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Fraude e inconsciência

Olavo de Carvalho


O Globo, 3 de novembro de 2001

O socialismo foi, ao longo de toda a história, a única doutrina que professou abertamente reduzir todas as manifestações da cultura a instrumentos da luta pelo poder. Arte, literatura, direito, ciência, religião, educação e tudo o mais que a inteligência humana pudesse criar deveriam servir, antes de tudo, para colocar no poder um certo grupo ou partido e suprimir os meios de ação de seus adversários.

Que essa proposta fosse absurda e monstruosa em si, “cela va sans dire”. Mas o fato é que essa mesma característica dava ao socialismo uma extraordinária superioridade na concorrência com as demais doutrinas.

Primeiro, porque nenhuma delas poderia jamais organizar-se, como ele, de maneira disciplinada para produzir um discurso coerente e unitário sobre todos os aspectos e fenômenos da vida. Nenhuma doutrina ou corrente de opinião pretendeu jamais abarcar um campo tão vasto, nem muito menos subjugá-lo de maneira tão rasa e imediata aos fins práticos de uma ambição política.

Segundo, porque essa peculiaridade tornava o socialismo a doutrina de mais fácil e imediata aceitação: é incomparavelmente mais fácil envolver as pessoas numa fantasia psicótica auto-reprodutora do que conduzi-las ao longo de uma penosa e lenta caminhada por entre as ambigüidades e contradições da vida. A noção mesma de “contradição”, no socialismo marxista, sofria uma simplificação redutiva que a tornava facilmente manejável para fins de propaganda política.

Terceiro, porque, nessas condições, o socialismo atuava sobre o imaginário coletivo como força unificada, enquanto quaisquer outras doutrinas se esfarelavam e se despersonalizavam numa poeira confusa de diferenças dificilmente abarcáveis pelo olhar do cidadão comum. (E quando o socialismo pós-URSS abandonou até suas pretensões de formulação doutrinal explícita, reduzindo-se a um mero sistema de estimulações emocionais, a coisa tornou-se ainda mais fácil.)

Quarto, porque o socialismo podia prevalecer-se do relativo desconhecimento das demais doutrinas para impor, mediante autoprojeção inversa, a crença de que todas elas eram também meros instrumentos de luta política, só que com finalidades opostas às suas. Sendo as metas autoproclamadas do movimento socialista a justiça, a paz e o bem, todas as demais doutrinas tornavam-se instrumentos da injustiça, da guerra e do mal. Por meio dessa gigantesca fraude os porta-vozes do socialismo puderam assim desmoralizar como instrumentos militantes da “ideologia burguesa” até mesmo as doutrinas científicas mais rigorosas, mais objetivas e mais alheias a qualquer ambição política. Quando a evidente boa-fé e o rigor intelectual de um autor viesse a tornar inverossímil a acusação de que suas obras fossem uma apologia da exploração do homem pelo homem, restava sempre a possibilidade apelar ao subterfúgio de que nesse caso em particular as intenções maquiavélicas eram inconscientes ou estavam encobertas por um véu de “falsa consciência”.

Assim, face ao assalto maciço das hordas socialistas, os adversários, dispersos e desorganizados por definição, não podiam senão recorrer a inúteis apelos à razão e ao bom senso, cujo exercício pelo público se tornava impossível graças ao tom de passionalismo denuncista e belicoso que o próprio lance inicial dado pelos socialistas imprimia a toda e qualquer disputa intelectual.

A única tentativa de opor ao bloco socialista uma resistência unitária e maciça não veio de seus inimigos, os capitalistas liberais, mas de um concorrente emergido das próprias fileiras socialistas: o nazifascismo. Este tinha tanta “personalidade”, tanta visibilidade e tanta brutalidade quanto o socialismo, e era tão pretensioso quanto ele em sua ambição de tudo abarcar  — da gramática à medicina — e tudo tornar instrumento da luta. Mas, como reação improvisada que foi, ficou muito abaixo do socialismo, seja em volume de produções, seja em nível de elaboração intelectual. Macaqueação canhestra, terminou oferecendo ao adversário a ajuda mais inesperada e mais decisiva: tornou possível a dupla fraude hermenêutica que se tornou a mais poderosa arma do arsenal retórico socialista. Primeiro, tratou-se de converter o fascismo — mistura de socialismo e nacionalismo xenófobo — em “doutrina capitalista burguesa” (analisei esse truque no artigo “Coelhos fantasmas” de 8 set. 2001). Feito isto, tornava-se fácil tomar qualquer doutrina já previamente diagnosticada como “ideologia burguesa” (pelos meios acima descritos) e, num passe de mágica, colar-lhe por acréscimo o rótulo de fascista. Descobrir fascismo por trás das idéias mais díspares e heterogêneas tornou-se, desde então, o meio básico de análise no enfoque socialista do que quer que seja — praticamente o único instrumento intelectual em uso na totalidade da literatura esquerdista, na produção acadêmica esquerdista, no jornalismo esquerdista. E, da maneira mais clara possível, esse meio e instrumento consiste em uma só coisa: fraude.

Transformar em fraude a totalidade dos produtos da inteligência humana e fazê-lo por meio de um esquema interpretativo simples, automático, repetível como um cacoete, autoproliferante como um vírus de computador, tal foi a grande, a rigor a única realização intelectual do socialismo.

A potência embrutecedora desse mecanismo é incalculável. Ela pode levar o ser humano a abismos de inconsciência jamais imaginados. Querem um exemplo? Quando, na década de 60, os países comunistas investiram mais em “cultura” anti-americana dentro dos EUA do que em material bélico no Vietnã, eles sabiam o que estavam fazendo. A guerra do Vietnã foi, na história, a primeira em que um dos lados deu plena liberdade, em seu próprio território, à propaganda do inimigo. A mídia tornou-se duplamente útil aos comunistas: servia a seus objetivos político-militares ao mesmo tempo que continuava a ser desmoralizada como instrumento de propagação imperialista do “american way of life”. É absolutamente impossível que uma mente normal não perceba a incongruência, mas as massas de hoje já não se constituem de pessoas normais, mas de idiotas que chamam de “mídia imperialista” os mesmos jornais em que lêem diariamente doses maciças de tagarelice anti-americana. E os jornalistas de esquerda que aí vetam ou camuflam à vontade qualquer notícia de atrocidades comunistas — os mesmos que fazem com que umas quantas mortes acidentais em bombardeios pareçam crime tão hediondo quanto o homicídio premeditado de seis mil civis –, ainda podem gritar (e alguns até acreditar) que não têm liberdade de imprensa, que são indefesos socialistas oprimidos pelo sistema, forçados por cruéis patrões a trabalhar para a propaganda capitalista…

Moral leninista

 

Compreenda a mentalidade
que vai dominando este país

Olavo de Carvalho


Enviado à redação de Época em 29 out 2001, para a edição de 3 nov. – Não publicado.

“Devemos recorrer a todo tipo de estratagemas, manobras, métodos ilegais, disfarces e subterfúgios”, escreveu Lênin em “O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”. É uma fórmula geral da conduta esquerdista. Mas o contexto imediato esclarece ainda mais seu sentido e sua atualidade: Lênin disse essas palavras quando se preparava para lançar a NEP, a política de abertura de mercado, que, levando o mundo a crer que o socialismo havia perdido sua vocação revolucionária e truculenta, desarmou as prevenções ocidentais e atraiu para a URSS vultosos investimentos estrangeiros  depois, naturalmente, encampados à força.

Foi a primeira de uma interminável série de camuflagens “light” que o socialismo veio adotando até hoje.

E Lênin concluía: “Quando tivermos conquistado as massas mediante uma abordagem razoável, então aplicaremos táticas ofensivas.”

Desde então tornou-se praxe nos partidos comunistas manter ao mesmo tempo duas linhas de ação, uma violenta, outra pacífica, uma radical, outra moderada, alternando sua exibição no palco segundo as conveniências do momento e alternando também a modalidade de relação entre as duas alas, que ora pode se mostrar como parceria, ora como concorrência ou antagonismo, de modo que o movimento como um todo pareça fraco e dividido ou unido e forte. Anatoliy Golitsyn, em “New Lies for Old”, mostrou que, na política soviética, essa última alternância refletia o ritmo de consecução da estratégia revolucionária, segundo o conselho de Sun-Tzu: “Mostrar-se fraco quando está forte, forte quando está fraco”.

Essa ambigüidade premeditada pode se personificar em distintas figuras que representem simultaneamente as duas faces do partido  como, no Rio Grande do Sul, Tarso Genro e Miguel Rosetto, correspondentes, mutatis mutandis, a Arlequim e Pierrot ou o Gordo e o Magro. Pode aparecer também como adaptação oportunista às mudanças do ritmo histórico, de modo que as táticas agressivas e desagradáveis sejam postas de lado como inadequadas aos novos tempos, sem ser por isto condenadas moralmente. Mas pode também manifestar-se como ambigüidade no sentido estrito, isto é, como discurso de duplo sentido. Quando o dr. Aloysio Nunes Ferreira Filho declara que “não sabe” se hoje em dia voltaria a recorrer às ações violentas em que se envolveu na década de 70, ao mesmo tempo que enaltece como heróis os que participaram delas, o que ele está dizendo é precisamente que voltará a elas tão logo saiba que é o momento apropriado. Não de trata de uma questão de moralidade, mas de oportunidade.Tal é pois o desempenho que se pode esperar dele no Ministério da Justiça:  “Quando tivermos conquistado as massas mediante uma abordagem razoável, então aplicaremos táticas ofensivas.” A única esperança de que a violência comunista não volte a reinar para depois acusar de violência a reação das vítimas é que a “abordagem razoável” não alcance os resultados esperados. E isto depende de que cada palavra ambígua do dr. Nunes Ferreira seja decodificada em tempo como ameaça latente. Resta também a hipótese remotíssima de que ele tome consciência da malícia leninista da sua conduta e, sem meias palavras, condene o seu próprio passado, não apenas como passado, mas como foco infeccioso que deve ser ser cauterizado para não supurar nunca mais, no mesmo e exato sentido em que examino minha própria militância comunista não com a nostalgia de de quem afaga paternalmente sua juventude extinta, mas com o realismo de quem confessa um erro moral grave.

Benedetto Croce distinguia entre o arrependimento moral, que condena o próprio ato como intrinsecamente mau, e o “arrependimento econômico”, que não abjura do ato mas apenas de suas conseqüências indesejadas: um ladrão se envergonha de ter roubado, outro de não ter conseguido escapar da polícia. Mesmo o puro arrependimento moral não garante que o criminoso não voltará a reincidir. Mas o arrependimento econômico é quase uma garantia de reincidência.

Ver e ouvir

 

Olavo de Carvalho

O Globo, 18 de agosto de 2001

Não há talvez melhor maneira de conhecer a psicologia dos povos do que observar a diferença entre o que os escandaliza e o que os deixa indiferentes. Numa conversa elegante, sem a menor inibição um francês usará a palavra cul — ou um português o seu equivalente vernáculo — ao passo que no Brasil de hoje qualquer senhora respeitável, que jamais se permitiria pronunciar isso em voz alta, se sentará tranqüilamente ao lado de seus filhinhos para assistir pela TV a shows de sexo que, exibidos a crianças em qualquer país da Europa, dariam processo judicial.

Esse e muitos outros indícios sugerem que o povo brasileiro, hoje, é mais sensível ao que ouve do que ao que vê. Daí o resultado da recente pesquisa de opinião, encomendada por um grupo de empresários, na qual tiveram o desprazer de descobrir que a opinião média do nosso eleitorado associa a atividade empresarial a crueldade, rapina e exploração do homem pelo homem, ao mesmo tempo que, quando ouve a palavra “socialismo”, não lhe vêm à mente senão lindas idéias de solidariedade, fraternidade, bondade e… acho bom parar porque já estou ficando comovido.

O fundamento dessa crença é simples e evidente: nunca essa opinião pública foi tão desprovida de informações sobre a realidade dos países socialistas quanto nos últimos dez anos. O desfile de dedos decepados e orelhas cortadas exibido diariamente no programa dos exilados cubanos no canal 29, dando uma idéia bem exata do que seja o tratamento dos prisioneiros políticos no jardim do Éden instalado por Fidel Castro no Caribe, fica sem efeito porque passa às 6h30m da manhã. Do mesmo modo, livros como “The perestroyka deception”, de Anatoliy Golytsin, “Jugement à Moscou”, de Vladimir Boukovski, ou o extraordinário “Viaje al corazón de Cuba”, de Carlos Alberto Montaner (para não falar do já antigo “Contra toda esperança”, de Armando Valladares, relato de duas décadas de encarceramento em Havana por delito de opinião), são mantidos cuidadosamente fora do alcance de leitores que, para pensar como crianças, têm mesmo de ser mantidos na menoridade editorial.

O conhecimento que o povo brasileiro tem do socialismo é puramente auditivo. Vem de reminiscências escolares, de discursos ouvidos de professores fanatizados que há décadas entoam o coro dos louvores a um socialismo que ninguém viu. Se querem saber como se ensaia esse coro, como se reduz à unanimidade a multidão de vozes que ressoarão depois nas cabeças das crianças e continuarão ressoando no subconsciente das crianças crescidas, basta examinar alguns critérios oficiais de seleção e capacitação de professores.

Capacitar professores, hoje em dia, consiste em ensiná-los a repetir para as criancinhas, numa língua de semi-analfabetos, slogans revolucionários imbecilizantes. Não pensem que há, nessa frase que acabo de escrever, a mínima ênfase retórica. Ela é a tradução exata e até comedida da realidade. Leiam, por exemplo, estes ensinamentos do Programa de Capacitação de Professores da Secretaria de Educação de Minas Gerais:

(1) “Existem em Minas Gerais uma grande diversidade, frutos da sua construção social.”

(2) “O populismo de Vargas e seu carisma explode no carnaval…”

(3) “Entre a segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas da República…”

(4) “Essa diferenciação, presente nos vários aspectos da vida das pessoas e a maneiras que cada uma delas têm de construir valores derivam…”

Nessa linguagem que raia o tatibitate de retardados mentais, os capacitadores transmitem aos futuros guias da infância nacional a versão oficial da História, na qual Tiradentes não foi enforcado por ser o chefe de uma insurreição e sim por ser o único pobre entre os insurretos; o único atentado terrorista digno de nota entre 1964 e a redemocratização foi o do Riocentro; o décimo terceiro salário e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (na verdade criados pelo marechal Castello Branco) foram grandes conquistas dos trabalhadores no governo Vargas; a Junta Militar formada após o impedimento do presidente Costa e Silva passa a governar desde 1964 e, last not least, a Guerra Fria é transferida para os anos 30, antecipando-se de pelo menos uma década e meia ao que se deu naquele lugarzinho oculto e ignorado que se chama “mundo real”.

Em compensação de umas quantas dúzias de probleminhas dessa ordem no tocante à história e ao português, o programa é, do ponto de vista ideológico, uma obra impecável, não lhe faltando as tiradas de praxe contra a velha UDN, a ditadura, o racismo brasileiro e os empresários em geral, bem como os louvores ao governo Goulart e a convocação aberta às lutas sociais.

A escala de prioridades é visível: para estar capacitado a lecionar história, você pode ser analfabeto e não saber nada de história. Nada disso é impedimento. Só o que interessa é a correção ideológica da mensagem que você vai transmitir às criancinhas.

É graças a esse tipo de educação que os brasileiros, hoje, vão se tornando cada vez mais incapazes de discernir a realidade da fantasia, cada vez mais propensos a aceitar como verdade de evangelho qualquer mentira boba que venha sublinhada pela ênfase emocional politicamente adequada.

O cérebro humano, conforme já demonstrava Pavlov, tem uma capacidade limitada de absorver contradições e absurdos. Ultrapassado um certo limite, ele entra num estado de torpor, de cansaço, de indiferença, no qual já não lhe interessa mais fazer qualquer distinção entre o verdadeiro e o falso, o certo e o errado. Ele aí não apenas aceita tudo, mas, invertendo a reação natural, nega o que seus olhos vêem e crê firmemente no que ouve dizer. E aí a respeitável senhora, que jamais pronunciaria certas palavras em público, está pronta para assistir a shows de sexo ao vivo ao lado de seus filhinhos menores, com um sorriso de serenidade idiota nos lábios.

 

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