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Efeitos da ‘grande marcha’

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, São Paulo, 26 de outubro de 2000

A Justiça Eleitoral existe, como o próprio nome o diz, para que as eleições sejam justas. Mas ela se compõe de funcionários públicos e, desde que apareceu neste país um fenômeno chamado “a grande marcha da esquerda para dentro do aparelho de Estado”, essa classe vem se tornando cada vez mais suspeita de estar interessada em tudo, menos em eleições justas. Pois a “grande marcha” consiste em ocupar o maior número de empregos públicos, com a finalidade de colocar o aparelho de Estado a serviço de um partido, o qual então passa a exercer o governo sem ser governo, desfrutando das prerrogativas do poder sem as suas concomitantes responsabilidades.

Essa operação foi calculada por seu inventor, Antonio Gramsci, para ser realizada de maneira lenta e sorrateira, de modo que os próprios governantes acabem sendo responsabilizados pelos efeitos globais nefastos das ações de funcionários infiltrados na burocracia para desmoralizá-lo e enfraquecê-lo.

Um exemplo da eficácia alucinante desse procedimento foi obtido já durante o governo militar. O regime, por ser autoritário e não totalitário, desejava a apatia política do povo e não fez nenhum esforço para doutriná-lo segundo os valores do movimento de 1964 (o totalitarismo, ao contrário, exige doutrinação maciça). Essa atitude deixou à mercê da oposição de esquerda a rede de instrumentos editoriais, jornalísticos e escolares de formação da opinião pública (o que, entre outras coisas, resultou na ampliação formidável do mercado de livros esquerdistas). Uma das poucas tentativas de doutrinação feitas pelos militares foi a introdução, nas escolas, das aulas de “Educação Moral e Cívica”. Mas tão displicente foi essa tentativa que o Partido Comunista se aproveitou da oportunidade para lotar de bem treinados agitadores as cátedras da nova disciplina, as quais assim se tornaram uma rede de propaganda comunista subsidiada pelo governo. É claro que muitos professores ideologicamente descomprometidos também se apresentaram para suprir as vagas, mas os militantes faziam o mesmo como tarefa partidária, de modo que, no conjunto, o plano comunista de apropriar-se dos recém-abertos canais de doutrinação não concorreu com uma premeditação igual de signo ideológico contrário, mas apenas com a resistência amorfa de uma massa politicamente indiferente e sem direção. A brutal politização marxista das escolas, que hoje culmina nas barbaridades ideológicas impingidas às crianças pelos manuais publicados pelo próprio Ministério da Educação, começou precisamente aí.

O mais notável foi que, ocupado em reprimir a guerrilha, o governo militar não apenas deu rédea solta à ala “pacífica” e gramsciana da esquerda, mas até lhe concedeu substanciais incentivos. O principal editor comunista da época jamais deixou de receber subsídios oficiais, até que, com a abertura política, começou a ter dificuldades financeiras e acabou vendendo sua empresa.

Jamais interrompida, rarissimamente denunciada, a “grande marcha” parece enfim ter chegado à Justiça Eleitoral, que, nos últimos tempos, tomou pelo menos três decisões bastante suspeitas. Primeiro, proibiu menções adversas à aliança do PT com o movimento “gay” (v. meu artigo no JT de 20 de setembro); depois, mandou distribuir cartazes que incentivavam o eleitor a votar “para mudar”, o que é mensagem de signo ideológico indiscutivelmente nítido; por fim, vetou propagandas do candidato do PPB à Prefeitura de São Paulo que apresentavam sua concorrente como adepta da causa abortista – uma afirmação cuja veracidade é empiricamente confirmável por qualquer um.

Cada uma dessas decisões, isoladamente, pesa pouco. Somadas – se ainda não vierem outras –, talvez não sejam capazes de decidir uma eleição. Mas, na escala minimalista de uma estratégia que aposta antes na somatória de milhares de ações imperceptíveis do que nos riscos da propaganda espetacular, elas vêm engrossar o caudal da “revolução cultural” gramsciana, a mutação sutil e persistente dos padrões de percepção do povo brasileiro, cujos resultados, em São Paulo e em outras cidades importantes, já estão em vias de se traduzir em resultados eleitorais superficialmente limpos e profundamente sujos.

É impossível não ver simultaneamente um efeito da “grande marcha” na greve da polícia pernambucana, claramente ilegal e insurrecional, e em mil e um outros fatos que parecem isolados, mas cuja origem comum está sempre num funcionalismo público bem adestrado para trabalhar contra quem paga seu salário.

Moral postiça

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 23 de dezembro de 1999

Os banqueiros e industriais que alegremente subsidiam a “revolução cultural” esquerdista não percebem estar ajudando a doutrinar o povo segundo os cânones de uma ética na qual o maior dos crimes é ser rico. Não excluo a hipótese de que colaborem nesse empreendimento movidos por um fundo de consciência culpada: cada um deles sente que sua riqueza não foi obtida por meios totalmente lícitos, e imagina que ajudando a falar mal da sua própria classe está, de algum modo, purgando seus pecados.

Acontece, porém, que ninguém pode livrar-se de suas culpas pessoais jogando-as sobre as costas da entidade coletiva a que pertence, na qual se misturam indistintamente os bons e os maus. Esse tipo de ablução fingida não se inspira numa sã moralidade, mas numa ética bárbara, doente e perversa.

Para piorar ainda mais as coisas, a destruição do capitalismo, a que essa conduta concorre da maneira mais ostensiva, não trará nunca a justa punição dos capitalistas desonestos, mas, como acontece em toda precipitação anárquica de uma onda revolucionária, distribuirá os efeitos da violência a esmo entre culpados e inocentes, despejando a mais pesada cota de sofrimentos precisamente sobre aqueles que não têm meios de defesa: os pobres. Entre os 100 milhões de vítimas do comunismo, chegava a 10 milhões o número de capitalistas, de ricos, de grandes proprietários? Talvez nem tanto. Não havia tantos ricos na Rússia, na China, em Cuba (se houvesse, o próprio número deles seria um fator de estabilidade conservadora capaz de deter a revolução). Noventa por cento ou mais das vítimas do comunismo não tinham onde cair mortas e por isto mesmo caíram no sepulcro dos pobres: a vala comum. O capitalista que financia comunistas não alivia em nada suas culpas pessoais, acumuladas ao longo de mil e uma concessões à força das circunstâncias: apenas acrescenta, à infinidade de seus “pecados úteis”, um crime inútil e sem sentido.

Mas não são só os capitalistas que se acumpliciam com esse crime. Um fenômeno desconcertante que, em circunstâncias intelectuais normais, deveria ter chamado a atenção dos sociólogos, mas que no momento lhes passa totalmente despercebido, é que no Brasil o apoio às esquerdas cresce justamente nas alas mais prósperas da alta classe média, e cresce, por incrível que pareça, na razão mesma dessa prosperidade. Em parte alguma isso é mais visível do que nos bairros bem arborizados de São Paulo onde se concentram os eleitores do dr. José Gregori.

Não há nenhum meio de explicar isso senão pela insegurança do homem que prospera no meio de uma multidão de concorrentes menos felizes e, por isto mesmo, forçosamente mais invejosos. A inveja tem o poder de acionar, no cérebro das vítimas, um conjunto de reações automáticas destinadas a exorcizá-la, que constituem todo um complexo ritual de camuflagem: o homem próspero de classe média resguarda-se do olhar perfurante do invejoso desviando-o para alvos genéricos – “o capitalismo”, “a sociedade de consumo”, etc. – e o neutraliza aliando-se com ele no ataque comum a um bode expiatório que, tendo ademais a reconfortante vantagem de estar distante demais para poder ser atingido, garante que toda a operação não passará dos efeitos verbais. O invejoso, se é por sua vez invejado por outro menos próspero ainda, pode passar adiante o mesmo jogo de impressões, e assim ad infinitum .

Ninguém parece se dar conta de quanto essa eterna vigilância contra a inveja mútua alimenta a própria inveja na medida em que a consagra como mola mestra das ações e reações humanas. Esse estado de coisas reduz a vida da nossa classe média alta a um permanente jogo de simulações que termina por corromper todos os sentimentos humanos e rebaixar as consciências ao nível da insensibilidade mais pétrea. Que um personagem tão manifestamente postiço como o cardeal Arns passe nesses meios como um emblema das virtudes já mostra o quanto, aí, o autêntico e o falso se tornaram absolutamente indiscerníveis.

Também não é de estranhar que, tanto nesses meios quanto nas camadas mais populares que deles copiam seus padrões de conduta, a virulência do discurso moralista cresça na razão direta da geral dessensibilização moral. Os símbolos convencionais de moralidade e bom-mocismo ganham prestígio na mesma proporção em que desaparece a capacidade espontânea para o julgamento moral direto.

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