresso econômico e por isto mesmo o progresso econômico era uma bênção e não uma maldição.

Ainda a canalhice

Olavo de Carvalho

O Globo, 7 de abril de 2001

Quando se fala dos cem milhões de vítimas do socialismo, isto se refere a pessoas assassinadas de propósito, por ordem de governantes, em tempo de paz. São “inimigos de classe” liquidados mediante fuzilamentos, enforcamentos, espancamentos, torturas várias e inanição forçada. São vítimas de genocídio deliberado. Seu número não inclui nem soldados mortos em combate, nem vítimas civis da guerra ou de crimes comuns, nem muito menos taxas de mortalidade infantil ou cálculos de diminuição da expectativa de vida média por conta da ineficácia econômica do socialismo. Se incluísse, o total, na mais modesta das hipóteses, duplicaria. Mas, mesmo sem isso, cem milhões já bastam para tornar o socialismo, desde o simples ponto de vista quantitativo, um flagelo mais mortífero que duas guerras mundiais somadas, mais todas as epidemias e terremotos deste e de vários séculos.

Quando, nada tendo a opor à realidade brutal desses dados, o propagandista do socialismo quer aliviar a má impressão desviando os olhos do público para os “horrores do capitalismo”, ele não encontra aí nada de parecido. Nem Gulag, nem fuzilamentos em massa, nem expurgos, nem guardas vermelhos a retirar professores de suas cátedras para espancá-los até à morte. Que artifício lhe resta, então, senão apelar à duplicidade de pesos e medidas para ajustar o resultado do cálculo ao efeito publicitário premeditado? Então ele atribuirá às democracias ocidentais a culpa pelas guerras iniciadas por governos totalitários, nivelará moralmente o genocídio premeditado com os efeitos imprevistos de políticas econômicas, fará do governo de Washington o autor intencional das mortes de famintos em países submetidos a regimes estatistas e socializantes da Ásia, da África e da América Latina onde o capitalismo mal chegou a entrar, e por fim debitará na conta dos governos capitalistas todos os feitos de assaltantes, estupradores, serial killers e delinqüentes em geral.

Ao perceber que tudo isso ainda não basta para completar a cifra desejada e que a manobra inteira já começa a soar inconvincente, ele apelará ao derradeiro subterfúgio: negar o valor dos números, abolindo, num golpe de caneta, a diferença entre o assassino de uma só vítima e o assassino de milhões, diferença que minutos antes, quando imaginava poder usá-la contra o capitalismo, ele mesmo enfatizava aos berros. Então, matar os 300 assassinos de 200 policiais e soldados, no Brasil, terá se tornado crime tão hediondo quanto fuzilar, em Cuba, dezessete mil dissidentes civis desarmados. Revidar o ataque de tropas armadas, numa guerra civil, será tão abominável quanto retirar de suas casas, na calada da noite, dezenas de milhões de cidadãos inermes, para os fuzilar e jogar na vala comum.

Depois de todos esses cortes, enxertos e suturas, não há realidade que resista. A imagem do capitalismo aí fica, sim, pelo menos tão má quanto a do socialismo. Talvez até um pouco pior.

Mas qualquer palavra mais doce do que canalhice, que eu empregasse para qualificar esse gênero de discurso, me tornaria indigno da condição de escritor; indigno, a rigor, da simples identidade funcional de jornalista. Pois, se há uma obrigação elementar do jornalista, é a de dar aos fenômenos que descreve a justa proporção que têm na realidade. E não há um só tratado sobre a arte da argumentação, de Aristóteles e Quintiliano até Schopenhauer e Chaim Perelman, que não exclua da arte retórica, mãe do jornalismo, o uso daquele tipo de expedientes maliciosos, relegando-os ao lixo da erística, a arte de ludibriar o público, a retórica prostituída dos intrujões e dos canalhas.

Chamá-los canalhas não é, nem de longe, a expressão de um sentimento pessoal. É a justa e exata aplicação de um juízo consagrado entre os mestres da arte da argumentação. É o reconhecimento objetivo da intromissão de um linguajar fraudulento que, se não pode ser eliminado das arengas de arruaceiros e demagogos, deve ser banido, sem complacência, de todo debate que se pretenda intelectualmente respeitável.

Isso é requisito preliminar, independente, mesmo, do mérito das questões em disputa.

Mas, no caso presente, se há algo comparável à vileza dos procedimentos argumentativos usados para igualar o inigualável, é a feiúra moral da causa a que sacrificam a sua honradez intelectual os que a tanto se prestam.

As dimensões do mal que eles pretendem ocultar são tão colossais, ultrapassam de tal modo as medidas do humanamente concebível, que a Igreja, em sentenças papais proferidas ex cathedra, definiu o fenômeno como intrinsecamente diabólico, condenando à excomunhão automática qualquer católico que, por palavras, atos ou omissões, colaborasse com o monstruoso empreendimento.

No entanto não falta quem se escandalize diante dessa sentença papal mais que diante da imensidão do próprio crime que ela condena. Onde já se viu, dirão, diabolizar assim as pessoas? Feio, no sentimento de quem assim fala, não é matar cem milhões de seres humanos. Feio é aliviar, por piedade, as culpas dos criminosos, atribuindo a autoria de seus feitos ao demônio. Feio não é Pol-Pot, não é Stalin, não é Mao, não é Fidel. Feio é o Papa que, vendo-os conduzidos pelo demônio como bonecos, joga as culpas deles sobre o tentador e implora a Deus que os perdoe porque não sabem o que fazem.

É assim que, na imaginação dos que se dizem bem intencionados, o crime se converte em mérito, e o perdão em crime.

Admito que a visão do mal, nas proporções com que ele surge no fenômeno socialista, é em si mesma estupefaciente — o bastante para que a alma vacilante, diante dela, dificilmente resista à tentação de negar a realidade, como os olhos do poeta, diante da “sangre derramada” de seu amigo Ignacio Sanchez, gritavam desesperados: “No! Yo no quiero verla!”

Admito que a fraqueza humana, para se defender instintivamente da atração hipnótica do mal, prefira negá-lo.

Mas a ignorância voluntária é, já, a vitória do mal.

PS – Peço encarecidamente a meus antagonistas que, quando me cobrarem as fontes das informações que veiculo, não o façam naquele tom arrogante de quem finge a certeza de não obter resposta. (a) Os dados sobre a manipulação comunista das consciências infantis foram coletados pelo prof. Nelson Lehmann da Silva, da UnB, que pode ser consultado pelo e-mail nelson@essencial.com.br. (b) A prova de que a ação conjunta dos militares resultou da intervenção cubana na guerrilha, e não esta daquela, está em “Apoio de Cuba à Luta Armada no Brasil”, de Denise Rollemberg (Rio, Mauad, 2001).

PS 2 – Mais um livro importante sobre a situação catastrófica do Rio Grande do Sul, ignorada no resto do país, acaba de sair em Porto Alegre: “Crônicas contra o totalitarismo”, de Percival Puggina (Fundação Tarso Dutra, f. 051 2214419).

PS 3 – Agradeço ao meu colega Leandro Konder sua gentileza de me reconhecer, em público, como homem tolerante e capaz de diálogo. Da minha parte, jamais lhe neguei qualidades similares.

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